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BRASIL

Quatro questões para entender o Acordo da Base de Alcântara e seus impactos para as comunidades quilombolas

Por Danilo Serejo e Melisanda Trentin
aulo Hebmüller/AmReal

Crianças da comunidade Itamatatiua

A celebração do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos da América para uso da Base Espacial de Alcântara coloca na ordem do dia um velho debate, sempre prescindido pelo Estado brasileiro, presente no processo de implantação daquela Base Espacial. Estamos falando do direito de propriedade coletiva das comunidades quilombolas que habitam o município de Alcântara. Esta é uma questão fundamental para se entender o que está em jogo neste debate.Pretendemos trazer à tona os principais elementos que, no nosso entender, marcam a trágica relação do programa aeroespacial brasileiro e das comunidades quilombolas de Alcântara.

Pois bem. É preciso sublinhar, de antemão, que a Base Espacial (também conhecida como Centro de Lançamento de Alcântara – CLA) foi concebida no final da década de 1970 e início dos anos 1980 pela ditadura empresarial-militar. Para que alcançasse sua concretude, contou inicialmente com um decreto estadual que desapropriou uma área de 52 mil hectares para fins de interesse social, com vistas à implantação do CLA. Posteriormente, em 1991, o então Presidente Collor, aumentou essa área em mais 10 mil hectares, perfazendo atualmente um total de 62 mil hectares. Estes estariam, em regra, destinados a União e afetos ao programa aeroespacial brasileiro.No que diz respeito ao fato de o estado do Maranhão ter sido o principal fiador do programa aeroespacial em Alcântara durante a ditadura militar, as comunidades quilombolas vem a algum tempo solicitando que o governo estadual formalize um pedido de desculpas oficial. No entanto, estas tem tido sua reivindicação negada pelo governo comunista de Flávio Dino, que parece avesso ao direito à memória, à verdade e à reparação, valores básicos dos direitos humanos e de uma sociedade efetivamente democrática.

O município de Alcântara abriga mais de 200 comunidades quilombolas e é hoje a região com maior população remanescente de quilombos do Brasil

Segundo, a Base Espacial está localizada em um dos maiores territórios tradicionais do país. O município de Alcântara abriga mais de 200 comunidades quilombolas e é hoje a região com maior população remanescente de quilombos do Brasil, esta organizada em três grandes territórios: o Território Étnico Quilombola (em conflito direto com o CLA), o Território da Ilha do Cajual e o Território de Santa Tereza. Todos estes territórios possuem processos de regularização fundiária que se arrastam há anos nas diversas instâncias do Estado brasileiro, sem que se alcance a titulação coletiva, conforme consagrado no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988. Um caso clássico de desamparo institucional que só encontra fundamento numa sociedade estruturalmente racista como a nossa.

Ressalta-se que o Território Étnico de Alcântara, por estar na linha direta de enfrentamento com a Base Espacial, é o que ocupa maior espaço e tempo na mesa de debates das agências oficiais e mesmo em espaços da própria comunidade. Este território abriga aproximadamente 150 comunidades cujo processo de regularização fundiária encontra-se paralisado desde o dia 04 de novembro de 2008. Naquele momento, foi publicado, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, no Diário Oficial da União, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). As razões da não finalização do processo e efetiva titulação deste território estão diretamente relacionadas ao interesse do programa aeroespacial. Mesmo que já se tenha decisões judiciais favoráveis à comunidade que reconhecem que a área pertence a elas e que impõe à União o dever de titulá-la em nome destas.

As razões da não finalização do processo e efetiva titulação deste território estão diretamente relacionadas ao interesse do programa aeroespacial.

Terceiro, o CLA opera há mais de 30 anos sem licença ambiental de funcionamento. Não existe nem o Estudo de Impacto Ambiental nem o respectivo Relatório acerca das atividades ocorridas no CLA. Em outras palavras, não é permitido à comunidade alcantarense, das regiões próximas e à sociedade brasileira mensurar ou dimensionar os eventuais riscos de seu funcionamento, os danos à saúde humana, e os impactos para o meio ambiente, gerados a partir das atividades de lançamentos de foguetes em Alcântara. Apesar disso, o AST encontra-se tramitando em regime de urgência na Câmara dos Deputados sem que o amplo e qualificado debate tenha sido estabelecido com a sociedade brasileira e, em especial, com as comunidades quilombolas de Alcântara, principais interessadas no debate.

É de se destacar que as comunidades quilombolas têm o direito de serem consultadas de maneira prévia, livre, informada e de boa-fé, conforme normatiza a Convenção nº 169, ratificada pelo Brasil em 2002, sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho. No caso em questão, até o presente momento, tanto o Poder Executivo Federal quanto a Câmara dos Deputados têm prescindido do dever de realizar a consulta, a despeito da reivindicação histórica da comunidade.

Não existe nem o Estudo de Impacto Ambiental nem o respectivo Relatório acerca das atividades ocorridas no CLA. Em outras palavras, não é permitido à comunidade alcantarense, das regiões próximas e à sociedade brasileira mensurar ou dimensionar os eventuais riscos de seu funcionamento, os danos à saúde humana, e os impactos para o meio ambiente, gerados a partir das atividades de lançamentos de foguetes em Alcântara.

A este respeito, cumpre colocar em relevo o fato de importantes instituições da sociedade brasileira já terem se manifestado pelo respeito aos direitos referidos às comunidades de Alcântara. Em nota técnica, o Ministério Público Federal (MPF) assentou posição pela imprescindibilidade da consulta prévia, além de apontar flagrantes inconstitucionalidades no referido acordo, como a ofensa à soberania nacional. A nota do MPF alerta ainda para os riscos de turbação da posse dos quilombolas que o AST apresenta.

De igual maneira, a Comissão Arns de Direitos Humanos se posicionou. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Associação Brasileira de Antropologia e o Conselho Nacional de Direitos Humanos também corroboraram o entendimento de que o AST é danoso à soberania nacional e ao território ancestral das comunidades de Alcântara.

Flávio Dino (PCdoB) governador do Maranhão tem se destacado como uma das vozes mais sólidas no campo da oposição à lógica bolsonarista em voga no Brasil. No entanto, no caso do Acordo na Base de Alcântara com os Estados Unidos, o mesmo adere ao bolsonarismo e se perfila à vassalagem colonealesca orquestrada pelo Planalto com relação aos americanos.

Quarto, Flávio Dino (PCdoB) governador do Maranhão tem se destacado como uma das vozes mais sólidas no campo da oposição à lógica bolsonarista em voga no Brasil. No entanto, no caso do Acordo na Base de Alcântara com os Estados Unidos, o mesmo adere ao bolsonarismo e se perfila à vassalagem colonealesca orquestrada pelo Planalto com relação aos americanos. Não bastasse isso, toda a bancada maranhense (da esquerda e da direita) no Congresso Nacional também adere, sem o menor constrangimento, à referida lógica de entreguismo e subserviência.

No Congresso, apenas o PSOL e o PT se posicionaram contra o Acordo, o primeiro com forte defesa dos direitos das comunidades quilombolas, o segundo com ênfase maior na defesa da soberania nacional. Os demais partidos do campo da esquerda também correm, neste caso, ao lado do bolsonarismo, inclusive, PSB, PDT e, como dito, o PCdoB. No que se refere a estes partidos terem apresentado votos em separados na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, da Câmara dos Deputados, avalia-se que o efeito prático é nulo, uma vez que essa modalidade de voto não influi na tramitação do Acordo. Também não muda o voto final dos parlamentares e de suas legendas que são favoráveis ao Acordo.

Na prática, autorizar a entrega da Base de Alcântara ao imperialismo estadunidense em condições de total negação da propriedade coletiva das comunidades quilombolas de Alcântara, de ausência de licença ambiental de funcionamento do CLA, e de negativa do direito à consulta prévia, livre e informada da qual as comunidades fazem jus, é fazer a opção pelo racismo estrutural

Em conclusão, para além da lógica subserviente presente na chancela deste Acordo, sublinhe-se: na prática, autorizar a entrega da Base de Alcântara ao imperialismo estadunidense em condições de total negação da propriedade coletiva das comunidades quilombolas de Alcântara, de ausência de licença ambiental de funcionamento do CLA, e de negativa do direito à consulta prévia, livre e informada da qual as comunidades fazem jus, é fazer a opção pelo racismo estrutural. Este há pelo menos 30 anos determina as tragédias e fracassos experimentados pelas comunidades quilombolas da região, entre elas, a deliberada negativa de titulação coletiva do seu território tradicional. Em outras palavras, é a opção pela manutenção do desamparo institucional às comunidades, cujo resultado fatal é a negação do direito ao futuro e do direito de existir.

Não há meias palavras quando se trata da manutenção da lógica estrutural e institucional racista e violenta, a história mostrará este processo e os atores que coadunaram com ele como aliados do racismo estrutural que assola o Brasil.

Publicação original: Aurora.jor.br