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MUNDO

Chile tem novo protesto de massas e revolta está longe de terminar

Centenas de milhares foram às ruas da capital nesta sexta, 08. Governo aposta no endurecimento das leis repressivas e sindicatos e movimentos convocam greve geral para o dia 12

Gustavo Sixel, do EOL, e Carol Leal, do Afronte; direto de Santiago

Nesta sexta-feira, 08, completaram-se duas semanas do auge do levante chileno, quando 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas de Santiago e outras milhares fizeram o mesmo em todas as partes do país, derrubando o toque de recolher, um ministro e deixando o governo Piñera em suspenso. Nesta sexta, um novo protesto estava sendo convocado durante toda a semana, a “SuperLunes”. O chamado foi atendido. Novamente, a Praça Itália viu uma manifestação de massas, com centenas de milhares, produzindo imagens aéreas impressionantes e que podem ser comparadas às do protesto anterior. O objetivo do governo, de encerrar a revolta e retomar a normalidade parecem cada vez mais distante.

Assim como o outro, foi um ato forte, que não pôde sequer ser reprimido, com a intensidade com que foram os últimos protestos. Durante parte do tempo, a praça era tomada pelo cheiro do gás, vindo de confrontos nas ruas próximas e que se seguiram até tarde da noite. Pelo menos dois prédios foram incendiados, mostrando a radicalização da luta, que seguiu nas ruas, com bloqueios e barricadas, por dezenas de quarteirões.

Mas a marca principal dos atos desta sexta foi a do povo nas ruas, em uma verdadeira festa de luta e resistência. Haviam baterias tocando samba, orquestras de instrumentos, diabladas, muita cantoria e palavras de ordem. Os cartazes eram dos mais criativos, a maioria tendo alvos Sebastian Piñera, sua esposa, Cecília Morel (que enviou uma mensagem de áudio chamando os manifestantes de extraterrestres) a ditadura e os responsáveis pela repressão. Também haviam muitos cartazes exigindo uma nova Constituição, e todo tipo de demandas (desde investimento em Ciência, meio ambiente, legalização da maconha, investimento em educação especial, etc), lembrando em certa medida os cartazes das jornadas de junho de 2013, com menos peso para o debate anticorrupção. E também contra Bush e Bolsonaro.

As organizações políticas e partidos de esquerda e da oposição participaram, com colunas e alguma visibilidade. As organizações feministas, em torno da Coordinadora 8M e do movimento argentino Ni Una a Menos, que enviou uma delegação, participaram com uma coluna e depois permaneceram com um ato na estátua principal da praça, com palavras de ordem feministas. Mais cedo, a associação de futebol feminino promoveu um torneio de futebol no meio da avenida, denunciando o machismo.

Depois da marcha desta sexta, o próximo passo será a greve geral, convocada pelos principais sindicatos e movimentos sociais para a próxima terça, 12 de novembro. O chile continua ardendo e, como dizem os manifestantes, isso não terminou.

“A normalidade é uma farsa”

Já são mais de 20 dias desde que os estudantes secundaristas iniciaram seus protestos e o país está muito distante de retomar a normalidade. O país vive um levante que o governo de Sebastian Piñera e a classe política tentam desesperadamente controlar, sem sucesso. Inicialmente através de concessões democráticas e econômicas, incluindo um abono salarial para quem recebe menos do que o mínimo, e agora, com um novo endurecimento, com o anúncio de um pacote de medidas repressivas.

Nos dias que se seguiram ao fim do toque de recolher, governo, apresentadores de TV e políticos tentaram criar uma sensação de normalidade, apostando que os protestos não conseguiriam se sustentar por mais tempo e que as pessoas acabariam deixariam as ruas. Falavam nos protestos como se já fossem uma página virada e já faziam a contabilidade dos prejuízos como se os atos fossem parte do passado.

Nas ruas, pixações dos manifestantes diziam que “a normalidade é uma farsa” e cartazes nos postes faziam o chamado a continuar nas ruas: “eles precisam retomar a normalidade… nós precisamos recuperar nossa vida”.

E a vida, definitivamente, não voltou ao normal. O cotidiano continua marcado por protestos, bloqueios, greves, marchas, cacerolazos nos sinais, assembleias nas praças dos bairros, com 200 a 300 pessoas. Na capital do país, por todos os lados se vê os sinais da rebelião. As pessoas voltaram a trabalhar, mas, por volta das 14h, 15h, o comércio começa a fechar as portas, para que os funcionários possam voltar para casa antes de o transporte público ser suspenso. Depois que os trabalhadores se vão, soldadores vão prendendo placas de aço para proteger a fachada das lojas das pedradas e de saques, sendo que muitas nem reabriram.

A capital tem dezenas de pontos de protestos, convocados nas redes sociais. O principal deles – e o único que não precisa de convocação – ocorre na Praça Itália, todos os dias, às 17h. Pela principal avenida que leva à praça, em um longo trecho praticamente interrompido, desde o início da tarde, milhares de manifestantes caminham, a pé ou em grupos, para se somar ao ato. Os dias tem sido quentes e longos – o sol se põe às 20h. No caminho, o clima é de alegria, com muita gente conversando, tomando cerveja, cantando, levando bandeiras do Chile ou a do povo mapuche.

Nas calçadas, ambulantes vendendo lenços de pano e máscaras nos lembram que a repressão continua. A cidade respira gás lacrimogêneo, que começa a ser lançado contra o ato logo em seu início. Começa uma longa queda de braço, uma batalha entre os manifestantes e os carabineiros – a PM daqui – com investidas constantes. Os policiais tentam dispersar a multidão de todas as formas. Eles usam dois veículos, um pequeno, que solta gás lacrimogêneo por baixo, para todos os lados; e outro carro, maior, que lança jatos de água. Não se conta apenas com a força do jato d’água para dispersar os manifestantes – os carabineiros misturam um produto químico na água, que deixa a pele queimando e ardendo.

Todo este aparato não consegue dispersar a grande maioria do ato, formada pela juventude. Como em uma coreografia, eles recuam, avançam, saem para ruas próximas e depois retornam, em um revezamento que mantém a praça permanentemente cheia. A polícia lança novas bombas, os jovens se aproximam, conseguem bloquear o gás. Postos de atendimento por voluntários atendem os feridos. Na praça, os que permanecem cantam, pulam, escalam a estátua cuja foto virou símbolo da revolta, disparam rojões e tintas contra os carros da polícia, lançam pedras, montam barricadas, seguem na rua.

A capacidade de resistência e a disposição é impressionante. Não se intimidam pelas balas de borracha que já deixaram mais de 100 pessoas cegas ou pela repressão, que já matou 23 pessoas nestas semanas. Na quarta, um deles subiu no carro da policia que lanca jatos d’água, e seguiu tentando quebrar a mangueira, com o carro em movimento. Uma coragem que parece vir do sentimento de que já perderam tudo, de que não há mais nada a perder. E do forte ódio aos policiais e aos militares, pelas 23 mortes nestas semanas. Não é a toa que essa juventude se apresenta como “os netos daqueles que vocês não conseguiram assassinar”, em uma referência direta aos crimes da ditadura.

O confronto dura horas, até o cair da noite. E segue depois, em menor intensidade, com saques, pequenos pontos de fogo, ataques à bancos e sedes de empresas. Nos sinais, grupos de 20 ou 30 manifestantes seguem cantando, fazem fogueiras e batucam em instrumentos ou panelas uma mesma batida, ritmada, que é acompanhada pelas buzinas dos motoristas, em apoio.

Mas a normalidade tampouco voltou para além desta praça, uma área quase que ocupada pelos manifestantes. Por toda a cidade e por todo o país, há protestos. Mineiros e portuários fazem greves. Prédios públicos, escolas, bibliotecas e universidades estão fechados, sem data prevista para retornar. Jovens realizam atos em bairros da capital, e em um deles, atacam com pedras uma delegacia de polícia. A TV pede repressão e endurecimento. Moradores de bairros ricos falam que irão se armar.

Caminhoneiros e motoristas de táxi bloqueiam rodovias há vários dias, contra o valor dos pedágios, em um forte movimento nacional, o “No + TAG”. Um dos principais ministros fica bloqueado no engarramento. Outro ministro é encurralado por servidores da saúde, de um hospital público, que o segue nos corredores, com cartazes o chamando de assassino por conta da falta de verbas para remédios. O sindicato de atletas de futebol anuncia que não vão mais jogar, ameaçando o campeonato deste ano. A final da Libertadores é transferida para Lima. O Teleton, um espetáculo beneficiente tradicional (exibido no Brasil pelo SBT), foi adiado para maio de 2020.

Pela TV, a repórter mostra o drama de uma senhora que mora perto da Praça Itália, e que não pode mais levar o cachorro para passear no parque, por conta do cheiro do gás lacrimogêneo. Esse é o clima do país. A vida insiste em não voltar ao normal no Chile. E dá muitas mostras ao governo que esta revolta não será encerrada com pacotes de mentiras ou com medidas de repressão e perseguição aos jovens radicalizados.

 

VÍDEO
Veja a transmissão ao vivo do protesto 

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