No calendário que escrevo, há um mundo em rebeldia. Das mulheres curdas de Rojava aos indígenas no Equador, dos jovens chilenos ao povo preto do Haiti, estamos acompanhando lutas poderosas que são capazes de abalar o mundo capitalista como um todo. No norte, já há um temor por um apocalipse climático causado pela doença do lucro. Muitas, muitos devem se perguntar: por que o Brasil não está se levantando igualmente? As palavras que escrevo hoje são conforto para narrar a história silenciosa da construção de uma unidade histórica entre índios, negros e o campo popular. Esta é a história do grande encontro da Teia dos Povos na Chapada Diamantina na 6ª Jornada de Agroecologia da Bahia na Cabeceira do Rio Utinga, Terra Sagrada dos Povos Payayá.
Assim se reuniram movimentos, organizações sociais, comunidades quilombolas, ribeirinhas e muitas nações indígenas em Utinga (BA) entre os dias 16 e 20 de outubro passado. Com o medo de deixar alguém de fora, destacaria os movimentos e organizações sociais como MST, MSTB (sem-teto), MLT, MPA (pequenos agricultores), CETA, URC, Reaja ou será morta, Reaja ou será morto e MPP (pescadoras). Muitos quilombos baianos que não participam de um movimento social específico fizeram-se presentes como a Comunidade Quilombola da Lagoa de Melquíades e Amâncio (Vitória da Conquista-BA) e o Quilombo da Lagoa Grande (Feira de Santana). Para lá confluíram muitas nações indígenas como Pataxó, Pataxó Hã-hã-hãe, Tupinambá, Tapuya, Payayá, Pankararu, Fulni-ô, Kiriri-Xocó… É certo que as principais lideranças de base dos movimentos e territórios em luta da Bahia estavam presentes. Também estavam representantes indígenas de Alagoas e Pernambuco, bem como representantes da Teia dos Povos do Maranhão. Um grande acampamento se construiu com lonas, barracas, cozinhas e muita rebeldia.
As mesas redondas para analisar nossa conjuntura e refletir sobre nossos caminhos se formaram com uma expressiva minoria de homens brancos. Eram as falas das mulheres negras e indígenas que qualificaram o debate, pois diferente de muitos eventos de esquerda, a análise de conjuntura fora feito a partir das lideranças de base dos movimentos e territórios. A partir das mesas foi possível constatar que não havia um território que não estivesse sendo atacado por grandes empreendimentos. Constatamos ali que estávamos diante de uma nova onda de invasão estrangeira com os mesmos aspectos da colonização: tomar terras, extrair riquezas, cooptar lideranças e matar aquelas que resistem. Tudo isto em um estado governado por um partido que se enxerga como esquerda. E esta foi uma reflexão importante realizada pela pescadora e quilombola Elionice Sacramento (MPP) que mostrou a difícil posição dela de fundadora do PT e ao mesmo tempo vítima no território dos empreendimentos e crimes ambientais apoiados pelos governo do estado. Percebemos ali que os povos negros e indígenas estavam diante de duas frentes de morte: a bala ou a destruição do meio ambiente. Enquanto falávamos, sabíamos que as praias do litoral nordestino estavam sendo contaminadas em toda sua extensão. O que poderão fazer as pescadoras e marisqueiras que já não poderão vender seus produtos por conta de contaminação? Não estamos falando de uma escala de morte mais lenta do que a bala, mas ainda assim morte?!
Foi nesse contexto, dentro de um momento de reunião das lideranças que Hamilton Borges (Reaja) refletiu sobre a necessidade de unidade: “nossos mortos não são negros e índio? Alguém tá vendo os brancos morrerem sistematicamente?”. A costura de uma aliança negra, indígena e popular é essencial num momento em que o capital pode descartar uma gigantesca parte dos trabalhadores por conta de sua infraestrutura automatizada. Há, por um lado, portanto um descarte numa política de genocídio, sobretudo nas periferias das grandes cidades, e, por outro, uma criminalização das lideranças do campo, das matas e das águas. O próprio Hamilton Borges sofreu intimidação policial com duas armas em ponto de disparo apontadas para sua cabeça quando regava uma horta construída com a Teia no Engenho Velho de Brotas (Salvador-BA) no início do mês de outubro. No baixo sul da Bahia, distrito de Camamu, no dia 14 de outubro, o dirigente estadual do MST, Neto Alves, sofreu tentativa de homicídio por 10 homens que invadiram o acampamento sem-terra do Orojó. Estas violências não param e é por isso que a unidade é imprescindível.
Foram cinco dias entre oficinas, plenárias, lançamentos de livro e debates livres de auto-organização dos territórios da Teia dos Povos. Os povos falaram e ouviram uns aos outros. Parecia um consenso que o tempo da conciliação passou e os resultados não foram os melhores. De muitos lugares se ouvia que a relação com os governos não são capazes de trazer paz aos territórios. A companheira Nádia Akawã (tupinambá) criticou profundamente a violência do governo estadual e federal e o fato de que os povos indígenas não podem ter esperanças de que a ajuda virá destes governos. Também o debate aprofundou a necessidade de transformações dentro de nossos territórios. Bárbara Pankararu (Pernambuco) falou sobre sua luta contra o machismo e a violência de gênero dentro das comunidades indígenas. Uma luta dura que precisa ser combatida mesmo num momento em que antigos posseiros de suas terras atacaram a Terra Indígena Pankararu após a eleição do presidente Bolsonaro. E a quem vamos apelar para defender nossos territórios em situações como esta? Ao executivo federal com ampla relação com milicianos que atacam nossos territórios? Aos governos estaduais aliados dos grandes empreendimentos que machucam a mãe terra? A resposta veio do pescador da Resex de Canavieira, João Barba: “nós só temos a nós, nós somos uma grande família e como família, nós nos defendemos uns aos outros”.
O encontro contou ainda com uma exposição de cartazes zapatista que o Alejandro Reyes (Rádio Zapatista, Chiapas, México) trouxe junto com uma palavra de inspiração sobre os sete princípios do EZLN. Por coincidência ou não, o Conselho Indígena de Governo (CIG) e o Congresso Nacional Indígena (CNI) do México, chamaram para 12 de outubro uma Jornada Global Samir Flores Vive. Em Oaxaca a convocação tratava de “en el marco del Día de la Resistencia Indígena, Negra y Popular”. O texto que precede a 6ª Jornada aqui na Bahia asseverava que uma das 11 tarefas da Teia dos Povos era “Lutar para construir a unidade ‘Índia, Negra e Popular’”. A confluência é una porque o ataque que os povos sofrem é um: o capitalismo racista operado deste o norte global. Mestre Joelson Ferreira (MST), então, defendeu em uma fala enérgica e enfática que nós seguíssemos o exemplo zapatista e construísse a autonomia dos territórios, que construíssemos tantas soberanias quanto pudermos e que abandonássemos a ilusão de que democracia burguesa poderá mudar o cenário.
Ao longo de cinco dias, movimentos sociais, territórios, nações indígenas e povos negros construíram uma grande aliança e compromisso de crescê-la ainda mais em 2020. A próxima ação será no mês de março do próximo ano quando as mulheres da Teia dos Povos junto com seus movimentos e territórios construirão uma grande ação em Salvador. Até lá, temos o compromisso que multiplicar as pré-jornadas de modo a construir a Teia nos territórios. Cada pré-jornada realizada regional ou localmente, fortalece a relação dos movimentos sociais de modo geral, organiza a ação direta na defesa por terra e território e produz soberania através dos mutirões.
Estamos a poucos passos de uma decisão difícil e importante. É preciso escutar a sabedoria ancestral e nosso povo. Não há luta sem a organização, disciplina e consciência das bases. A cada manhã e a cada noite os ancestrais falaram e cantaram. A aliança está firme e a Teia dos Povos produziu a Carta da Sexta Jornada que precisa ser lida por militantes de esquerda, comunidades e territórios, movimentos sociais, pois ali está a palavra estratégica. A Teia também está escrevendo uma carta direcionada aos movimentos sociais para os convidar a uma reflexão sobre unidade de povos e organizações de luta. Não há saída na fragmentação e a rebeldia para nos manter vivos é o que sobrou. Não há mais ilusões com a participação na democracia burguesa, tampouco com a conciliação de classes. Se somos odiados pelos de cima, o caminho da luta é o único caminho de confortar nossos corações e trazer esperança de paz!
Foram mais de quatro mil pessoas de todas as regiões da Bahia, representantes de mais cinco estados num grito uníssono por justiça, soberania e paz. “O que nos une é maior do que o que nos separa” é a atualização da expressão dos malês: “Paz entre nós, guerra aos nossos senhores”. Esta aliança entre campo, cidade, matas e águas é o marco em uma nova história de levante, vida e luta.
Diga ao povo que avance!
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