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BRASIL

Clima: Vivemos uma dupla crise e não há hoje quem não sofra suas consequências

Matheus Schneider, de Florianópolis (SC)
Araquém Alcântara

De um lado, caminhamos rumo a um colapso ambiental de cientificamente incontestáveis causas antrópicas. O aumento da temperatura média global e a acidificação dos oceanos ameaçam a biodiversidade a nível planetário. A urbanização caótica e acelerada expansão insustentável da indústria, da matriz energética não renovável e do agronegócio solapam ecossistemas inteiros e vêm acompanhadas do aumento em frequência e intensidade de anormalidades e desastres climáticos. A rapinagem desenfreada dos recursos naturais, cujo anverso é o acúmulo de verdadeiras ilhas de lixos e resíduos industriais altamente tóxicos, degradam as condições de toda vida na Terra..

De outro lado atravessamos a violenta ruína do neoliberalismo, anunciada pela crise econômica em 2008 e que se alastra até hoje. Saldo dessa fase do capitalismo é a expansão da já enorme lacuna entre os mais pobres e os mais ricos; a escalada da miséria absoluta e, com ela, da violência e da fome; a intensificação dos conflitos militares e comerciais; crises migratórias e de desemprego generalizado. Colhemos os frutos de anos de deterioração das condições de trabalho e vida em geral. Dentre eles, o descontentamento das representações políticas e desilusão quanto a qualquer perspectiva de futuro melhor e a instabilidade política e das instituições democráticas burguesas – que abre caminho ao ascenso de governos autoritários de extrema-direita ao redor do mundo.

No campo da luta contra cada uma dessas crises encontramos suas respectivas posturas mais progressistas. A primeira, daqueles que compreendem a possibilidade e a necessidade duma alteração radical em como os seres humanos interagem com a natureza. A segunda, daqueles que compreendem a possibilidade e a necessidade duma alteração radical no modo como os seres humanos vivem em sociedade

Não é impossível – pelo contrário, tende a ser cada vez mais comum – que essas duas posições se sintetizem numa mesma pessoa, que reconhece a emergência e atua tanto pela causa ambiental quanto pela socialista. Mas somente em décadas recentes – fruto combinado de debate teórico, acúmulo científico, luta social e política e do agravamento da própria realidade – revela-se que essas lutas estão cada vez mais interconectadas. 

As crises ambiental e social apresentam-se como dois lados de uma mesma moeda porque somos ao mesmo tempo seres sociais e seres naturais – comemos, bebemos, criamos, sentimos, pensamos e nos reproduzimos. E tudo isso o fazemos em sociedade. A maneira como nos organizamos entre nós para reproduzir nossas condições de vida em sociedade determina as maneiras como nossa sociedade interage com a natureza.

Os crimes ambientais como aquele de Brumadinho, levados a cabo por grandes empresas que saem incólumes para cometê-los de novo; as recentes queimadas criminosas na Amazônia que receberam todo apoio do governo; o atual acirramento da histórica repressão a povos originários e setores da agricultura que se recusam a produzir de acordo com a lógica da mercadoria são episódios nacionais que apenas expressam da forma mais extremada a verdade dessa profunda relação.

Porque as consequências da crise ambiental se apresentam em nossas vidas cotidianas, nos dados científicos, e por vezes configuram verdadeiro impedimento a seu funcionamento, o capitalismo não é capaz de ignorá-la. Oferece-nos respostas que, no entanto, são em última instância incapazes de solucionar esses problemas em que ele mesmo nos enredou.

Uma dessas falsas respostas é o consumismo sustentável, que cria uma miríade de novos “nichos de mercado” oferecendo-nos produtos com selos de produção sustentável, produtos biodegradáveis e por aí vai. Essa noção pressupõe que liberdade humana está no âmbito do consumo, que o consumidor rege a produção. A verdade, porém, é cada que vez mais a produção regula nosso consumo. Ao materializar os objetos de nossas necessidades, é a produção, na forma capitalista, que determina objetivamente nossas necessidades, circunscrevendo o estreito campo em que podemos escolher o que consumir.

A ampliação de nossas necessidades nas sociedades capitalistas – muitas das quais totalmente artificiais e danosas tanto a nós como ao ambiente – na forma duma “imensa coleção de mercadorias” torna-se absolutamente alheia a quaisquer finalidades genuinamente humanas. Pelo contrário, apenas faz parte do mecanismo de fomento ao aumento da produção indispensável à dinâmica do capital, em que pessoas e recursos naturais figuram como meros meios para atingir aquele fim.  

O consumismo sustentável, ainda por cima, ignora que massiva fração do consumo consiste em consumo da produção – destinado à reprodução dos meios de produção – controlada pelos interesses da classe dominante que os detêm. Em suma está resposta está fracassada de antemão pois uma exigência do capitalismo, a propriedade dos meios de produção priva a ampla maioria da humanidade de decidir o quê e como vamos produzir – e, portanto o quê e como vamos consumir.

A mesma concepção por trás do consumo sustentável subjaz à ênfase exagerada nas práticas individuais – como reciclagem, reutilização, uso consciente dos recursos. Esta implica que é a soma de escolhas e comportamentos a nível individual que são os grandes responsáveis pelo impacto ambiental da humanidade. Não diminuímos a importância à subjetividade – às mudanças das práticas individuais – ao constatarmos que na realidade não é a esfera doméstica, mas a da produção, a grande responsável. 

Pelo contrário, aquela falsa autonomização da individualidade é que deforma a questão subjetividade. Não vivemos isolados, mas nos constituímos como sujeitos em sociedade, respondendo no nosso cotidiano às questões postas pela sociedade e com as possibilidades socialmente dadas. Assim como nossa capacidade de ação individual, mais do que por nossa vontade pessoal, está delimitada por circunstâncias bastante concretas, frutos do desenvolvimento social. 

O processo de transformação das práticas e consciências individuais – a partir de certo limite – passa necessariamente pelo processo de transformação social. Ao ignorar tudo isso muito facilmente aquele trato individualista deformador passa a funcionar como ideologia – permite difundir conjuntos de ideias que culpabilizam o indivíduo ao passo em que escondem as estruturas sociais que condicionam seu comportamento.

A resposta mais “ousada” que nos pode oferecer o capitalismo é a súplica por uma versão “verde” de si mesmo, que supõe que dentro deste modo de produção é possível uma relação de sustentabilidade a longo prazo com o planeta. Recentemente podemos observar essa postura de CEOs de grandes empresas; líderes políticos e figuras carismáticas dos EUA, Europa central e Escandinávia; e até na Revista Times, porta-voz do sistema financeiros. Somos aliados de todos aqueles que verdadeiramente defendem o meio ambiente, mas não devemos nos enganar – o capitalismo é fundamentalmente incompatível com a sustentação da vida na Terra.

Como é possível crescimento produtivo ilimitado numa realidade com recursos materiais limitados? Como realizar nossa demanda por uma economia verde dentro duma lógica econômica estruturada para não atender nenhum desejo que não a pulsão frenética da valorização do valor? Estamos certos e devemos afirmá-lo com todas as letras – para a questão ambiental não há alternativas por dentro do capitalismo. Este não pode desfazer-se de suas contradições, pois são constituintes de seu ser, mas somente reelaborá-las e empurrá-las para o futuro – e este futuro está cada vez mais próximo.

O “capitalismo verde” não pode falar em mudanças estruturais nas relações de reprodução da vida material. Então invariavelmente se conjuga a propostas também individualistas ou institucionais que revelam sua concepção classista de mundo.  Promove o desenvolvimento de “tecnologias verdes” no centro do sistema assentado no monopólio de propriedade intelectual e na exploração do trabalho e riquezas naturais dos países periféricos. Trata o problema de forma jurídico-legal, transformando os danos ambientais em simples matéria de cálculo econômico – e a natureza, em mercadoria a ser comercializadas na bolsa de valores. Defende fervorosamente que as figuras nos altos escalões políticos e corporativos sejam comprometidos com a causa ambiental – só não mais quanto defende a existência do Estado e das corporações.

Frente a tais propostas devemo-nos lembrar de seus limites e ilusões – nas instituições burguesas, os indivíduos ao fim e ao cabo agem como verdadeiras “personificações do capital”. Suas decisões devem corresponder às exigências da lógica do modo de produção capitalista se quiserem conservar suas posições políticas de prestígio e de classe. Por este motivo a causa ecológica só pode estar centralmente ligada à luta daqueles que nesta sociedade não tem nada a perder. Os trabalhadores e oprimidos deste mundo, por outro lado, apenas terão um novo mundo para criar se estiverem dadas condições materiais para sua criação – não só as sociais, mas também as naturais. Portanto é de seu interesse, mais do que de ninguém, que a causa ecológica encontre-se entre suas bandeiras e componha seu programa.

Como um último apelo gostaria de propor um exercício de imaginação utópica. Poderíamos perguntar àqueles engajados na questão ambiental se gostariam de viver numa sociedade em ampla harmonia com as condições de reprodução da natureza; mas em que a miséria, as convulsões sociais e a exploração são a realidade da maior parte da população. Do mesmo modo, poderíamos indagar aos socialistas se gostaríamos de viver numa sociedade emancipada, livre da exploração do humano pelo humano; mas em que a exploração da natureza chega a tal ponto que beira o colapso ecológico. A essas duas alternativas respondemos que nem ao menos são alternativas reais – a atual crise ecológica é indissociavelmente a crise do capital. Com a permissão de atualizar a palavra de ordem da brilhante revolucionária Rosa Luxemburgo, o dilema de nosso tempo é “ecossocialismo ou barbárie”.