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CULTURA

Na Base da Cabula, de Roberto Mendes, mostra a beleza profunda do Brasil e afaga nossos ouvidos e alma

Felipe Nunes, colunista do Esquerda Online
reprodução / Instagram

Existe um Brasil profundo, “dispois dos derradêro cantão do sertão, lá na quadrada das águas perdidas” como diria o mestre Elomar Figueira Melo. E tão profunda é sua beleza quanto suas dimensões territoriais, este imenso país que no horizonte parece não ter fim, ao romper do dia e no descanso do desamanhecer. Lá onde o boi se chama pelo nome, boi galado, boi tinhoso, boi garrote, boi tungão. Lá onde os eguns, eres, orixás se misturam numa roda de samba. Brasil, Nordeste, Recôncavo Baiano, Sertão Potiguar. Nesse pedaço de terra se planta e produz belas canções, porta de entrada do mundo, esquecido secularmente pelos governantes. Terra de Lampião, Zumbi, Elizabeth Teixeira, morte e vida severina, do chão vermelho e seco, de um povo cheio de esperanças e ilusões.

Recentemente, alguns álbuns que foram lançados dizem muito sobre a profunda beleza destas terras tropicais. Os tempos não estão fáceis, por vezes, nos afundam em desesperança. Mas é preciso dizer e cantar que o Brasil não é Bolsonaro, Witzel ou qualquer outro governante genocida. Já tivemos sórdidos algozes no poder, marqueses, bandeirantes, ditadores. E nosso povo resistiu, lutou, e mais, continua a cantar a beleza que nos forma.

Nesta primeira coluna gostaria de dedicar algumas palavras singelas a João Roberto Caribe Mendes. Nasceu, cresceu e vive em Santo Amaro da Purificação, Recôncavo Baiano. E dali que retira a inspiração para escrever versos tão profundos quanto belos, à exemplo da famosa canção “Massemba” em parceria com o gigantes Capinam:  “Quem me pariu foi o ventre de um navio / Quem me ouviu foi o vento no vazio / Do ventre escuro de um porão / Vou baixar no seu terreiro / Epa raio, machado e trovão / Epa, justiça de guerreiro”.

Roberto Mendes acaba de lançar seu 11º álbum intitulado Na Base da Cabula e conta com a produção de seus filhos, Leonardo e João Mendes. O álbum é cru, registrando Roberto Mendes “nu”, pela primeira vez acompanhado apenas por seu violão. O álbum exalta as profundezas da nossa história e faz questão de nos lembrar de onde viemos. Cabula, palavra que compõe o título do álbum tem origem e significado polissêmico. Oriunda do quicongo com o sentido de “partilhar”. Também está associado à um antigo culto afro-brasileiro do século XIX, de origem bantu, utilizado pelos negros/as para abater seus inimigos com feitiço. Posteriormente, foi perserguida, sincretizada com elementos do catolicismo e espiritismo nas zonas rurais da Bahia e do Rio de Janeiro. Além disso, cabula se refere aos sons emitidos pelos atabaques que são tocados nos terreiros de nação angola e do congo com objetivo de apartar os males (NICOLIN, 2014). Esse som de resistência e grito pelo direito a vida permanece por mais de 200 anos no chão que sustentam os pés do Recôncavo Baiano e rebatem sobre todo o Brasil.

O disco que tem como coluna dorsal ritmos da Cabula e Chula do Recôncavo Baiano começa pedindo a benção a “Mãe Senhora”, agradecendo por tudo que pode viver. Em seguida na canção “Largo da Vida” canta a Bahia e seus afluentes, filhos e cores. Assim segue, fazendo questão de nos lembrar de que o samba existiu antes do samba e tem registro em cartório baiano. Canta para Oxalá, Senhor do Bonfim, a linda morena, para beira e o mar, aos Baianos Luz paridos dessa imensidão chamada Bahia.

Tal qual o som dos atabaques que afastam os males e rogam para que o tempo destronem os Senhores da Casa Grande, o novo disco de Roberto Mendes é um afago na alma nestes tempos que teimam e desafiam a existência da sensatez. As canções de Mendes fazem questão de recordar e cantar a beleza que existe dentro de nós, onde das profundezas desse país que por hoje chora, brota aquilo que realmente nos mantém vivos. “E mesmo que desamanheça e o mundo possa parar / E nem nada mais se pareça invento outro lugar / Faço subir à cabeça o meu poder de sonhar / Faço que a mão obedeça o que o coração mandar / Mesmo que ainda que tarde, não tarde por esperar / Dou um nó cego em seu remelexo e o deixo sem ar / Roda a baiana ligeiro / faço esse mundo girar”.

Façamos o mundo girar, o Brasil não pertence a esses facínoras. Do Brasil profundo partirá a beleza que arrasará os podres poderes. Salve Roberto Mendes. Saravá meu mestre!

Referências Bibliográficas
MENEZES, Jaci Maria Ferraz de; NICOLIN, Janice de Sena. Cabuleiros: memória e pluralidade africano-brasileira. IN: V SIALA – Seminário Internacional Acolhendo as Línguas Africanas, 2014, Salvador: EDUNEB – Editora da Universidade do Estado da Bahia, 2014.
Marcado como:
música