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O caminho de Santiago e a via Argentina: o debate sobre a tática para derrotar Bolsonaro

Manifestante no Chile

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Grandes peixes pescam-se em grandes rios.
A ignorância força-nos a fazer duas vezes o mesmo caminho.

Sabedoria popular portuguesa

 

A pergunta que todos nos fazemos é quando vai chegar até nós a onda que vem dos Andes. Não há um sismógrafo para os terremotos sociais e políticos. Mas os acontecimentos no Equador e no Chile e, em outra escala, as eleições na Bolívia, Uruguai e Argentina nos desafiam a pensar grande. 

Estou entre aqueles que consideram que nada é mais importante para a esquerda brasileira do que discutir a tática para derrotar Bolsonaro. Devemos nos preparar para seguir o caminho de Santiago, e acumular forças para desafiar o neofascismo nas ruas?

Ou devemos abraçar a via argentina, que escolheu desgastar Macri, indo até à realização de seis greves gerais, mas preferiu depois suspender a radicalização das lutas, trocar a candidatura de Cristina Kirchner pela de Alberto Férnandez para garantir a unificação do peronismo e driblar a rejeição, para esperar “a frio” as eleições de 2019?  

Não se trata de opor ou contrapor as mobilizações de massas à participação em eleições. Devemos lutar em todos os terrenos. A questão é decidir qual é o centro da tática, a prioridade. Quando tudo é prioridade, não há prioridade. 

Se a escolha for o quietismo, a espera, a confiança de que será possível impor derrotas eleitorais ao bolsonarismo, sem mobilizações em grande escala que mudem a atual relação social de forças, o perigo de mais derrotas é imenso. E devemos saber que corremos o risco da próxima derrota ser histórica. 

 Mas não basta que milhões estejam dispostos a lutar. Não é só isso. Se a escolha for a tática Kirchner, ou o que podemos abrasileirar como a tática Ciro Gomes, ou seja, renunciar a um programa de esquerda, e a candidaturas de esquerda, para entregar a liderança da oposição a qualquer aventureiro, o perigo aumenta, exponencialmente, porque abre a possibilidade da desmoralização.

Não penso que seja iminente no Brasil uma sublevação semelhante aquela que já tem duas semanas no Chile, e que passa pela greve geral. Não é iminente. Aqueles que defendem a tática da ofensiva permanente contra a tática quietista estão, igualmente, errados. Não temos condições de fazer greve geral contra Bolsonaro agora. Não porque não existam as condições objetivas. Elas estão reunidas há tempos, depois de cinco anos de estagnação econômica e regressão social sem paralelo.

A ansiedade entre os ativistas mais combativos é grande, mas é necessário compreender que não temos as condições subjetivas. A disposição de luta para ir além de protestos, e partir para a luta frontal contra Bolsonaro ainda não está madura. Essa mudança qualitativa no ânimo, na disposição, no humor de massas precisa ser construída, resoluta e pacientemente. Ela virá. Não há porque duvidar. 

O impacto do que se passa no Chile não deve ser diminuído. Individualmente, as pessoas se cansam, desesperam, desmoralizam. Mas as classes sociais não podem desistir. A intensidade das hostilidades na luta de classes flutua, oscila, mas não se interrompe. A onda vai chegar. Mas que esquerda teremos para aproveitar a oportunidade?

Devemos ser consciente que há o perigo da maioria da direção do PT querer repetir contra Bolsonaro a tática que usou contra em FHC. A tática em 1999 foi esperar as eleições de 2002. O preço foi disputar as eleições a frio com a linha “Lulinha paz e amor”. Sejamos honestos, o PT venceu, mas deu Palocci. 

A tática em 2016 foi “não vai ter golpe” e tentar negociar uma maioria no Congresso Nacional para neutralizar Eduardo Cunha. Sejamos honestos, deu Temer. A tática depois do golpe de 2016 foi esperar as eleições de 2018. O preço foi resistir “institucionalmente” ao golpe, e apostar que Lula não seria condenado em segunda instância. Mas foi. O preço foi apostar que mesmo condenado, por uma decisão no STF, poderia ser candidato. Sejamos honestos, a miragem jurídica demonstrou-se fatal. A última ilusão foi que não podendo ser candidato, Haddad poderia vencer Alckmin. Sejamos honestos, deu Bolsonaro. 

Vamos combinar que “esperar 2022” significa subestimar Bolsonaro, mais uma vez. Sem lutas de massas não mudaremos a relação social de forças. Quem defende a tática “Kirchner” quer entregar a liderança da oposição a Ciro Gomes. Afinal, não é muito diferente de defender Marta Suplicy, ou Gabriel Chalita, ou Márcio França como candidatos à prefeitura de São Paulo.

Qual deve a tática eleitoral para o ano que vem? O desafio não é ter candidatura única de esquerda no primeiro turno nas capitais. Isso seria um ultimato. Os partidos são instrumentos de luta, não um fim em si mesmo, mas existem porque há diferenças legítimas. Mais de uma candidatura de esquerda, no primeiro turno, pode ser até útil, se elas estiverem ao serviço da nacionalização da disputa contra Bolsonaro. 

A tática não deve ser o quietismo, e o Feliz 2022 com Lula. O PT tem, evidentemente, o direito de lançar Lula, como em 2018. Aliás, seria indigno se não o fizesse, depois de tudo que aconteceu. Mas não pode repetir os erros de 2017/18. O erro não foi ter lançado Lula. O erro foi não ter lutado para tentar deslocar Temer, apostando que Lula poderia ser candidato. O erro foi não ter compreendido que o inimigo principal não era Alckmin, era Bolsonaro. 

Por último, mas não menos importante, afinal, quem sabe se Lula poderá ser candidato? Não nos faltam, portanto, razões para concluir que a tática deve ser o caminho de Santiago, na perspectiva de luta por um governo de esquerda, com um programa de esquerda. Porque podemos aprender com as lições de nossas derrotas, e com das vitórias que vêm dos Andes.

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Argentina / chile