O racismo estrutural
O Brasil é um país que reconhece oficialmente na sua história a existência de um regime de escravidão que se iniciou com os indígenas no início do século XVI e foi seguida de sua substituição (ou complementação) pelos povos negros de origem africana na metade desse mesmo século e que teve seu fim derradeiro no fim do século XIX. O Brasil reconhece também os efeitos duradouros de um processo de crescimento e formação nacional que foi feita, não à despeito de, mas sim contra a sua população negra e indígena que permanece até hoje. O reconhecimento sobre as desigualdades resultantes desse processo histórico e social foram pautadas pela força de centenas de anos de luta dos negros e indígenas por liberdade. Porém, a reprodução dessas condições desiguais de vida devido à raça só podem ser explicadas porque fazem parte da estrutura social e tem consequências objetivas na vida da população negra e também pela degeneração de todo tecido social que apodrece com a violência, a desigualdade econômica, as perspectivas de futuro que são ocultadas pela falta de representatividade, a saúde e o racismo ambiental que são desdobramentos de uma estrutura que se utiliza da diferença racial, ou da própria manifestação da ideia de raça, para a reprodução social.
A desigualdade racial
Com o esforço para o reconhecimento da desigualdade por cor, diversas instituições do Estado passaram a computar nos censos e pesquisas por amostragem a variável da cor para que fossem produzidos estudos que levassem em conta o racismo. O informativo “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[1], reúne várias dessas pesquisas e censos para criar um panorama sobre a condição de vida da população negra[2].
Um dos primeiros e mais impactantes dados do estudo é aquele que se refere à renda, quando em 2018 o rendimento médio mensal das pessoas ocupadas brancas foi 73,9% superior ao mesmo grupo de pessoas pretas ou pardas. A desigualdade de rendimentos por raça é maior que a explicada pelo sexo: a razão entre os rendimentos médios de mulheres e homens (78,7%) é um componente menor da variação de renda do que a razão entre os salários de negros e brancos (57,5%). Essas diferenças salariais prosseguem mesmo quando se consideram ocupações semelhantes ou diferentes graus de instrução.
Sobre o racismo estrutural, as relações formais entre causa e consequência na explicação dos fenômenos discriminatórios se mostra falha. Um exemplo deixa clara a questão, “se pessoas negras são discriminadas no acesso à educação, é provável que tenham dificuldade para conseguir um trabalho, além de terem menos contato com informações sobre cuidados com a saúde. Consequentemente, dispondo de menor poder aquisitivo e menos informação sobre os cuidados com a saúde, a população negra terá mais dificuldade não apenas para conseguir um trabalho, mas para permanecer nele. Além disso, a pobreza, a pouca educação formal e a falta de cuidados médicos ajudam a reforçar os estereótipos racistas, como a esdrúxula ideia de que negros têm pouca propensão para trabalhos intelectuais, completando-se assim um circuito em que a discriminação gera mais discriminação.”[3]
As ideologias que reproduzem o racismo se combinam ainda com as diferenças de gênero que fazem com que, abaixo da relativa vantagem no rendimento médio dos homens brancos, sigam, em ordem, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. Este circuito propagador de desigualdades descrito no exemplo acima pode ser verificado, passo a passo nos dados socioeconômicos descritos nesse informativo do IBGE, inclusive em outros fatores como condições de moradia e a violência.
Os dados sobre as diferenças em condições de moradia dão conta de uma das dimensões das piores condições de saúde dos negros, que dificultam a permanência no emprego ou mesmo a probabilidade de sobrevivência após a infância. Tanto nas condições de serviços próximos aos domicílios, quanto as características próprias dos domicílios, os negros estão em relativa desvantagem.
Sobre os aspectos educacionais, considerados por todas correntes de pensamento como o ponto sensível ou nevrálgico da propagação de desigualdade intra ou inter-geracional, as desigualdades no acesso, frequência e desempenho educacional agem de maneira combinada, mas aparecem de forma diferente nos diferentes graus de instrução. No ensino básico, na faixa etária de 6 a 10 anos, o acesso à escola na idade correta era tecnicamente igual entre negros (95,8%) e brancos (96,5%), porém na faixa de 18 a 24 anos a proporção de negros cursando ensino superior (18,3%) representava metade da proporção de brancos no acesso a esse grau de instrução (36,3%). O que acontece nesse ínterim é uma combinação entre abandono escolar, atraso escolar, baixo grau de instrução dos pais, renda insuficiente para a manutenção dos filhos na escola por baixa renda, entre outros fatores. A questão inter-geracional, apesar de apresentar uma melhora no quadro desde as pesquisas de 2016 e pela alta estatística de acesso à educação infantil, ainda mostra um relevante abismo social em que 3,9% dos brancos são analfabetos, enquanto o são 9,1% dos negros.
Outro fator difícil de ser apreendido pelos dados, mas que já demonstraram seu efeito em estudos sobre evolução escolar é a discriminação estatística. Não a menciono aqui na sua versão habitual em que ela é pensada apenas nos formuladores de políticas públicas ou agentes de mercado que reproduzem expectativas calcadas no preconceito racial para a tomada de decisões, mas sim na falta de representatividade como subsídio para as tomadas de decisão do próprio indivíduo racializado. Sobre isso, dados sobre representatividade política tem função didática:
Como colocado no início desse texto, o racismo é um processo histórico que se desenvolveu e passou por metamorfoses para que continuássemos reproduzindo até hoje. A inércia desse processo obedece a uma rigidez que faz parte de sua estrutura. A representatividade importa principalmente enquanto contradição da estrutura que reproduz também a lógica de acumulação capitalista e contraprova às ideologias racistas. Àqueles que consideram representatividade como tema inútil para análise ou formulação de políticas para desarmar a estrutura racista não compreende a importância da subjetividade individual enquanto formação do sujeito coletivo que produz a transformação social. A representatividade política também sofre de limites estruturais para a superação do racismo, mas se não fosse objetivamente relevante não veríamos uma significativa sub-representação confrontando os dados da representação política no legislativo com a proporção de 55,8% de negros na população. E o problema da representatividade política não se explica por uma falta de candidaturas de negros, pois elas são superiores proporcionalmente ao número de eleitos em todas as esferas do legislativo.
A violência
Os índices de violência sempre foram alarmantes para a população negra no Brasil. A má surpresa é que esses números evoluíram negativamente de 2013 a 2017, com crescimento no número de homicídios intencionais de aproximadamente 16%, atingindo 2,7 vezes mais que o número de homicídios da população de cor branca. A taxa de homicídios entre os jovens negros de 15 a 29 anos é o ponto mais crítico, pois representa aproximadamente 3 vezes mais homicídios do que os jovens brancos da mesma faixa etária.
Muitos dados importantes sobre a violência cotidiana não fazem parte do estudo. Mas é importante de salientar que todo o sentido geral dos dados apresentados aqui afirmam uma violência cotidiana, que atinge, pela diferença e pela concretude do sofrimento gerado por essas diversas violências, a vida dos negros no Brasil
[1] Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acessado em novembro de 2019.
[2] Devido a compilação de dados por amostragem e a baixa representação da população indígena nas pesquisas, as cores consideradas no estudo são Branco, Preto e Pardo. Para efeitos de simplificação, serão consideradas como negras as pessoas que tenham se auto-declarado pretas ou pardas.
[3] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. p. 157. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019
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