Recentemente, um setor da esquerda socialista que é contrário à campanha Lula Livre posicionou-se publicamente contra a sua prisão, defendendo que ele tenha um julgamento justo e fundamentado em provas concretas. Creio que, para compreender a polêmica a favor ou contra o “Lula Livre”, é necessário recorrer ao conceito de alienação, que é, resumindo de forma bem simplista, quando alguém diz uma coisa e faz outra sem ter consciência dessa contradição.
Não vou debater outras polêmicas que existem – por exemplo, qual lema ou reivindicação devemos ter, ou se nós concretamente temos dado pouco peso a outras pautas tão ou mais importantes que essa. Cada uma delas deve ser feita em seu próprio mérito, sem juntar “tudo no mesmo saco”.
A polêmica desse texto é com quem compreende que a operação Lava Jato, apesar das aparências, tem natureza política e que a prisão do Lula teve o objetivo puro e simples de tirá-lo das eleições, mas que não defende pública e abertamente a liberdade de Lula ou que, na prática, quer empurrar essa luta para debaixo do tapete, como quem sente vergonha dela.
O que é “alienação”? É de comer?
Alienar, segundo o dicionário, significa separar, afastar. Como Leandro Konder explica em seu livro sobre alienação, o ser humano está dividido de si mesmo. Parece absurdo, mas é bem simples: nós temos nossa consciência longe de nossa existência concreta e real. Pensamos que somos uma coisa, mas na verdade somos outra.
O exemplo clássico é a alienação do trabalho. O operário na fábrica faz gestos repetitivos sem saber o que está fazendo, por que e para quê. Na maioria das vezes, não conhece nem de forma superficial o próprio processo de produção. Ouvi da boca de um operário que, quando se aposentou, decidiu passear pela fábrica para ver como era a produção. Foi a primeira vez que ele entendeu pra que servia o que ele fez durante toda sua carreira.
A música “A construção”, de Chico Buarque, dá um exemplo ao mesmo tempo extremo e comum. É a história de um pedreiro que vive como máquina, trabalha com desgosto, tem seu almoço como se fosse príncipe e que, ao final, foi alienado de sua própria vida, tornando-se um mero corpo atrapalhando o sábado. Isso tudo porque o trabalho, que é parte de nossa própria existência, é alienado e apropriado pelos exploradores.
Outro exemplo é quando alguém pensa que a existência LGBTI+ é uma novidade. Essa frase é dita desde o final do século retrasado! A que ponto chega o desconhecimento da sociedade sobre si mesma! Existem travestis há décadas nos programas de humor. Os jornais da época da Ditadura diziam que a polícia “limpava” a cidade dos “homossexuais, prostitutas e desocupados”. Porém, quando essas mesmas LGBTI+ exigem o direito à cidadania, a sociedade faz um grande escândalo com a “novidade”, com a “ideologia de gênero” ou sei lá o quê.
Pior que isso: eu assistia desde criança esses programas de humor. Eu vi o filme sobre a Joana D’Arc, que, mesmo que tenha sido uma mulher cis com maneiras tidas como masculinas, foi morta por estas. Só décadas depois é que refleti seriamente como isso tudo se refletia na minha vida concreta, quando uma mulher trans (a Bia) fez discussões desse tipo no Facebook. O debate dela desfez essa separação, esse afastamento entre mim e mim mesma.
Alienação versus hipocrisia
Existe uma distinção muito grande entre alienação (ignorância) e hipocrisia (mentira): a consciência. A pessoa hipócrita sabe o que está dizendo e fazendo, portanto não existe segregação entre o que ela pensa e o que ela faz. Ou seja, apesar de parecida, a alienação é o oposto da hipocrisia.
Recomendo o filme Rosa Luxemburgo, de 1986. Nele é possível ver a ignorância do povo que, por uma embriaguez chauvinista (nacionalista), estava sendo arrastado à morte numa guerra sangrenta (a Primeira Guerra Mundial). No mesmo filme, fica nítido o oportunismo dos socialdemocratas. Numa discussão com a Rosa, Kautsky parece estar alienado ao dizer: “Devemos aceitar que os outros países invadam o nosso sem nos defender?” Mas, depois da resposta da Rosa, ele muda o discurso e revela a sua real intenção: “Se nós formos contra a guerra agora, perderemos votos. Estamos quase chegando ao poder.”
Aaaaaah, safado sem vergonha de uma figa! Isso é politicagem oportunista e traidora! Se milhões morrerão, isso não importa, o que importa são os votos!
Demorou para Rosa perceber as intenções perversas de Kaustky. O povo estava embriagado, mas ele estava sóbrio.
É por isso que, em relação à campanha Lula Livre, não tenho nenhuma confiança em sua direção. Lula e outros dirigentes do PT, embora nunca tenham defendido abertamente a morte do próprio povo, como fez Kautsky, já cometeram muitos atos traiçoeiros. A própria condução dessa campanha tem sido vergonhosa: ela está sendo usada como um palanque eleitoral.
O reflexo disso é nítido. A direção desse ato que se propõe a ser uma luta busca convencer as próprias pessoas presentes que a “solução” são as eleições de 2020. Ou seja, não é a luta. O que faz a maioria das pessoas que foram lá para lutar? Vão embora. Em grande parte, quem fica é da época em que o PT era de luta e ainda está convencidas de que esse partido é a solução.
É por isso que o que mais se ouve é que “até o Lula é contra o Lula Livre”. O fato é que os dirigentes petistas preferem convencer as pessoas a fazerem parte de sua campanha eleitoral. Essa politicagem só pode levar ao próprio esvaziamento da campanha, da luta concreta.
Alienação ou coerência?
Muitas pessoas estarão inclinadas a dizer que eu acabo sendo exemplo da alienação. Afinal, sou e sempre fui crítica ao Lula e agora estou defendendo sua liberdade. Por quê? Porque ser favorável à política do Lula e ser a favor de sua liberdade são duas questões bem distintas.
Por exemplo, num texto anterior, critiquei abertamente o machismo de Silvio Santos contra a Rachel Scheherazade, inclusive na contramão de grande parte da esquerda. Ora, é com esse mesmo machismo que o apresentador usa e abusa de travestis e mulheres trans em seus programas. Não existe machismo que afete só uma mulher. Então eu defendo a Scheherazade? Certamente não. Sou contra ela e sou contra o machismo, simples assim.
Muitas pessoas têm dito que Lula não é o primeiro nem o último preso político. É verdade, o que existe de prisões injustas, arbitrárias e até execuções sem julgamento pela própria polícia, não está escrito — não publicamente. Vários textos que já escrevi versam sobre esse tema, particularmente em relação à violência de policiais contra as travestis que estão na prostituição, a vasta maioria por terem sido atiradas para lá.
Mas em quê, exatamente, uma coisa se contrapõe à outra? Talvez pelo fato de que o ânimo contra a prisão do Lula seja maior, em grande parte pelas demais ainda serem encaradas com naturalidade pela população e com apatia pelos dirigentes petistas. De qualquer modo, ser contra a prisão de Lula não nos impede de criticar o PT por nunca ter dado prioridade à luta contra outras injustiças. É o oposto disso. Nada dá mais autoridade do que defender para o Lula o direito que ele mesmo pouco se importou em defender para o povo.
A maior denúncia contra a incoerência é ser coerente.
Eu sou #LulaLivre
Em relação às pessoas e correntes socialistas que estão contra o “Lula Livre”, não creio que seja hipocrisia. Mesmo que acreditasse, não faria essa acusação sem provas, sou totalmente contra isso. O que percebo é a alienação que é causada pela opinião popular, grande parte favorável à operação Lava Jato e pela pressão de setores que têm aversão ao PT.
A verdade é que grande parte da juventude mais combativa, por mais que tenha consciência do caráter político da Lava Jato, percebe um abismo, uma alienação, entre ela e a galera do Lula Livre. A juventude viu o PT como governo, não como direção das lutas contra o governo, e tem consciência política muito mais renovada, mais profunda, particularmente em relação às opressões. Os velhos sindicalistas, agentes políticos e dirigentes partidários não conseguem dialogar com o setor mais dinâmico da vanguarda.
Quando digo que é essa razão das correntes serem contra a campanha, não estou tirando isso da minha cabeça. São as pessoas e correntes que usam a composição e a direção dos atos para justificar uma posição contra a campanha ou para empurrá-la para debaixo do tapete. Também usam o argumento da falta de popularidade dessa bandeira principalmente na juventude.
No Encontro Nacional de Mulheres do PSOL, por exemplo, um setor (o Bloco de Esquerda) apresentou um destaque à resolução em defesa da campanha Lula Livre. A justificativa usada era que, supostamente, a campanha estava tendo muita ênfase na atuação do partido, que ela deveria ter hierarquia menor. Na prática, porém, defenderam a supressão da resolução por completo, não qualquer alteração falando sobre ênfase ou hierarquia. É um exemplo de alienação.
Por mais que eu seja contra o projeto político lulista, eu sou a favor do povo que acredita nele e vou defender seu direito de votar em seu maior representante. Vou continuar explicando, a cada eleição, a cada luta, a cada conversa, que o PT não vai resolver os problemas mais sentidos pela população. Mas, até para poder dizer isso com mais qualidade, tenho que defender a liberdade do Lula. Seria mais fácil criticá-lo se ele não fosse vítima.
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