Pular para o conteúdo
OPRESSÕES

A fantasia da normalidade: neoliberalismo, família e nova direita

Cinzia Arruzza*

Originalmente publicada na Revista da Associação Americana de Filosofia, em 25 de setembro de 2019. Disponível em: https://blog.apaonline.org/2019/09/25/the-fantasy-of-normalcy-neoliberalism-the-family-and-the-new-right/   

Tradução: Carolina Freitas

 

Em um comentário publicado na New York Magazine em 2018, Andrew Sullivan alerta o movimento LGBT contra seus “excessos” esquerdistas, que correm o risco de comprometer as realizações do movimento pelos direitos dos gays e de abrir as portas para uma direita reacionária em ascensão: 

Receio que a era Trump não seja apenas sobre esse constrangimento hediondo que representa o presidente. Também é alimentado pela reação de muitas pessoas comuns aos excessos da luta da esquerda por justiça social – em relação à imigração, raça, gênero e orientação sexual. Se o movimento pelos direitos dos gays decidir se envolver com esse novo esquerdismo e abandonar a moderação e o integracionismo do passado recente, eles correm o risco de transformar a igualdade dos gays, enquanto um processo no qual todos se beneficiam, numa guerra entre pessoas LGBTs e o resto. 

O comentário de Sullivan se refere a uma pesquisa do GLAAD (1) que, segundo ele, mostraria que o apoio aos direitos LGBTQ estagnou (uma interpretação questionável, vinda de uma pesquisa cuja conclusão é de que o apoio a direitos iguais para pessoas LGBTQ é estável em 79%). A visão de Sullivan não é isolada e abordagens semelhantes, ligadas à questão da ascensão das forças de direita em todo o mundo, também começaram a se espalhar entre estudiosos e comentaristas autodeclarados de esquerda, não apenas em relação a gênero e sexualidade, mas também com respeito às políticas de migração. Na versão de centro-esquerda desse argumento, as forças de direita em ascensão expressam uma reação popular à fusão tóxica entre neoliberalismo, política de identidade e cosmopolitismo, que deixaram a grande massa da população trabalhadora e pobre – as chamadas “pessoas normais” – para trás. 

No entanto, várias pesquisas recentes acerca da crença das pessoas sobre liberdades sexuais, identidades de gênero e direito ao aborto, feitas em países tão diversos quanto os Estados Unidos, Itália e Brasil, desafiam essa interpretação das tendências eleitorais recentes. Com base nessas pesquisas, parece que as campanhas e mobilizações feministas e LGBTQ foram bem-sucedidas em contribuir com a mudança da opinião popular ao longo dos anos em favor da ampliação dos direitos e liberdades individuais, incluindo o acesso ao aborto. Obviamente, isso veio com uma reação social e cultural, mas as várias pesquisas disponíveis mostram que sentimentos anti-gays, anti-trans e anti-aborto em países governados pela nova extrema-direita, como Brasil, Itália e Estados Unidos, permaneceram, em vários casos, como posições minoritárias e, onde não são, estão perdendo progressivamente o apelo social. Por que, então, a cruzada contra a chamada “ideologia de gênero” – um termo depreciativo cunhado pelo Vaticano – se tornou um dogma central da nova extrema-direita e como ela passou a ser vista como representativa de crenças populares generalizadas? 

Um primeiro passo para esclarecer essa questão é qualificar a reação atual da direita como algo orquestrado política e institucionalmente, e não como decorrente da reação espontânea das pessoas aos “excessos” das campanhas feministas e LGBTQ. O exemplo do Congresso Mundial das Famílias é revelador a esse respeito. A ação articulada entre parlamentares eleitos, líderes da Igreja, organizações de base e ativistas de direita nas mídias sociais funciona como um amplificador de medos, inseguranças e preconceitos que realmente estão presentes entre o eleitorado, mas estão longe de representar o que a maioria pensa em termos de liberdades sexuais, identidades de gênero e direitos das mulheres. Essa ampliação orquestrada de preocupações e medos, na qual o uso das mídias sociais por novos líderes de extrema-direita como Trump, Bolsonaro ou Salvini desempenhou um papel fundamental, conseguiu alimentar a percepção social de uma maioria de “pessoas normais” hostis aos direitos das mulheres e das pessoas LGBT. Para expressar essa dinâmica em outros termos, governos e partidos de extrema direita estão criando ativamente sua própria base política/cultural, em vez de representar um bloco político e cultural de uma maioria que já está em vigor. Para entender a origem do sucesso da extrema direita nessa operação, é útil abordar a questão mais geral da relação entre o neoliberalismo e a família. 

Em seu livro Family Values (2), Melinda Cooper argumentou que o neoliberalismo se comprometeu desde o início a fortalecer a família e seu papel social. Focando o caso dos Estados Unidos, ela mostra como os cortes neoliberais nos investimentos públicos em educação, saúde e bem-estar se baseavam na suposição de que as relações baseadas em parentesco substituiriam os “laços impessoais” do seguro social por meio do autocuidado, apoio mútuo e dívida intergeracional. Embora – em contraste com o fordismo – o neoliberalismo não esteja vinculado a costumes sexuais disciplinares específicos e à família heteronormativa, ele depende muito da família para absorver os choques e caprichos do livre mercado. Obviamente, essa dinâmica se aprofundou em razão da crise de 2008, com a subsequente aceleração na implementação de políticas de austeridade, cortes nos investimentos públicos, aumento no desemprego e na intermitência do trabalho. Os laços familiares se tornaram cada vez mais centrais para a própria sobrevivência das pessoas. 

A multiplicação de identidades e práticas sexuais, a maior visibilidade de identidades de gênero queer e trans e de estilos de vida não conformes ao gênero, bem como sua mercantilização e promoção como nichos de mercado, como novas fontes de lucro e de investimento, contribuíram para obscurecer uma realidade caracterizada pelo aumento da dependência de laços de parentesco para a sobrevivência material e o bem-estar psicológico. Apesar da hostilidade declarada de Melinda Cooper à teoria da reprodução social, esse fenômeno pode ser melhor compreendido à luz do papel estrutural desempenhado pelo que as pensadoras feministas marxistas chamam de reprodução social da força de trabalho (e, dessa forma, pela família como o principal espaço de reprodução social no capitalismo) e sua subordinação à produção para geração de lucros. As reflexões teóricas de Alan Sears sobre a relação entre reprodução social e normas de gênero e sexualidade, por exemplo, são um complemento útil à análise de Cooper sobre a relação entre família e neoliberalismo nos Estados Unidos. Como Sears argumenta em um ensaio recente, embora a proliferação e a crescente visibilidade das identidades sexuais e de gênero possam ser confundidas como um mero sintoma do aumento da liberdade individual, essa liberdade é melhor compreendida na linha da dupla liberdade de Marx. Para Marx, no capitalismo, os trabalhadores são dotados de uma dupla liberdade paradoxal: liberdade de dispor de seus próprios corpos, mas também liberdade no sentido de expropriação de todos os meios necessários para sua sobrevivência. Tendo sido desapropriados – e sendo continuamente despossuídos novamente – dos meios de produção, ambos estão livres dos vínculos que os ligavam à terra e livres para vender sua força de trabalho, mas também são coagidos a vendê-la para sobreviver. Alan Sears propõe estender essa conclusão à esfera da sexualidade: 

O capitalismo preparou o terreno para o surgimento de formas de sexualidade que combinam liberdade e coação. A liberdade da sexualidade no capitalismo é baseada na reprodução social do trabalho “livre”, pois a classe trabalhadora no capitalismo se distingue de outras classes subordinadas ao longo da história, já que os trabalhadores podem reivindicar a propriedade formal de seus próprios corpos. No entanto, a liberdade de trabalho baseada na autopropriedade é necessariamente combinada com formas de imposição. 

As forças da direita em ascensão – da União Europeia à América Latina e Índia – frequentemente fazem campanhas, de uma forma ou de outra, pelo protecionismo econômico e pelo apoio aos interesses econômicos de suas nações e de sua classe trabalhadora nacional, diante de uma mercado global todo-poderoso, com seus acordos comerciais internacionais e instituições transnacionais (NAFTA, FMI, OMC, UE). Por esse motivo, esses novos governos de extrema direita são frequentemente interpretados como antineoliberais. Na verdade, as políticas concretas adotadas pelas novas forças de direita, uma vez no poder, nada fizeram para mitigar os efeitos sociais e econômicos do neoliberalismo ou para desafiar os dogmas neoliberais na administração da economia, apesar de suas reivindicações propagandísticas do contrário. Só para dar alguns exemplos, o governo de Trump e o governo italiano da Liga/Movimento Cinco Estrelas propuseram reformas tributárias regressivas que redistribuem fortemente a renda dos pobres para os ricos. O governo brasileiro de Jair Bolsonaro combina uma aparência nacionalista e protecionista com uma motivada agenda neoliberal (veja, por exemplo, sua proposta de reforma da previdência social e seu interesse em privatizar a empresa estatal de petróleo Petrobrás). 

O que diferencia os projetos reacionários de direita e as forças que Nancy Fraser chamou de “neoliberalismo progressivo” não é, portanto, oposição ou adesão ao neoliberalismo: é um modo diferente de gerenciamento político dos mesmos dogmas econômicos neoliberais. Isso também se aplica à questão da família. De fato, o neoliberalismo progressivo também conta com o papel da família como pré-condição para a implementação de políticas neoliberais. Em vez de uma oposição entre valores familiares e valores liberais de independência e autonomia pessoal, o que estamos testemunhando hoje é uma competição entre dois modos diferentes de regular culturalmente a família em seu papel social central. Os neoliberais progressistas não têm apego particular a formas disciplinares específicas de relacionamentos interpessoais e, por esse motivo, podem apoiar o divórcio, o aborto, as relações alternativas de parentesco, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, desde que – para usar as palavras de Melinda Cooper – essas relações alternativas de parentesco possam “ter sucesso e internalizar os custos de saúde e bem-estar de cônjuges e crianças”. 

A direita neotradicional, pelo contrário, segue um modo diferente de regulação da família. Tendo compreendido que sob o neoliberalismo a família se tornou a principal fonte de segurança para todos, tanto de segurança econômica contra a imprevisibilidade do mercado livre, quanto de segurança psicológica contra os efeitos psíquicos do desemprego, da precariedade e da perda de status social, os partidos de direita promovem um projeto de retorno aos valores tradicionais que reforçam a heteronormatividade, a autoridade paterna e a hierarquia social e cultural entre parceiros de casais estritamente heterossexuais. A fixação da direita nos valores familiares neoconservadores desempenha um importante papel ideológico e auto-legitimador. Os governos de direita conseguiram, em muitos casos, ganhar poder com base em plataformas que denunciavam a desintegração de laços nacionais e comunitários nas mãos de uma elite financeira, geralmente caracterizada como cosmopolita, comprometida amorosamente com as liberdades sexuais e alheia à situação difícil das pessoas normais trabalhadoras. No entanto, como já mencionado, esses governos já provaram que têm muito pouco a oferecer em termos de políticas concretas dirigidas às causas profundas da insegurança social: pelo contrário, estão promovendo políticas que desmantelarão ainda mais as redes de seguridade social, deixando a família novamente como o único recurso disponível. O que eles podem oferecer é uma fantasia mobilizadora, segundo a qual as pessoas se sentem inseguras porque a família está em perigo: ameaçada pela “ideologia de gênero” e pela invasão de imigrantes “portando” valores e culturas diferentes, com propensões de atacar sexualmente as mulheres naturais do país. 

No Manifesto feminista que co-escrevi com Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, argumentamos que “os movimentos de libertação de hoje estão presos entre a cruz e a espada: de um lado, querem nos entregar à dominação religiosa/patriarcal enquanto, do outro, nos entregariam numa bandeja para predação direta do capital. Feministas pelos 99% se recusam a aceitar esse jogo”. No jogo que reivindicamos, deveríamos rejeitar a visão de que o “neoliberalismo progressivo” e “a reação sexual” são as duas únicas opções disponíveis. Nossa preocupação é que movimentos emancipatórios, enfrentando a ascensão de uma extrema direita agressiva, possam ser tentados a abraçar o neoliberalismo progressivo como o escudo que poderia nos proteger do reacionarismo. Gostaria de acrescentar aqui outra preocupação, a tentação de jogar na fogueira os direitos e liberdades das mulheres e das pessoas trans e queer, na tentativa de apelar a uma ideia fantasmagórica de “pessoas normais” que podem ser atraídas por programas econômicos de redistribuição, mas podem ser repelidas pelos chamados “excessos” da política de identidade. Em outras palavras, o perigo que eu gostaria de enfatizar é o de tentar competir com a direita, aceitando parte de sua autonarrativa. Uma preocupação semelhante se aplica, por exemplo, ao crescimento, na Europa, de uma esquerda soberanista e até nacionalista que apoia a causa das fronteiras fechadas, sob o pretexto de proteger os salários nacionais, ou mesmo tenta se apropriar as noções de pátria e nação usadas pela direita. 

Como discutido anteriormente, a ascensão da extrema direita não deve ser lida como a representação política de sentimentos e opiniões amplamente difundidos, isto é, como a voz de uma reação social que expressa institucionalmente um segmento social e cultural majoritário existente. Pelo contrário, a constelação de forças que discuti anteriormente está tentando criar ativamente um bloco social reacionário, explorando de maneira parasitária os sentimentos de insegurança existentes e reinterpretando-os como o resultado produzido por uma crise da família após a disseminação da “ideologia de gênero”. Imitar a direita, nesse contexto, para se tornar atraente às fantasmagóricas “pessoas normais”, como se fossem a apropriada base social da esquerda, seria um suicídio político com caras conseqüências para os setores sociais oprimidos em questão. 

*Cinzia Arruzza é Professora Associada de Filosofia na New School for Social Research e ativista feminista. Ela é autora de Ligações Perigosas: Casamentos e Divórcios entre Marxismo e Feminismo e coautora do Feminismo para os 99%: Um Manifesto. 

 

 

NOTAS

1 – GLAAD – Gay & Lesbian Alliance Against Defamation. Em português, Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação

2 – Valores Familiares.