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OPRESSÕES

Camaradas da esquerda, precisamos debater a nossa masculinidade

Vinícius Prado*, de Curitiba (PR)
Reprodução

Cena do filme “Os 300 de Esparta”

Esse texto não tem a intenção de ser conclusivo, ou apontar caminhos sobre esse debate. Preocupo-me aqui em levantar provocações acerca de um tema que deve ser tratado com grande importância dentro da esquerda como um todo, e que quase sempre é deixado de lado, o que nos enfraquece enquanto esquerda e enquanto organizações. Afinal quantas companheiras mulheres, quantos companheiros LGBT’s já não abandonaram suas militâncias porque encontraram pela frente homens que não sabiam lidar com sua masculinidade?

O debate acerca das opressões tem ganhado força no campo da esquerda nas últimas décadas, porém durante muito tempo haviam inúmeras correntes de pensamento que defendiam que debater o tema das opressões era sucumbir a pressão pós-moderna e abandonar a questão central da sociedade capitalista que é opressão entre capital e trabalho.

Tais posicionamentos se sustentavam num princípio de que superando o capitalismo, as demais opressões seriam superadas, pois elas estão vinculadas a estrutura capitalista. Entretanto se é verdade que a sociedade capitalista se estrutura em boa medida a partir da reprodução do machismo, da misoginia, do racismo e da lgtbfobia, por outro lado as experiências de ruptura com o capitalismo que tivemos ao longo da história, ainda que limitadas, mostram que a simples superação do capitalismo não leva a superação destas opressões.

Compreender que para superar as opressões não basta apenas superar o capitalismo, é um processo que a esquerda avançou muito nas últimas décadas, mas que ainda existem resistências e contradições, porém, ainda assim, apenas reconhecer que estes debates devem ser feitos é muito pouco, sobre tudo para os camaradas que assim como eu, fazem parte do seleto grupo privilegiado dos homens, brancos, héteros e cis.

Talvez a minha geração (que começou a militar entre fim da década de 1990 e início dos anos 2000) tenha sido a primeira que já teve em sua formação um debate mais direto sobre opressões, ainda que limitado, pois é uma geração que se formou mais com a noção de que se posicionar contra o debate de opressões era politicamente errado, do que com um real convencimento da importância de se combater todo tipo de opressão para a superação do capitalismo e a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Em grande medida, é essa a relação que impera dos homens héteros com a pauta de opressões, que é a de compreender que politicamente é nosso dever defender a importância desses debates, mas sem construir nenhum compromisso real e prático com a luta pela superação destas opressões, como se a responsabilidade desta luta fosse apenas das mulheres, negros e negras, LGBTs e assim por diante.

E é essa falta de comprometimento e compreensão sobre esse debate que faz com que nós, homens de esquerda, tenhamos uma relação extremamente mal resolvida com a nossa própria masculinidade, é dessa construção que deriva o que ficou conhecido como o “Esquerdomacho”, fazemos discursos bonitos, belas intervenções, mas não admitimos que nossas falhas sejam apontadas, e muito menos reconhecemos os erros que cometemos, procuramos na maioria das vezes construir justificativas, e atenuantes, e surgem as clássicas frases “nem todo homem”, “mas tem mulher que também…’’, entre outras.

No geral nos formamos com a ideia de que não somos um machista clássico, ou seja, não implicamos com as roupas curtas da companheira, e nem sobre como ela dança numa festa, nós cozinhamos (as vezes), fazemos atividades domésticas (sempre que possível), cuidamos dos filhos (sempre que temos tempo), debatemos sobre tudo com a companheira (com uma dose de mansplaining muitas vezes), e que isso nos coloca num nível acima da média, que diante disso apontar nossos desvios machistas é injusto, que é não reconhecer “nosso esforço”, sem perceber que isso na maioria das vezes não é nem o mínimo. É como se acreditássemos que nossas companheiras deveriam agradecer por estar conosco e não com machistão clássico, que agora se personificou nos eleitores do Bolsonaro. E é justamente, por pensar assim, que muitas vezes acabamos nos comportar  de maneira tão escrota quanto esse machistão clássico que tentamos nos opor.

E romper com isso demanda por um lado formação política e muito debate, mas tendo a consciência de que esta tarefa é nossa e demais ninguém, pois é muito comum cobrarmos as companheiras mulheres, os companheiros LGBT’s, os e as companheiras negras pela falta de formação que nossas organizações tem na área de opressões, mas se queremos realmente ter algum comprometimento com essas pautas, devemos descer do alto do nosso pedestal de privilégios e assumirmos a responsabilidade por nossa formação.

Por um outro lado, precisamos assumir o compromisso com um movimento de mudança de atitudes, pois nós (homens) somos “educados”, tanto pela família quanto pela sociedade, a exercer uma masculinidade tóxica, e achar completamente normal isso, e na maioria das vezes mais difícil que mudar nossas atitudes é conseguir perceber que essas atitudes fazem parte do exercício de uma masculinidade tóxica. Fugir dos estereótipos, não se render a só tomar as atitudes que esperam de você enquanto “homem”, fugir dos mitos sobre o que é e como deve se portar um “homem” só é possível quando conseguimos ter a capacidade de perceber quais são as atitudes que nos levam a reproduzir tal lógica, e isso é um exercício diário, difícil no qual temos que contar principalmente com muita capacidade de autoanálise e reflexão, pois trata-se de um movimento de mudança de atitudes que só pode ser feito por nós, mas também temos que ter muita sensibilidade para assimilarmos críticas e utilizarmos elas para crescer, porque pode ter certeza, que na grande maioria das vezes que alguma mulher diz que você teve uma atitude de “macho escroto” provavelmente ela esteja certa e você precisa refletir sobre a crítica, por mais que no momento a crítica não lhe pareça justa ou que você não concorde, em vez de justificar-se procurar se colocar no lugar do outro e refletir sobre sua atitude sempre é mais produtivo. E é preciso ficar atento, porque muitas vezes, mesmo quando achamos que estamos tendo atitudes que vão no sentido de superar essa toxicidade, reproduzimos ainda assim a mesma lógica. E reproduzir essa masculinidade tóxica é danoso não só para as pessoas que se relacionam conosco no dia a dia, principalmente as mulheres, mas também para nós, porque arrebenta nossa saúde mental e cria homens frustrados e infelizes.

 

*Vinícius Prado (https://www.facebook.com/viniciuspradopsol/) é historiador, mestre em educação, militante da Resistência/PSOL e membro da Executiva Estadual da CSP-Conlutas/PR