Alienação, ‘Lula Livre’ e a polêmica na esquerda socialista


Publicado em: 17 de outubro de 2019

Movimento

Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Movimento

Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Compartilhe:

Ouça agora a Notícia:

Recentemente, um setor da esquerda socialista que é contrário à campanha Lula Livre posicionou-se publicamente contra a sua prisão, defendendo que ele tenha um julgamento justo e fundamentado em provas concretas. Creio que, para compreender a polêmica a favor ou contra o “Lula Livre”, é necessário recorrer ao conceito de alienação, que é, resumindo de forma bem simplista, quando alguém diz uma coisa e faz outra sem ter consciência dessa contradição.

Não vou debater outras polêmicas que existem – por exemplo, qual lema ou reivindicação devemos ter, ou se nós concretamente temos dado pouco peso a outras pautas tão ou mais importantes que essa. Cada uma delas deve ser feita em seu próprio mérito, sem juntar “tudo no mesmo saco”.

A polêmica desse texto é com quem compreende que a operação Lava Jato, apesar das aparências, tem natureza política e que a prisão do Lula teve o objetivo puro e simples de tirá-lo das eleições, mas que não defende pública e abertamente a liberdade de Lula ou que, na prática, quer empurrar essa luta para debaixo do tapete, como quem sente vergonha dela.

O que é “alienação”? É de comer?

Alienar, segundo o dicionário, significa separar, afastar. Como Leandro Konder explica em seu livro sobre alienação, o ser humano está dividido de si mesmo. Parece absurdo, mas é bem simples: nós temos nossa consciência longe de nossa existência concreta e real. Pensamos que somos uma coisa, mas na verdade somos outra.

O exemplo clássico é a alienação do trabalho. O operário na fábrica faz gestos repetitivos sem saber o que está fazendo, por que e para quê. Na maioria das vezes, não conhece nem de forma superficial o próprio processo de produção. Ouvi da boca de um operário que, quando se aposentou, decidiu passear pela fábrica para ver como era a produção. Foi a primeira vez que ele entendeu pra que servia o que ele fez durante toda sua carreira.

A música “A construção”, de Chico Buarque, dá um exemplo ao mesmo tempo extremo e comum. É a história de um pedreiro que vive como máquina, trabalha com desgosto, tem seu almoço como se fosse príncipe e que, ao final, foi alienado de sua própria vida, tornando-se um mero corpo atrapalhando o sábado. Isso tudo porque o trabalho, que é parte de nossa própria existência, é alienado e apropriado pelos exploradores.

Outro exemplo é quando alguém pensa que a existência LGBTI+ é uma novidade. Essa frase é dita desde o final do século retrasado! A que ponto chega o desconhecimento da sociedade sobre si mesma! Existem travestis há décadas nos programas de humor. Os jornais da época da Ditadura diziam que a polícia “limpava” a cidade dos “homossexuais, prostitutas e desocupados”. Porém, quando essas mesmas LGBTI+ exigem o direito à cidadania, a sociedade faz um grande escândalo com a “novidade”, com a “ideologia de gênero” ou sei lá o quê.

Pior que isso: eu assistia desde criança esses programas de humor. Eu vi o filme sobre a Joana D’Arc, que, mesmo que tenha sido uma mulher cis com maneiras tidas como masculinas, foi morta por estas. Só décadas depois é que refleti seriamente como isso tudo se refletia na minha vida concreta, quando uma mulher trans (a Bia) fez discussões desse tipo no Facebook. O debate dela desfez essa separação, esse afastamento entre mim e mim mesma.

Alienação versus hipocrisia

Existe uma distinção muito grande entre alienação (ignorância) e hipocrisia (mentira): a consciência. A pessoa hipócrita sabe o que está dizendo e fazendo, portanto não existe segregação entre o que ela pensa e o que ela faz. Ou seja, apesar de parecida, a alienação é o oposto da hipocrisia.

Recomendo o filme Rosa Luxemburgo, de 1986. Nele é possível ver a ignorância do povo que, por uma embriaguez chauvinista (nacionalista), estava sendo arrastado à morte numa guerra sangrenta (a Primeira Guerra Mundial). No mesmo filme, fica nítido o oportunismo dos socialdemocratas. Numa discussão com a Rosa, Kautsky parece estar alienado ao dizer: “Devemos aceitar que os outros países invadam o nosso sem nos defender?” Mas, depois da resposta da Rosa, ele muda o discurso e revela a sua real intenção: “Se nós formos contra a guerra agora, perderemos votos. Estamos quase chegando ao poder.”

Aaaaaah, safado sem vergonha de uma figa! Isso é politicagem oportunista e traidora! Se milhões morrerão, isso não importa, o que importa são os votos!

Demorou para Rosa perceber as intenções perversas de Kaustky. O povo estava embriagado, mas ele estava sóbrio.

É por isso que, em relação à campanha Lula Livre, não tenho nenhuma confiança em sua direção. Lula e outros dirigentes do PT, embora nunca tenham defendido abertamente a morte do próprio povo, como fez Kautsky, já cometeram muitos atos traiçoeiros. A própria condução dessa campanha tem sido vergonhosa: ela está sendo usada como um palanque eleitoral.

O reflexo disso é nítido. A direção desse ato que se propõe a ser uma luta busca convencer as próprias pessoas presentes que a “solução” são as eleições de 2020. Ou seja, não é a luta. O que faz a maioria das pessoas que foram lá para lutar? Vão embora. Em grande parte, quem fica é da época em que o PT era de luta e ainda está convencidas de que esse partido é a solução.

É por isso que o que mais se ouve é que “até o Lula é contra o Lula Livre”. O fato é que os dirigentes petistas preferem convencer as pessoas a fazerem parte de sua campanha eleitoral. Essa politicagem só pode levar ao próprio esvaziamento da campanha, da luta concreta.

Alienação ou coerência?

Muitas pessoas estarão inclinadas a dizer que eu acabo sendo exemplo da alienação. Afinal, sou e sempre fui crítica ao Lula e agora estou defendendo sua liberdade. Por quê? Porque ser favorável à política do Lula e ser a favor de sua liberdade são duas questões bem distintas.

Por exemplo, num texto anterior, critiquei abertamente o machismo de Silvio Santos contra a Rachel Scheherazade, inclusive na contramão de grande parte da esquerda. Ora, é com esse mesmo machismo que o apresentador usa e abusa de travestis e mulheres trans em seus programas. Não existe machismo que afete só uma mulher. Então eu defendo a Scheherazade? Certamente não. Sou contra ela e sou contra o machismo, simples assim.

Muitas pessoas têm dito que Lula não é o primeiro nem o último preso político. É verdade, o que existe de prisões injustas, arbitrárias e até execuções sem julgamento pela própria polícia, não está escrito — não publicamente. Vários textos que já escrevi versam sobre esse tema, particularmente em relação à violência de policiais contra as travestis que estão na prostituição, a vasta maioria por terem sido atiradas para lá.

Mas em quê, exatamente, uma coisa se contrapõe à outra? Talvez pelo fato de que o ânimo contra a prisão do Lula seja maior, em grande parte pelas demais ainda serem encaradas com naturalidade pela população e com apatia pelos dirigentes petistas. De qualquer modo, ser contra a prisão de Lula não nos impede de criticar o PT por nunca ter dado prioridade à luta contra outras injustiças. É o oposto disso. Nada dá mais autoridade do que defender para o Lula o direito que ele mesmo pouco se importou em defender para o povo.

A maior denúncia contra a incoerência é ser coerente.

Eu sou #LulaLivre

Em relação às pessoas e correntes socialistas que estão contra o “Lula Livre”, não creio que seja hipocrisia. Mesmo que acreditasse, não faria essa acusação sem provas, sou totalmente contra isso. O que percebo é a alienação que é causada pela opinião popular, grande parte favorável à operação Lava Jato e pela pressão de setores que têm aversão ao PT.

A verdade é que grande parte da juventude mais combativa, por mais que tenha consciência do caráter político da Lava Jato, percebe um abismo, uma alienação, entre ela e a galera do Lula Livre. A juventude viu o PT como governo, não como direção das lutas contra o governo, e tem consciência política muito mais renovada, mais profunda, particularmente em relação às opressões. Os velhos sindicalistas, agentes políticos e dirigentes partidários não conseguem dialogar com o setor mais dinâmico da vanguarda.

Quando digo que é essa razão das correntes serem contra a campanha, não estou tirando isso da minha cabeça. São as pessoas e correntes que usam a composição e a direção dos atos para justificar uma posição contra a campanha ou para empurrá-la para debaixo do tapete. Também usam o argumento da falta de popularidade dessa bandeira principalmente na juventude.

No Encontro Nacional de Mulheres do PSOL, por exemplo, um setor (o Bloco de Esquerda) apresentou um destaque à resolução em defesa da campanha Lula Livre. A justificativa usada era que, supostamente, a campanha estava tendo muita ênfase na atuação do partido, que ela deveria ter hierarquia menor. Na prática, porém, defenderam a supressão da resolução por completo, não qualquer alteração falando sobre ênfase ou hierarquia. É um exemplo de alienação.

Por mais que eu seja contra o projeto político lulista, eu sou a favor do povo que acredita nele e vou defender seu direito de votar em seu maior representante. Vou continuar explicando, a cada eleição, a cada luta, a cada conversa, que o PT não vai resolver os problemas mais sentidos pela população. Mas, até para poder dizer isso com mais qualidade, tenho que defender a liberdade do Lula. Seria mais fácil criticá-lo se ele não fosse vítima.


Contribua com a Esquerda Online

Faça a sua contribuição