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As confissões de Gorbatchev alertam os socialistas do século XXI para o perigo da credulidade

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Segundo reportagem publicada pela Carta Capital, Gorbatchev admitiu, em momento de desconcertante franqueza, durante um discurso realizado em uma universidade da Turquia, com todas letras:

“o objetivo da minha vida foi a aniquilação do comunismo… minha esposa me apoiou plenamente e o entendeu até mesmo antes que eu (…) e para alcançá-lo, consegui reunir companheiros de luta, como Yakovlev e Shevardnadze”.[1]

A restauração capitalista foi uma derrota histórica. Já temos a distância de uma geração para compreender o impacto contrarrevolucionário que teve na Rússia e no mundo. Foi devastadora. Nos últimos trinta anos, o intervalo de uma geração, o projeto socialista perdeu grande parte da autoridade e credibilidade que tinha conquistado depois da vitória histórica da revolução de outubro.

Gorbatchev foi o arquiteto da restauração capitalista na ex-URSS. Que tenha sido uma fração da direção do próprio Partido Comunista a liderar a destruição do que ainda estava de pé das conquistas da revolução de outubro é uma lição estratégica que não deve ser diminuída. No século XXI a nova geração socialista pode aprender a desconfiar da credulidade da geração anterior. As aparências enganam. A inocência tem consequências.

Os discursos de Gorbatchev, e o próprio livro Perestroika argumentavam, nos anos oitenta, que a assim chamada “reestruturação” obedecia a uma estratégia de defesa do socialismo, não do capitalismo. E assim foi defendida, ardorosamente, pelos partidos comunistas mundo afora, inclusive no Brasil. O perigo dos extremos da estalinofobia e da estalinofilia resumiram, por outro lado, o dilema dos internacionalistas no século XX.

A questão russa foi um tema teórico e político incontornável nos debates marxistas do século XX. O que era a URSS era uma pergunta inescapável. Era um divisor de águas que dividia a esquerda, quando cheguei à vida adulta em meados dos anos setenta. Sendo um fenômeno original, historicamente, exigia uma nova elaboração, ainda que inspirada nas premissas teóricas legadas pelas gerações marxistas anteriores.

Foram muitas e variadas as tentativas de compreensão da natureza da URSS: se as relações sociais capitalistas tinham ou não sido superadas, se eram não-capitalistas ou pós-capitalistas; se o Estado soviético era um Estado socialista ou burocrático, ou operário burocraticamente degenerado ou capitalista de Estado; se a URSS era ou não um Estado que impunha uma relação imperialista aos outros Estados não-capitalistas, ou até, aos Estados que conquistaram a independência nacional no pós-Segunda Guerra Mundial. A mais complexa e difícil, no calor dos acontecimentos, era discernir se a formação econômico-social e política russa, com suas imensas contradições, poderia ser duradoura ou não. Hoje sabemos a resposta, claro. Mas durante décadas esta discussão teórica, extremamente, complexa colocou desafios políticos complicadísimos: apoiar a Coréia do Norte na guerra civil em 1950/53, mas não apoiar a invasão da Tchecolosváquia em 1968, por exemplo.

Entre marxistas, a elaboração de Leon Trotsky, e daqueles entre a velha guarda bolchevique que a ele se associaram nas oposições dos anos vinte, como Rakovsky, se destacou como uma das principais referências.

Trotsky partiu da análise marxista da transição do feudalismo ao capitalismo para refletir, da mesma forma que Lênin tinha ensaiado em seus escritos nos primeiros anos do regime soviético, sobre o desafio das condições de uma passagem histórica ainda mais complexa, a transição do capitalismo ao socialismo.

Suas referências foram Marx e Engels que consideraram que a transição ao capitalismo tinha sido um processo internacional, liderado pela Europa, que consumiu vários séculos com muitas oscilações de sentido, avanços e recuos, flutuações, estagnações e depois acelerações.

Marx não confundia a análise da dinâmica das relações sociais de produção que se desenvolveram no seio das sociedades européias, entre o século XV e o século XVIII, o período da acumulação primitiva de capital, com a análise sobre a natureza social dos Estados absolutistas, como o francês antes da revolução de 1789. Nesse sentido a sociedade francesa do final do século XVIII já era capitalista, ainda que o Estado dirigido pela dinastia dos Bourbons fosse, ainda quando controlado pela aristocracia, uma solução política de compromisso e equilíbrio entre os interesses de duas classes proprietárias.

Concluiu que na mesma sociedade poderiam conviver, paralelamente, relações sociais pré-capitalistas, feudais ou outras, e relações capitalistas. Em qualquer modo de produção são possíveis os amálgamas mais estranhos, os híbridos mais esdrúxulos, as combinações mais bizarras. Este foi sempre o padrão na evolução histórico-social. Não encontraremos, tampouco, correspondência harmoniosa entre as formas econômico-sociais e as superestruturas políticas.

Ao contrário, descobriremos incongruências que são a manifestação do desenvolvimento desigual e combinado. Na história das sociedades não encontraremos formas “puras”. Todas as sociedades são híbridos de relações sociais diversas e em mutação, com a simultaneidade de relações sociais, tradições culturais e instituições políticas que surgiram em tempos diversos e espaços diferentes, mas convivem, contraditoriamente, por algum tempo. Quanto mais contraditórias, mais instáveis.

Marx admitiu como hipótese de trabalho que, na transição histórico-social ao comunismo – ou seja, na superação da sociedade de exploração de classes – seria necessária uma fase intermediária, o socialismo. Trotsky, no seu tempo, concluiu que a passagem econômico-política ao socialismo exigiria, também, uma etapa transitória.

Seria mais rápida ou mais lenta em função das vitórias ou derrotas da revolução mundial. O perigo de um bloqueio ou de uma estagnação da transição ao socialismo na URSS esteve na mesa de trabalho dos bolcheviques desde o início, como uma hipótese levantada em primeiro lugar pelo próprio Lênin, horrorizado diante do atraso econômico e cultural da Rússia. Por isso, usou diferentes conceitos para defini-la.

A caracterização da URSS como um Estado controlado por uma casta socialmente privilegiada, mas que só poderia se perpetuar pelo controle político monolítico, ou seja, uma ditadura – um regime político inferior, historicamente, à democracia-liberal dos Estados capitalistas nos países imperialistas – mas que se apoiava em relações de propriedade superiores ao capitalismo, admitia que a formação social existente na URSS era um híbrido histórico instável.

O conceito de Estado operário burocraticamente degenerado, uma fórmula contraditória que busca em uma síntese a expressão de um conflito social e histórico, se insere nesta tradição teórica. Sendo um híbrido histórico inconsistente sua existência seria, provavelmente, transitória. Se a revolução mundial não obtivesse triunfos, relativamente rápidos, em alguma das sociedades mais industrializadas, portanto, mais desenvolvidas, mais complexas, mais instruídas, a dinâmica regressiva na própria URSS seria irremediável, e a restauração do capitalismo seria uma questão de tempo.

A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que os seus regimes políticos fossem aberrantes deformações burocráticas, significou uma evolução inesperada da história. Colocou a esquerda organizada diante de uma situação paradoxal, e o marxismo teórico diante de um desafio político dificílimo.

Deveriam defender a natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista. Deveriam defender as conquistas da revolução contra os diferentes movimentos das frações que surgiram do interior das castas burocráticas para eternizar seus privilégios sociais e seu controle político que, na longa duração, só seria possível com a restauração.

Deveriam, porém, ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores e da juventude pelas liberdades democráticas, contra os regimes políticos de opressão, para reabrir o caminho para a democracia socialista e o retorno ao internacionalismo. Ou seja, uma defesa condicionada ao signo de classe do conflito.

A oscilação do pêndulo foi sempre muito complexa nas mais variadas conjunturas provocando, nos seus extremos, inevitáveis desequilíbrios: estalinofilia nos defensistas mais esquemáticos, ou estalinofobia nos anti-defensistas mais dogmáticos.

Mas, ainda assim, o internacionalismo dos trotskistas passou a prova da história.

Aqueles que abraçaram a posição de uma defesa incondicional, ou a posição de uma oposição incondicional, não.