As duas almas da burguesia brasileira

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“E disse a outro: Siga-me. Mas ele respondeu: Senhor, deixe que primeiro eu vá enterrar meu pai. Mas Jesus lhe observou: Deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos; tu, porém, vá e proclame o Reino de Deus.” (Lucas, 9:59-60)

A burguesia brasileira parece ter duas almas, por assim dizer. Uma delas é parisiense, cosmopolita, gosta de Macron, de Ipanema, da Amazônia, de açúcar mascavo e do Pedro Bial. A outra é norte-americanizada, caipira, gosta do Trump, da Barra, de queimadas, do Outback e do Ratinho. Uma quer mudar o “mindset”, e a outra quer empoderar a milícia. Uma nunca saiu por completo da caserna, enquanto a outra saiu diretamente da caverna. Uma tolera o Bolsonaro, a outra o idolatra. Se a segunda exalta a ditadura, a primeira, mais contida, prefere a democracia, desde que esta não abra espaço para o demos.

As duas almas da nossa burguesia, no entanto, desejaram e amaram o golpe, e as duas viram o seu filho, o neofascismo, crescer e se desenvolver. As duas, enamoradas, o pariram. A primeira, resignada, parece, pelo menos por ora, precisar dele, e a segunda o ama incondicionalmente, para todo o sempre. Ambas, contudo, já decidiram entregar as nossas pobres almas e os nossos parcos direitos ao Deus-mercado, e o que varia é o número de corpos que, para isso, estão dispostas a sacrificar no altar da Bolsa.

Nenhuma delas, porém, perderá um minuto de sono por Ágatha ou pelos desempregados, doentes e famintos. Nenhuma delas lamentará o fim do SUS. Nenhuma delas lamentará o fim da aposentadoria. Umas delas até acha que a universidade é algo interessante para os seus filhos, e só para os seus; a outra, por sua vez, nem sabe onde ela fica, e nem tem interesse em saber. Uma alma até dará esmolas aos desamparados nos sinais, e a outra já dá sinais de que é ela própria completamente desalmada.

Ao fim e ao cabo, nenhuma delas tem ou terá culpa, pois essas duas almas estão, igualmente, mortas de espírito, e apenas os materialmente expropriados, os mundanos cada vez mais despossuídos, é que poderão derrotar o demônio neofascista e reencontrar os caminhos do Espírito. Se, depois de tudo, depois de todo o fogo e sangue, a burguesia brasileira, como um todo, ainda não pode se desfazer do espectro do golpe, é porque ela mesma já não é senão um espectro mórbido, vampiresco e parasitário. E às almas mortas, mesmo a mais educada das duas, não cabe mais do que enterrar os seus mortos. Os vivos, os trabalhadores, é que terão, mais uma vez, que resolver a questão, uma questão de vida ou morte, e que tem sido, infelizmente, mais de morte do que de vida. Ao menos para os espiritualmente vivos.