Já são vários prédios públicos queimados, três mortos e vários feridos nos enfrentamentos de rua desde o resultado eleitoral de 20 de outubro. Todos os dias estão ocorrendo enfrentamentos entre os apoiadores de Evo Morales e os que exigem sua renúncia. Somente na quarta, 6 de novembro, queimaram a Prefeitura de Vinto, cidade a 15 km de Cochabamba, e houve um forte confronto nas principais ruas de Cochabamba que deixou um saldo de 89 feridos e um morto.
Na quinta, começaram a ocorrer motins policiais em Cochabamba, lugar onde os líderes do movimento contrário a Evo estavam concentrando seus protestos com o objetivo de chegar à sede do governo. O motim policial, que até o momento parece ser da baixa oficialidade, se estendeu a várias capitais, e neste sábado, 9 de novembro, se apresentou na sede do governo. Policiais que resguardam a sede do governo abandonaram seus postos e o comandante chefe das Forças Armadas bolivianas, Williams Kalman, fez um pronunciamento dizendo que o “Exército não ficará contra seu povo”. A situação é grave e há possibilidade dos enfrentamentos adquirirem características de guerra civil e até mesmo de um golpe contra Evo Morales.
A crise política explodiu com o anúncio da vitória de Evo Morales e a acusação da oposição de que o resultado eleitoral foi fraudado. A partir daí, o país vive manifestações que de um lado respaldam o resultado eleitoral e a posse de Evo em 1 de janeiro, e de outro, manifestações contrárias, que começaram reivindicando segundo turno e evoluíram para a suspensão das eleições, e agora exigem a imediata renúncia do governo de Morales. Mas afinal, o que se passa na Bolívia?
Antecedentes da crise
A polarização no processo eleitoral e as resoluções aprovadas nas grandes concentrações de encerramento da campanha, com a presença do candidato opositor Carlos Mesa, demonstram que a crise já era anunciada. Os atos nas cidades de Santa Cruz (4 de outubro), La Paz (10 de outubro), Cochabamba (10 de outubro), aprovaram desconhecer uma eventual vitória de Evo Morales no primeiro turno. Também exigiam a renúncia dos membros do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE).
O ato em Santa Cruz aprovou o início dos trabalhos rumo ao federalismo”. Em Cochabamba, aprovou-se “convocar as Forças Armadas e a população a expulsar Morales e seus apoiadores do Palácio do governo”. Anterior a estes comícios, em 11 de setembro, ocorreu paralisações e bloqueios convocados pelos comitês cívicos de Potosí, Cochabamba, Oruro, Tarija, La Paz e El Alto.
Apesar das pesquisas indicarem vantagem de Evo Morales sob o segundo colocado, superior a 10% (a última pesquisa, publicada no domingo anterior às eleições, pelo Instituto Ipsos Bolívia, autorizada pelo TSE, indicou 40% para Evo e 22% para Mesa), os comícios e paralisações encabeçados pela CONADE, aprovaram desconhecer o resultado eleitoral caso não houvesse segundo turno.
O resultado eleitoral e o caráter das mobilizações
O ambiente de desconfiança e denúncias de fraudes foi construído antes das eleições e agravou-se no momento que o TSE suspendeu a transmissão dos resultados quando 84% dos votos haviam sido apurados (naquele momento a diferença entre os candidatos era inferior a 10%). Imediatamente Carlos Mesa e os comitês cívicos convocaram mobilizações que terminaram com a queima de vários TREs, confrontos com a polícia e alguns feridos. Quando o resultado oficial foi anunciado e indicava a vitória de Evo Morales no primeiro turno com 47,07% contra 36,52% obtido por Carlos Mesa, a batalha campal nas ruas das principais cidades se intensificou. O argumento da direita de que houve fraude e havia que defender o voto mobilizou sua base social. Evo por sua vez convocou os movimentos sociais como a Central Operária Boliviana, os mineiros, camponeses e indígenas a defenderem o governo e o resultado das eleições.
O processo eleitoral boliviano foi acompanhado por fiscais dos candidatos, vários observadores internacionais, a União Europeia e a OEA. Diante dos enfrentamentos e numa clara tentativa de acalmar as ruas, Evo aceitou a proposta de uma auditoria realizada pela OEA, com caráter vinculante. A auditoria já está em curso, mas o CONADE e seus líderes informaram que não aceitarão os resultados da auditoria. Agora se movem pela renúncia de Evo. Fizeram um chamado público às Forças Armadas a intervir no governo e parlamento. Além disso, transferiram as principais mobilizações e bloqueios para a sede do governo, em La Paz.
Há uma escalada de violência impressionante. Nos vários enfrentamentos há relatos de racismo, camponeses chicoteados, uma prefeita do MAS teve que ajoelhar-se em Praça Pública enquanto partidários do comitê cívico de Santa Cruz cortavam seu cabelo e lhe jogavam tinta vermelha. A imprensa denunciou essa semana, a existência de grupos de choque armados em motocicletas circulando entre os manifestantes que pedem a renúncia de Evo que estariam inclusive ameaçando a imprensa.
Derrotar o golpe!
A Bolívia está na contramão dos ventos progressivos e das mobilizações populares ocorridas no Equador e Chile. A situação do país assemelha-se mais ao cenário brasileiro. Há uma reorganização da extrema-direita, que se aproveitou da justa desconfiança das classes médias e da juventude com os 13 anos de governo de Evo Morales. A extrema-direita e a direita tradicional estavam em uma profunda crise de representatividade após os processos revolucionários de 2003 e 2005. Evo Morales gozava de amplo apoio eleitoral e hegemonia política (venceu todas as disputas eleitorais em 2006 com 52%, 2009 com 64,22% e 2014 com 60%) e, assim como todos os governos “progressistas” da América Latina, aproveitou o elevado preço das commodities para garantir bons negócios para a classe dominante e políticas sociais mínimas para a população em situação de pobreza e extrema pobreza.
As mobilizações em curso contra Evo Morales são reacionárias pelo seu programa e por sua direção, por isso devem ser rechaçadas pela esquerda socialista. O núcleo dirigente é a extrema-direita reciclada, que conseguiu com a candidatura de Carlos Mesa um grau de unidade.
Essa crise é também resultado da política de conciliação de classes de Evo Morales. Os movimentos sociais derrotaram o governo neoliberal de Carlos Mesa nas ruas em 2005. Derrotaram a tentativa de impedir a Constituinte e o levante da direita em 2008. Evo chamou o diálogo com a extrema-direita e fez um pacto de governabilidade a partir de 2009, que representou alterar a Constituição resultante da constituinte, garantindo a essência dos negócios da burguesia de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija. Depois adotou medidas que atacou os próprios movimentos sociais e atuou para evitar o surgimento de qualquer opção de esquerda a seu governo, as vezes cooptando com cargos públicos, outras reprimindo. Agora, frente a ameaça de golpe, outra vez chama seus adversários ao diálogo.
É fundamental construir uma verdadeira alternativa de esquerda, socialista, contra a política de colaboração de classes do Evo, que termina garantindo sobrevida à extrema-direita. Contudo, nesse momento há uma escalada da extrema-direita respaldada inclusive pelo governo Bolsonaro que não reconheceu o resultado eleitoral e incentiva a extrema-direita boliviana na sua ofensiva contra Morales.
É urgente que os movimentos sociais organizados, a COB, a Federação dos Mineiros, os combativos mineiros de Huanuni, todos cerquem La Paz para impedir o golpe. Os movimentos sociais que defenderam desde o início reconhecer o resultado das eleições, que defendem o governo, devem expulsar a tropa de choque do Comitê Cívico de Santa Cruz que entrou em La Paz, para evitar um golpe na Bolívia. É preciso fortalecer os ventos progressivos de luta contra a direita na América Latina. Ainda que não apoiemos politicamente ao governo de Morales, o defendemos contra a tentativa de derrubada de seu governo pela direita conservadora.
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