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CULTURA

Tropicalismo e canção engajada no filme Bacurau

Romulo Mattos*, do Rio de Janeiro (RJ)
Divulgação

I

O diretor Kleber Mendonça Filho tem um cuidado especial com a escolha da trilha sonora de seus filmes. Já em Aquarius (2016), as músicas cumpriam um papel especial, por fazerem parte da própria ação dramática. Agora ele divide com Juliano Dornelles a direção de Bacurau (2019), que traz como destaques musicais uma canção de Caetano Veloso cantada por Gal Costa e uma composição de Gerado Vandré interpretada pelo próprio. Ou seja, a película recorre ao tropicalismo e à canção engajada para embalar a trama. 

A abertura ocorre ao som de “Objeto não identificado”, que é a primeira faixa do disco Gal Costa (1968), enquanto o seu autor a gravou no álbum Caetano Veloso (1969). A gravação da cantora tem em seu início uma mescla de sons eletrônicos, ruídos e vozes, em um diálogo direto com o rock psicodélico americano e inglês. Em seguida, surge uma açucarada melodia ao órgão, com timbre típico da jovem guarda, sendo essa citação reforçada pelo teor romântico dos primeiros versos: “Eu vou fazer uma canção pra ela/ Uma canção singela, brasileira”. Inclusive, a letra menciona a forma como o rock praticado por Wanderléa, Roberto e Erasmo Carlos era denominado na mídia: “Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico” (grifo nosso). A delicada performance vocal de Gal e as intervenções de flauta e violinos idealizadas por Rogério Duprat evidenciam o aspecto sentimental daquele estilo que foi um fenômeno de massa nos anos 1960. A sua apropriação pelos tropicalistas, bem como a do som lisérgico dos Beatles e de Jimi Hendrix, evidenciava o desgaste das formas tradicionais da canção nacional e seguia o objetivo de retomada da “linha evolutiva” da música popular brasileira, termo consagrado por Caetano. “Os novos materiais permitiram articular uma linguagem musical postulada tanto pelo interesse de renovar a tradição quanto de refletir sobre a situação cultural” (FAVARETTO, 2007, p. 45). A integração da música pop ao tropicalismo ressalta ainda o seu aspecto cosmopolita, urbano e comercial, além de comentar o arcaico e o moderno (ibid, p. 47).  

 

A música “Objeto não identificado” segue também outra direção, que inclui a sonoridade psicodélica dos arranjos de cordas e dos efeitos eletrônicos, em uma proposta que se desenvolve à revelação do narrador de que a sua “canção de amor” tem o propósito de “tocar num disco voador”. A gravação pode ser considerada uma das últimas do período heroico do tropicalismo, na qual se tematizam “as diversas dimensões da canção e mesmo de sua destinação – o iniludível envolvimento comercial” (ibid, p. 41).   

 A utilização desse documento sonoro na obra de Mendonça e Dornelles faz referência, em primeiro lugar, à abordagem cinematográfica do Nordeste por meio da linguagem pop, que aparece nas cenas de faroeste. Em segundo, ao vilarejo cujos moradores consomem um psicotrópico local, que leva a personagem Teresa (Bárbara Colen) a uma experiência lisérgica, na qual vê água transbordando de urna mortuária. A inclusão dessa droga no filme é um inteligente artifício que impede a qualificação dos sertanejos como bestas-feras – pois a violência que reproduzem na parte final é liberada pelo seu uso. Em terceiro e último, à presença da tecnologia em pleno interior do Brasil, pois o “disco voador” representa o mito de um domínio tecnológico ultra-avançado. Aliás, os drones com formato de espaçonave que sobrevoam as cabeças dos camponeses são uma referência explícita ao título da canção de Caetano. O “Objeto não identificado” brilharia no “céu de uma cidade do interior”, diz a letra. 

Esse ponto merece ser desdobrado porque vemos a presença de tablets, aparelhos celulares e até carros de propaganda política com painéis de led no arraial, que ao mesmo tempo tem no seu cenário moscas varejeiras, construções precárias e miséria por todos os lados – os habitantes não têm fornecimento de água encanada, e precisam da doação de alimentos, remédios e caixões funerários pelo prefeito que quer se reeleger. Em outras palavras, trata-se de uma população que não tem onde cair morta. Aqui vale mencionar que o projeto tropicalista assumiu as contradições da modernização em seus procedimentos, “sem escamotear as ambiguidades implícitas em qualquer tomada de posição” (ibid, p. 25). Não obstante, o arcaico e o moderno aparecem nas letras de composições basilares do movimento, como “Tropicália”, de Caetano, e “Geleia Geral”, de Gilberto Gil e Torquato Neto, ambas de 1968 – na primeira música em choque, e na outra em justaposição. 

É interessante que Bacurau promova uma cena de jogo de capoeira embalada por uma música eletrônica, composta originalmente para o filme. Mas o tropicalismo cede espaço para a canção engajada, curiosamente, gêneros em torno dos quais os seus principais agentes se confrontaram no campo artístico da segunda metade dos anos 1960. Resumidamente, tropicalistas criticavam nos partidários do nacionalismo de esquerda a suposta estreiteza estética e o que seria a perspectiva folclorizante de suas músicas – enquanto esses faziam carga contra aqueles porque entendiam haver alienação política e submissão ao imperialismo no aproveitamento do rock como material cultural legítimo. Com projetos artísticos discordantes, ambos os segmentos da música popular brasileira faziam oposição à ditadura. 

II

Vandré foi o maior representante da canção engajada dos anos 1960. A sua composição “Réquiem para Augusto Matraga” (1965) é acionada em dois momentos na película, sempre referida à resistência dos sertanejos. Inclusive, ela sonoriza a cena final, o que é significativo. O artista a concebeu originalmente para o filme A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, baseado no conto homônimo do escritor Guimarães Rosa. Incluído no livro Sagarana (1954), o crítico literário Antonio Candido o considerou “um dos 10 ou 12 mais perfeitos da língua” portuguesa (1983, p. 247). Nele é contada a trajetória de um temido e opressor fazendeiro (Nhô Augusto) que passa por uma experiência de quase morte, decorrente do espancamento perpetrado pelos seus antigos capangas, cooptados por um rival (Major Consilva Quim Recadeiro) – não obstante ter sido abandonado pela mulher (Dona Dionóra), constantemente maltratada, que vai ao encontro de outro homem (Ovídio Moura). Confortado pelas palavras de um padre e amparado por um casal de negros (Mãe Quitéria e Pai Serapião), o protagonista vive um processo de redenção e se transforma em um incansável e solidário trabalhador rural. Tentando impedir um ato de injustiça, ele morre em confronto com um cangaceiro (Joãozinho Bem-Bem) que queria executar a família do assassino de um integrante de seu bando.   

Regravada no álbum 5 anos de canção (1966), com a mesma instrumentação simples da versão do filme de Santos (viola, violão e triângulo), “Réquiem para Matraga” se apoiava na clássica novela de Guimarães Rosa para atualizar as promessas de rebeldia e justiça no campo, interrompidas com o golpe de 1964: “Vim aqui só pra dizer/ Ninguém há de me calar/ Se alguém tem que morrer/ Que seja pra melhorar/Tanta vida pra viver/ Tanta vida a se acabar/ Com tanto pra se fazer/ Com tanto pra se salvar/ Você que não me entendeu/ Não perde por esperar”. A performance vocal supõe a serenidade de um sábio ensinamento sob a forma de uma canção do campo, ou ainda, de um rasqueado – estilo musical de ritmo ternário bastante praticado na região do Mato Grosso, com influências sonoras fronteiriças, como a guarânia paraguaia. 

A essa altura, o projeto artístico de Vandré era: “diminuir o vácuo existente, e cada vez maior, entre a realidade musical de nosso povo e o comportamento musical da maioria dos nossos compositores de agora”, conforme o texto de Franco Paulino na contracapa do disco anteriormente citado. Para tanto, o cantor paraibano dispensara a chave harmônica e melódica jazzificada, e também “a formula dos diminutivos frívolos e gratuitos” praticada pelos bossanovistas, nos entender daquele jornalista e pesquisador musical. Esse movimento fora iniciado em 1962, com a apropriação por Vandré da temática nordestina, “trabalhando-a num tipo de canção de conteúdo bem mais coletivo”, mais identificado com a realidade brasileira, novamente segundo Paulino. Desse objetivo nasceram “Canção nordestina” e “Fica mal com Deus”. O compositor pesquisara essa possibilidade artística durante dois anos e, por essa razão, a sua preocupação com a comunicação não pode ser confundida com a redução da expressão. Já por volta de 1965 e 1966, a sua cuidadosa busca por materiais culturais resultara na utilização, pioneira em termos urbanos, da instrumentação típica da moda de viola (do Centro-Sul do país). Esse gênero vinha dotado de um sentido universalista para conquistar o público citadino, e correspondia às tentativas de certos músicos da bossa nova de voltar ao morro, como Carlos Lyra, ou ao samba de roda baiano, a exemplo de Baden Powell. Tratava-se de encontrar fontes para a elaboração de uma música moderna e próxima do povo. 

Mais especificamente, a opção por praticar uma moda de viola universalista nascera do seu trabalho em A hora e a vez de Augusto Matraga. Isso é relevante porque o filme de Santos trabalha com um regional que tem dimensão universal, evitando o regionalismo em estado cru relacionado com o folclore. Na mesma época se consolidava a MPB, instituição sociocultural que mesclava engajamento político e interesses comerciais, em um jogo que incluía a um só tempo autonomia e heteronomia (NAPOLITANO, 2010, p. 8). Vandré ajudara a definir os significados relacionados com aquela sigla, sendo também influenciado por suas premissas, tendo praticado uma de suas variantes: a dos gêneros convencionais de “raiz” (NAPOLITANO, 2007, p. 110). 

Para viabilizar a abordagem musical pretendida, fundou o Trio Novo, integrado por Heraldo do Monte, Theo de Barros e Airto Moreira, mais tarde rebatizado com o nome de Quarteto Novo, com a entrada de Hermeto Pascoal. Aqueles três primeiros músicos acompanham o cantor no LP que traz o seu “Réquiem”. O Quarteto Novo ganhou vida artística própria e lançou um importante álbum em 1967, voltado para a criação “de uma nova estética de improvisação, dissociada dos elementos comuns à linguagem do jazz” e articulada a discursos nacionalistas e ideais de música regional nordestina. (LIRA, 2017, p. 4). Assim, foi tributário de uma possibilidade aberta pelas pesquisas culturais de Vandré, cujo cancioneiro ia além da preocupação com a “forma”.  

III

“Objeto não identificado” e “Réquiem para Augusto Matraga” cumprem papéis complementares em Bacurau. Enquanto a primeira música trata de um interior brasileiro culturalmente diverso, a ponto de incluir um cangaceiro LGBT (Lunga) – que usa maquiagem no rosto, apliques no cabelo e roupas ousadas, para o espanto de uma moradora do vilarejo –, a segunda se conecta a sua História de lutas populares, à resistência sangrenta contra os poderosos. Aliás, nessa última perspectiva, o trabalho de Mendonça e Dornelles se aproxima do Cinema Novo (e não apenas devido ao filme A hora e a vez de Augusto Matraga).  

Aqui a figura de Vandré merece destaque, tendo em vista que nenhum outro cantor/compositor da MPB é mais representativo do campo brasileiro, em termos musicais e também temáticos. O seu disco Canto Geral (1968) pode ser entendido como uma trilha sonora da revolução camponesa, o qual inclui, por exemplo, uma canção (em parceria com Hilton Accioli) batizada de “Guerrilheira” – mas isso é assunto para outro texto. Vandré foi contemporâneo da ação das Ligas Camponesas e de seus campos de treinamento guerrilheiro. No pré-1964, período de maior atuação política dos campônios contra o latifundiário e pela reforma agrária, o artista iniciou o seu projeto de canção engajada, com “Quem quiser encontrar o amor” (1960), composta em parceria com Carlos Lyra. E continuou vendo a influência das ideias de Che Guevara e Fidel Castro na Guerrilha do Caparaó (1966-1967), a primeira tentativa de organização de uma resistência armada à ditadura militar. A experiência cubana possivelmente informava o seu pensamento, a julgar pela repetição da temática do campo armado em suas músicas – a qual foi embalada pelos modos musicais nordestinos e, depois, pela proposta de uma moda de viola moderna, em uma relação estrutural entre letra e música.

Um belicoso sertão é apresentado em Bacarau, com referências à resistência de Canudos e à atuação do cangaço, essa de forma explícita. Chama atenção a apropriação matreira desse banditismo social na obra fílmica. Em especial, na cena em que Teresa convida dois motoqueiros do Sudeste – sobre os quais pairavam dúvidas quanto ao envolvimento na chacina realizada em uma fazenda próxima ao vilarejo – a conhecerem o museu local, cujo atrativo é justamente a História do cangaço e a exibição de suas armas. O convite é um aviso: aquele pedaço de terra desconhecido do restante do Brasil tinha uma tradição de luta armada. É também uma ameaça aos desavisados (que não demostram interesse na proposta). Mais para o fim da película, a personagem responsável pela direção do museu pede aos faxineiros voluntários para que as manchas de sangue na parede sejam mantidas, o que sugere uma continuidade histórica naquele recente enfrentamento entre os sertanejos e os mercenários gringos supremacistas hipsters. As cabeças desses últimos, expostas no pátio da igreja, remete à conhecida foto que mostra o resultado da degola sofrida pelo bando de Lampião. É como se, dessa vez, aqueles inusitados cangaceiros do século XXI tivessem vencido. Mas talvez essa tenha sido apenas a primeira batalha, como brada o líder dos invasores, que não teve a cabeça decepada, porém, foi condenado a morrer com mais sofrimento. 

Bacurau aborda um campo onde os pobres se organizam em armas contra a violência imposta pelos poderosos – embora não haja consciência revolucionária. Pode ser uma metáfora sobre os resultados imprevistos para uma burguesia que optou por radicalizar sua guerra aos pobres. 

*Romulo Mattos é professor de História da PUC-RJ.

 

Bibliografia:

 CANDIDO, Antonio. “Sagarana”, in Eduardo Coutinho (org.) Guimarães Rosa. Fortuna crítica, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/Pró-Memória/INL, 1983, p. 247.

FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. 

LIRA, Breno da Costa. Práticas glocais na construção de novas linguagens musicais: o caso do Quarteto Novo. Dissertação (Mestrado em Música) – Departamento de Comunicação e Arte, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2017.  

NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira.  São Paulo: Editora Fundação, Perseu Abramo, 2007.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). Versão digital revista pelo autor. 2010. 

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