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BRASIL

Universidade ‘low cost’?

Quais regimes de contratação existem e qual o regime que assegura a autonomia necessária para assegurar a liberdade de cátedra no Brasil?

Roberto Leher*, do Rio de Janeiro (RJ)
Arquivo / Luiz Felipe Albuquerque

O Future-se, um abrangente conjunto de medidas que pode refuncionalizar as universidades e institutos federais de educação tecnológica [1], apresentado pelo MEC em julho de 2019, preconiza a contratação de pessoal por Organizações Sociais e, conforme as manifestações do ministro da Educação, em virtude de restrições orçamentárias, as novas contratações deveriam ser realizadas no regime jurídico da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [2]. Escudados pela dita crise fiscal, as autoridades governamentais sustentam que o crescimento da folha de pagamento das universidades, alcançando cerca de 85% dos seus orçamentos, estaria caminhando para o desastre e, por isso, os novos contratos deveriam se dar não mais pelo Regime Jurídico Único Estatutário (RJU), mas pelo regime jurídico da CLT, aplicável às relações de trabalho em geral.

Em 30 de setembro de 2019, em matéria publicada em O Globo [3], o ex-presidente do IBGE na gestão de Fernando Henrique Cardoso, Simon Schwartzman, a pretexto de recusar as atuais polarizações ideológicas, argumentou que a disjuntiva RJU e CLT não é necessária, defendendo uma suposta nova forma de contratação “nem CLT, nem funcionário”, presente “nos países que têm universidades de qualidade”.

O debate é bem-vindo! Mas é necessário argumentos rigorosos. Infelizmente, o ex-presidente do IBGE, em que pese sua experiência acadêmica que o qualificou como membro da Academia Brasileira de Ciências, demonstra profundo desconhecimento do problema no Brasil e, nesse sentido, acaba corroborando a narrativa difundida pelo atual governo Federal.

Não é correto afirmar que os professores possuem “estabilidade desde o dia em que passaram no primeiro concurso”: “São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público” (Artigo 41 da Constituição Federal), sendo a avaliação especial de desempenho condição para a aquisição da estabilidade ( Art. 41 da Constituição Federal, § 4º ).

Ademais, a alternativa proposta pelo pesquisador do Instituto de Estudos de Política Econômica não encontra abrigo na Constituição Federal, pois a forma de contratação dos professores das universidades federais preconizada, se não estatutária, somente seria possível pela CLT, ou seja, a proposta de Schwartzman, embora procure escapar da disjuntiva, na realidade brasileira, reafirma a contratação pela CLT, tida por ele, corretamente, como indesejável no serviço público. É importante ressaltar que a importação do modelo de contratação por regimes jurídicos distintos é inviável pela Constituição; mesmo se fosse viável a contratação direta pelo regime de CLT, o que é vedado pela Carta, esta exige concurso público. O que o sociólogo apregoa não são mudanças gerenciais, mas constitucionais.

A redação vigente do Artigo 39, caput, da Constituição Federal assegura o regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. O Artigo 37 da Constituição Federal estabelece a obrigatoriedade dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, em conformidade com estes princípios, o inciso II do mesmo artigo estabelece que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou provas e títulos”.

Existe alternativa, é certo: é possível contratos temporários, não submetidos aos regimes da CLT ou RJU e sim ao regime especial da Lei 8.745/1993, somente autorizados nas hipóteses de excepcional interesse público, descritas na mencionada lei, a exemplo de calamidades, recenseamento, entre outras. Neste caso, a referida Lei restringiu o contrato exclusivamente para professores substitutos, professores visitantes e pesquisador visitante estrangeiro, assim como professor, pesquisador e técnico “substitutos”, decorrente de licença de servidor para exercer atividade empresarial relativa à inovação, assim como a contratação de pesquisador e técnico para projeto de pesquisa com prazo determinado. Ressalvado o caráter temporário, é inequívoco que tal modalidade de contratação tornaria o professor ainda mais precarizado em termos de seus direitos trabalhistas do que o contrato via CLT, “em que os contratos são precários”, como reconhece Schwartzman em seu artigo.

Desse modo, inexiste uma terceira via no âmbito das universidades. A pior alternativa seria a contratação de professores por meio da terceirização, a partir de organizações sociais (OS). A terceirização ancorada em OS, aprofundaria a degradação das condições laborais, em padrões semelhantes a uberização e a wallmartização das relações de trabalho, afastando os jovens com melhor formação das universidades públicas federais. Sem expectativa de uma carreira universitária, por que perseverar na trajetória acadêmica que exige dedicação integral, dias e noites de estudo, trabalho intenso e permanentemente avaliado pelos pares, seja nos órgãos de fomento, seja nas publicações, seja no cotidiano das instituições?

Crescimento explosivo dos gastos com pessoal?

O problema do aumento dos gastos da União com as universidades federais precisa ser igualmente qualificado, pois, atualmente, o discurso econômico contra qualquer forma de construtivismo social baseado na perspectiva do Estado Social, presente em Rousseau e Hegel, para não falar das lutas sociais, caminha lado a lado com o fundamentalismo negacionista e com os fatos alternativos. O ultraneoliberalismo, embora com roupagem cosmopolita, e os fundamentalismos grosseiros presentes no governo são dois lados de uma mesma moeda.

Os gastos com pessoal apresentados pelo ministro incorporam aposentados e pensionistas, hospitais, assistência estudantil, em desacordo com a metodologia da OCDE de apuração de gastos com as universidades. A manutenção dessas rubricas no âmbito do MEC é necessária, mas a origem dos recursos não pode ser contabilizada como gastos com a Manutenção e Desenvolvimento do Ensino: a LDB é clara quanto a isso.

A relação do custeio com os gastos com pessoal, retirando os aposentados e pensionistas (ainda que mantendo hospitais e assistência estudantil) das Federais está muito próxima a dos países da OCDE, abstraindo o fato de que o aumento dos gastos com as Federais é muito recente, após 2008, enquanto a elevação do patamar orçamentário nas universidades dos países da OCDE data de séculos. Quando os recursos de investimentos são considerados, a situação dos gastos no Brasil pode ser melhor compreendida: enquanto nos países da OCDE é de 13% em relação aos recursos totais (excluindo aposentados e pensionistas), no Brasil é de irrisórios 2%, em viés de baixa.

O governo Federal oculta o fato de que o gasto per capita em ensino superior é muito baixo, 48o lugar entre 99 países; o percentual de gastos educacionais com a educação superior, 21%, está em 58o lugar entre 128 países; o crescimento real dos gastos com a função educação é negativo desde 2015. Em relação ao gasto com pessoal, o orçamento primário do MEC de 2018 aplicado com pessoal e encargos sociais é de 55%, o mesmo de 2002, embora desde então o número de estudantes tenha mais do que dobrado e desde 2014 os gastos com os servidores ativos encontram-se estabilizados, na ordem de R$ 22 a 23 bilhões. O orçamento das universidades representa apenas 36% do orçamento total do MEC em 2019[4]. O caminho do desastre não está no gasto das universidades, mas está sendo pavimentado pela medida autodestrutiva do Estado brasileiro instituída pela EC no 95/2016, tida como um dogma pelo governo, pois blinda o aumento dos gastos financeiros.

Professores e técnicos e administrativos necessitam da estabilidade e por isso devem ser concursados e protegidos pelo Regime Jurídico Único

Sob qualquer ponto de vista, mesmo os mais hostis à universidade pública, um balanço da curtíssima história das universidades públicas brasileiras confirma que o país logrou extraordinário avanço nos domínios da ciência, da tecnologia, da educação e da cultura. Não é necessário resgatar os exemplos clássicos na agricultura, no setor de energia, especialmente petróleo e gás, na área da saúde, respondendo a desafios dramáticos com rapidez, rigor e forte compromisso social, a exemplo das arboviroses. O país seria inteiramente outro sem as suas universidades, institutos de pesquisa, institutos federais de educação tecnológica, CAPES, CNPq, FINEP e os nichos do aparelho de Estado que incorporaram, desde meados do Século XX, preciosa inteligência no Estado. Nesse sentido, a contraposição das universidades federais com “os países que têm universidades sérias”, pode ser lida como uma desqualificação das nossas instituições e da própria ciência brasileira, ecoando avaliações como as que estão circulando a partir do atual governo que colocam em questão a própria ciência brasileira. Não é um bom início para o debate.

A exoneração do presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o respeitado cientista Ricardo Galvão, exemplifica de modo drástico a necessidade da estabilidade dos servidores públicos. As instituições científicas não podem ser submetidas às ideologias fundamentalistas que negam a validade do conhecimento científico. A estabilidade é uma garantia para que a própria sociedade possa ter acesso a um serviço público qualificado, referenciado na ciência, comprometida com o agir ético e com o bem-viver dos povos, mesmo que isso exija conflito com as concepções particularistas de governos e chefes de plantão.

Sem estabilidade os servidores públicos ficariam reféns da vontade arbitrária dos governos e isso os afastariam do direito da sociedade de ter instituições que assegurem aos cidadãos um serviço público republicano, comprometido com o fortalecimento dos direitos comuns a toda gente. Em um contexto tão complexo como o atual, em que mudanças climáticas globais ameaçam a sobrevivência da vida no Planeta, produzir conhecimento que contraria corporações, mineradoras e os setores exportadores de commodities exige autonomia das instituições e proteção à liberdade de cátedra. Por isso, a estabilidade é um pilar de nossas instituições.

O serviço público não pode ser fossilizado nem, tampouco, adepto de dogmas. O controle social democrático contribui muito para o aperfeiçoamento dos processos de trabalho, mas é impensável uma administração pública orientada pelo Artigo 37 da Constituição, já mencionado, sem o sábio preceito da estabilidade dos servidores. As circunstâncias históricas destravaram as manifestações irracionalistas, negacionistas, antissecularistas e as cruzadas contra a laicidade da educação e da ciência; por isso, o tempo histórico está exigindo muito de suas universidades públicas, atualmente os principais bastiões dos valores advindos da revolução francesa e do Iluminismo.

Por tudo isso, o debate sobre o porvir da universidade não pode ignorar as forças que operam a sua refuncionalização. O país está sendo dirigido a partir de uma perigosa confluência de fundamentalismos políticos e econômicos. É hora das forças conservadoras, porém secularistas, dialogarem de modo verdadeiro com a universidade brasileira e seus sujeitos, considerando a pertinência das mesmas para a realidade brasileira e a contribuição para a ciência, a cultura e a tecnologia mundiais.

Rio de Janeiro, 1 de Outubro de 2019.

*Roberto Leher é professor e ex-reitor da UFRJ.
** Artigo publicado com autorização do autor, originalmente no site Carta Maior.

NOTAS

[1] Roberto Leher. “Future-se” indica a refuncionalização das universidades e institutos federais. Le Monde Diplomatique, acervo on line, 2 de agosto de 19, disponível em: https://diplomatique.org.br/future-se-indica-a-refuncionalizacao-das-universidades-e-institutos-federais/

[2] Paula Ferreira e Raphael Kapa. Proposta de Weintraub para contratação de docentes via CLT divide especialistas. O Globo, 27/09/2019, disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/proposta-de-weintraub-para-contratacao-de-docentes-via-clt-divide-especialistas-23977869

[3] Simon Schwartzman. Nem CLT nem funcionário. O Globo, Opinião, p. 3, 30/09/2019.

[4] Esther Dweck. Pense Brasil –SP, Educação: uma questão de futuro –Financiamento da educação: os números da política e a política dos números, São Paulo, 13/06/2019.