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TEORIA

Que os vivos enterrem seus mortos. A volta do século XX

Gabriel Santos, de Marechal Deodoro (AL)

O século XX foi um século de revoltas e revoluções. Muitas destas têm motivado debates apaixonantes e calorosos por parte da esquerda até os dias de hoje. Da mesma forma que os sujeitos que tiveram atuação fundamental nesses processos, organizaram novas teorias e fundaram movimentos, que há décadas se dividem, discordam e rivalizam.

Cada vez mais estes debates que muitos davam como superados estão voltando a tona. Os limites e importâncias das experiências pós-capitalistas do século passado, a conformação dos Estados Operários, assim como as polêmicas entre Leon Trotsky e Josef Stalin.

E é justamente sobre questões referentes a estes últimos que este texto trata. Sobre o porquê ser necessário hoje em dia, em pleno governo de extrema-direita, tratar sobre a disputa teórico-política entre Trotsky e Stalin e o que ela significa para o futuro da esquerda radical no Brasil.

Cada vez mais autores tratam e escrevem sobre erros e acertos de ambos os lados e sobre as posições políticas dos dirigentes bolcheviques, e os colocam contrapostos. Trotskistas versus anti-trotskistas, stalinistas vs anti-stalinistas, trotskistas versus stalinistas.

Apesar do crescente trabalho de revisitar as obras tanto de Stalin e Trotsky, alguns fazem o movimento inverso. Ao invés de mostrar as divergências, buscam apontar que o assunto “século xx” foi superado. Que as polêmicas entre os dirigentes bolcheviques está ultrapassada. Que é possível usar o melhor de Stalin, tanto quanto o melhor de Trotsky, e que as teorias e seguidores de ambos podem conviver pacificamente. Pois afinal, para os que pensam assim, os dois foram “grandes revolucionários”.

Normalmente os que opinam assim são defensores hora mais abertos, hora mais fechados do regime da burocracia stalinista, e admiradores de Stalin. Tendem a relativizar seus erros políticos e crimes por conta da realidade da época.

Nós temos uma opinião diferente. Não somos neutros nesse debate. Primeiro achamos que ele deve ser feito. Apesar de serem questões do século passado, elas ainda não estão resolvidas. São questões ainda atuais.

A atualidade destas não significa dizer que vivemos em condições iguais aquelas que os bolcheviques fizeram o assalto ao Palácio de Inverno em 1917, ou que o mundo é igual aos anos 20 e 30 do século passado. Vivemos em uma realidade completamente diferente. Nossas tarefas são diversas, nossas problemáticas em certo sentido são outras.

Falar em atualidade significa que os fatos que engendraram as polêmicas entre Stalin e Trotsky ainda se mantém. Em essência significa que a Revolução Russa continua viva, pois as suas lições ainda são completamente atuais, assim como as tarefas para quais a mesma surgiu na história.

Um século depois de 1917, mais de 80 anos depois do primeiro plano quinquenal, 90 anos depois da expulsão de Trotsky da URSS, 81 anos após a fundação da Quarta Internacional…. o tempo passou e foi implacável. Cabe a nós, revolucionários do século XXI, fazer um balanço sério do passado, ver o que se mantém, o que podemos utilizar e onde foram cometidos erros.

O método marxista é uma ciência. Para o marxismo não cabe fazer somente a crítica, é preciso após a crítica a superação do objeto criticado. A revolução socialista surge como uma crítica e superação da revolução burguesa, em especial, da revolução francesa. A revolução socialista no século XXI precisa surgir como uma crítica e superação dos erros e vícios das que ocorreram no século passado.

Em nossa opinião, a posição de afirmar que os debates do passado não interessam e buscar superá-los por um falso consenso e por meio de canetadas não nos serve. É um erro político. Um desastre teórico. E deseducativo.

É na prática elevar o passado, as revoluções e os revolucionários que as fizeram aos céus. Colocar como intocáveis que não podem ser revisitados, tocados ou criticados. É construir mausoléus e estátuas. Para nós, os revolucionárias e suas obras não podem ser endeusados, eles precisam e devem ser criticados, estudados, debatidos, ter seus erros apontados e superados.

Ao longo dos anos a polêmica dentro da esquerda socialista sempre existiu. Desde o início do movimento revolucionário. Marx polemizou com Proudhon, Lênin com Plekhanov, entre muitos outros. Porém, nem sempre esse debate se faz de forma fraterna. Qualquer militante que já se envolveu em algumas polêmicas já pode comprovar isso.

Às vezes, os debates entre nós passam dos limites, e nem sempre é possível ter uma discussão cordial. Contudo, no século passado as divergências acabaram se tornando uma verdadeira tragédia. Não dá para negar o passado, ou fingir que nada aconteceu. Os fatos concretos são que milhares de pessoas foram mortas por defenderem suas idéias.

Milhares foram mortos, fuzilados por aderirem a Oposição de Esquerda e as ideias de Trotsky, ou a outros movimentos anti-stalinistas e anti-burocratização. Outros milhares foram mandados para os campos de isolamento, prisões e campos de trabalho, como Vorkuta e Kolyma.

Não se pode negar que essas mortes ocorreram sob direção de Stalin e de seus aliados. Nós não podemos fingir que essas mortes não existiram. Não se pode esconder que Trotsky e sua família foram assassinados a mando de Stalin. Assim como não podemos esconder que somos herdeiros das divergências que levaram a essas mortes e ao mando desses assassinatos. As diversas correntes que existem na esquerda brasileira têm traços sanguíneos ou com os mandatários ou com os assassinados daqueles longínquos anos 30.

Para nós é preciso encarar a história de frente, e perceber que o passado ainda respira em nossas costas. As mortes que ocorreram ainda não foram esquecidas e não devem ser. A polêmica entre trotskistas e stalinistas não foi superada, muito menos enterrada. Enquanto uns acham que elas devem ficar nos museus, nós achamos que ele deve ser encarada, estudada.

Aqueles que discordam da necessidade deste debate e o aponta como superado, para assim “pegar o que de melhor ambos autores podem oferecer”, apontam que não devemos ficar colocando revolucionário “a” de um lado e revolucionário “b” de outro, como se fossem gladiadores e estivessem em um coliseu histórico. Dizem que tal método é deseducativo. Da mesmo forma apontam que para o século XXI é preciso construir um pensamento socialista comum, unificado e que não seja sectário na teoria. Os mesmos colocam que a análise histórica sobre erros e acertos do século XX acontecem no campo subjetivo. Não sendo possível fazer um balanço das ações dos revolucionários em questão. Acabaríamos criando uma espécie de disputa subjetiva, algo como um Cristiano Ronaldo vs Messi, onde cada um falaria de acordo com seus gostos subjetivos quem seria melhor, quem seria mais bonito, quem seria menos traidor e quem seria mais revolucionário. E cada um apontaria o dedo para o outro lado acusando o outro de traidor.

Nós partimos do oposto. Como dito acima a roda da história continua rodando, não para. Algumas questões a própria história tratou de resolver. Olhar para o passado é buscar nele algo para nos ensinar. Em nossa opinião discutir as revoluções do passado, e a construção dos Estados Operários no século XX e assim como das primeiras sociedades pós-capitalistas, é preparar e tirar lições para as revoluções do futuro.

A própria história se encarrega de realizar balanços e por a luz do tempo quem acertou e quem errou. Desta forma é sim possível analisar os erros e acertos e isto não têm nada de subjetivo.

A restauração do capitalismo na União Soviética confirmou o prognóstico de Trotsky de que uma das possíveis formas do capitalismo ser restaurado após a revolução seria por meio da burocracia dominante. Esta hipótese trotskista era minoria no campo da esquerda. Porém, a luz dos acontecimentos, não se têm debate. A história deu razão aos trotskistas.

Durante os acontecimentos do século passado a história e a luta de classes assinava embaixo da maioria dos prognósticos de Trotsky. No fim dos anos 30, a leitura do mesmo sobre as Frentes Populares, defendidas pela Internacional já stalinizada, se mostrou correta. Do mesmo modo o debate acerca da Frente Única para combater a chegada do nazismo ao poder na Alemanha, também deu razão ao criador do Exército Vermelho. A leitura dos gigantescos erros políticos cometidos pela burocracia soviética dirigida por Stalin, tanto no terreno Internacional, como na construção do Estado Operário, estão presente em inúmeras obras de Trotsky.

Acertar ou errar durante a história tem sua importância. Não é indiferente a questão dos erros e acertos. E ao cerne da disputa da luta política, Trotsky, acertou mais que Stalin. A contribuição deste é muito inferior à daquele no campo teórico do marxismo. Trotsky desenvolveu a Teoria do Desenvolvimento Desigual e Combinado. Stalin por sua vez desenvolveu um marxismo escolástico, ortodoxo, engessado, que cabia de forma estática nos manuais. Para nós, eles não são igual. Os erros de Stalin geraram uma verdadeira desgraça no movimento comunista internacional. Enquanto um foi assassinado por defender o legado da Revolução de 1917, por defender a democracia soviética e criticar os rumos que a URSS tomava, o outro mandou assassinar. Eles não iguais.

Apesar disso, existe um questionamento (que na nossa visão é de certa forma infantil) que alguns defensores do “não debate” fazem. Eles apontam e perguntam: será que Trotsky teria feito diferente? Alguns afirmam que Trotsky teria feito pior.

Esse questionamento obviamente a história não pode responder de forma prática, porque é uma hipótese que não ocorreu e não têm como ocorrer para ser testada. Mas podemos dizer que Trotsky defendia uma política diretamente oposta aquela aplicada por Stalin, um exemplo concreto disso é a política para a industrialização e a crítica dos trotskistas a coletivização forçada no campo.

A história conta porém, que quando perguntado porque não usou o Exército Vermelho para tomar o poder, quando tinha chance. Trotsky respondeu que caso tivesse feito isso, o domínio bonapartista da burocracia soviética teria se transformado em um domínio militar. A luta não era pelo aparato meramente, mas sim para pôr as massas em movimento como forma de manter a democracia soviética viva. Este fato mostra o gigantesco caráter de Trotsky e a compreensão que ele tinha dos processos históricos.

A memória de Trotsky, em nossa visão precisa ser defendida. E uma das formas de jogar a mesma fora é igualá-la a de seu assassino. São diferentes politicamente, teoricamente e moralmente. Trotsky foi um homem sem passaporte. Viveu parte de sua vida refugiado da política secreta que buscava assassiná-lo. Viu aqueles que eram mais próximos e que defendiam suas ideias serem mortos. Observou sua trajetória. Defender a memória de Trotsky é também defender sua morte, como um mártir da revolução. Ele morreu defendendo o que acreditava e fazendo o que podia para manter vivo a crítica a Revolução Russa de 1917. Porém, Defender sua vida e sua morte, é defender dentro do aspecto do marxismo revolucionário. Buscando entender suas obras e apontar onde acertou e onde errou, para também o superarmos. Não queremos construir estátuas em sua homenagem.

A defesa de Trotsky não quer dizer que Liev Davidovich Bronstein tenha sido o maior ser humano ao andar pela face da terra depois de Jesus Cristo. Mas sim de apontar que Trotsky teve um papel fundamental na Revolução Russa, para o marxismo e ao longo dos debates da esquerda radical no século XX, e que ainda temos muito a aprender com ele. E uma das partes fundamentais de seu arsenal teórico que ainda mantém vitalidade é a crítica a experiência com a burocracia stalinista na URSS.

É verdade que ele também errou. Seu prognóstico político sobre a Quarta Internacional após a Segunda Guerra não passou na prova do tempo. Sua visão sobre os sindicatos na URSS também foi ultrapassada, dessa vez por Lênin. E Trotsky também errou ao subestimar Stalin.

A verdade é que Stalin não tinha papel secundário na vida do partido. Na votação do Comitê Central em agosto de 1917, por exemplo, Stalin foi o quinto mais votado, Trotsky foi o terceiro. Antes de 1917 trabalhou da redação do Pravda, e comandava ações de expropriações revolucionárias contra bancos. Stalin também passou a controlar o aparato do partido por meio das finanças, onde era responsável por enviar dinheiro aos bolcheviques que estavam refugiados no exterior ou que iriam sair do país.

Enquanto o fundador do Exército Vermelho tratava Stalin com desdém e só passou a dar atenção ao georgiano quando o mesmo já tomava conta de todo o aparelho partidário, Stalin sempre viu Trotsky com atenção e preocupação, ao ponto de ter sido o responsável pelo seu assassinato.

O debate entre Trotsky e Stalin, entre trotskistas e stalinistas não foi superado pela história. Podemos afirmar que o mundo mudou completamente, e é preciso encontrar a dialética entre a tradição e a novidade, mas isso não é apagar o passado. A história ensina aos que querem escutá-la. Aprender com o passado é criarmos um novo instrumento para analisar o presente e realizar o mais difícil, construir um futuro.

A Teoria da Revolução Permanente se mostrou válida, a lei do desenvolvimento desigual e combinado se mostrou uma descoberta de valor inestimável e são armas importantes para o marxismo do século XXI.

A Revolução Russa ainda tem seu valor histórico, e por isso seus ensinamentos precisam ser vistos e revistos, pois ela ainda permanece viva, e tudo que é vivo nos ensina. Não podemos jogar fora os processos do século XX, suas polêmicas e buscar igualá-las. É preciso o movimento inverso, para assim aprendermos com o que aconteceu e assim ver o que se aplica a questões tão importantes para nossa realidade atual e preparar a Revolução na na América Latina e no Brasil.