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BRASIL

A emergência do neofascismo e a necessidade da Frente Única dos trabalhadores 

David Cavalcante, de Recife, PE

Não esqueçamos que, antes de abater o proletariado por meio de atos de terror, o fascismo italiano já tinha assegurado uma vitória ideológica e política sobre o movimento dos trabalhadores que se encontra nas raízes de seu triunfo. Seria muito perigoso equivocar-se frente à importância de superar o fascismo ideológica e politicamente.

Clara Zetkin 

Todo o ativismo social, a militância de esquerda, a intelectualidade democrática e o meio artístico libertário e progressista se deparam com um dilema fundamental no Brasil de hoje, dominado pelo bloco de poder bolsonarista e seu governo neofascista: como frear esse governo reacionário a serviço do neocolonialismo e derrotar essa onda anticivilizatória que tem no chefe da nação sua maior expressão?

É justo que essa seja esta a principal questão nos círculos políticos da esquerda e dos diversos movimentos sociais. Milhares de líderes sociais, profissionais e políticos da esquerda e do pensamento crítico jogaram suas vidas para assegurar as garantias democráticas e os direitos sociais que se inseriram juridicamente na Constituição de 1988, nas Leis infraconstitucionais e concretamente nas políticas sociais que se conquistaram nos últimos 30 anos no país e tudo está sendo destruído.

Nos deparamos de forma inédita no Brasil pós-regime militar com uma realidade política e social que muitas vezes se relevam como surreais ou inacreditáveis. Já que se propaga de forma aberta sem nenhum pudor, desde as eleições passadas, e agora nos principais postos do poder central da União e em alguns governos estaduais como no Rio de Janeiro, bem como na fala de parlamentares, alguns líderes religiosos e jurídicos, a valorização tosca da intolerância e da violência na política e nas relações humanas, a superexploração dos trabalhadores, o racismo, a homofobia, a misoginia, o menosprezo pelos indígenas e pelos nordestinos ou ainda a destruição do meio ambiente agravando a crise ecológica.

Após 8 meses de gestão, não há mais dúvidas que o governo atual não é apenas um tipo “conservador” ou “reacionário” ou somente mais um “neoliberal” de plantão como foi o governo de FHC, que se combateu com lutas sociais e em seguida apresentou-se candidaturas de esquerda, derrotando-o nas eleições, onde garantiu-se desta forma a alternância de governo, sem grandes fraturas da democracia liberal-burguesa no comando do poder da União e nos Estados Federados.

Podemos afirmar que o núcleo central do governo é sim de caráter fascista, ou neofascista se queremos falar do fascismo do Século XXI, pois pretende pela via da violência e do extermínio, não somente destruir as conquistas sociais e as liberdades democráticas duramente conquistadas, mas busca destruir fisicamente as organizações políticas, sindicais, intelectuais, culturais, os movimentos sociais e todas organizações ligadas à classe trabalhadora e seus interesses imediatos e históricos. Mas um governo fascista não é sinônimo de regime político ou Estado fascista, é um meio para alcançá-lo, um meio poderoso se alicerçado em mobilizações sociais. Assim ocorreu na Itália e na Alemanha, nas décadas de 1920 e 1930, primeiro alcançaram o governo, depois pouco a pouco foram transformando o regime político e o Estado.

A então dirigente socialista alemã, Clara Zetkin (Autonomia Literária, 2019), analisando a ascensão do fascismo na Itália, destaca que ante uma terrível crise econômica e social, os grupos fascistas eram heterogêneos e não chegavam a acerca de 100 células em todo o país, em maio de 1920, mas com sua associação financeira e política com a burguesia tradicional, bem como a conivência/apoio do governo,  do poder judiciário e das forças policiais, que igualmente desejavam a derrota do proletariado, saltaram para cerca de 2 mil grupos, no prazo de 1 ano. Sendo que ainda não era um partido centralizado, tarefa que assumiu a fração de Mussolini, que tampouco era maioria entre os bandos direitistas até o ano de 1921. Somente depois de nacionalizado e centralizado o partido saltou para 500 mil membros em poucos anos. Some-se a essa tragédia um fator decisivo que foi a vacilação e os erros do Partido Socialista.

Não podemos descartar que se repita, com suas características contemporâneas, fenômenos similares aos do passado. No Brasil e no mundo, ressurgiram fortes movimentos políticos e ideológicos de caráter neofascistas, e para além de movimentos, governos locais e nacionais com características fascistas. Portanto, não se pode subestimar o peso dos retrocessos em curso. Relembremos a experiência histórica, primeiro o fascismo nasceu como movimento de grupos direitistas, depois se forjaram como partido nacional e, na sequência, conquistam o governo com o apoio ou capitulação da burguesia tradicional e a conivência as instituições do Estado, por fim, passaram a aprofundar o caráter bonapartista do regime até destruir por completo as diversas organizações autônomas políticas, culturais, sociais e sindicais da classe trabalhadora, e finalmente, suprimiram definitivamente as liberdades democráticas e a própria democracia burguesa.

Há que se barrar os movimentos fascistas ou protofascistas em seu nascedouro. Impedi-los que cheguem ao governo e, se chegarem, a tarefa mais importante de todas é convocar a classe para que de forma unitária possa derrotá-lo em todos os terrenos, sindical, na luta direta e nas eleições, preparando a contraofensiva. Não subestimemos os movimentos protofascistas contemporâneos. É possível afirmar que está em curso um processo de mudanças no regime político das democracias liberais, ou seja, mudanças qualitativas na forma como se articulam e se organizam as instituições do Estado para o exercício o poder na sociedade.

No Brasil, não apenas o governo mudou, está em operação mudanças no regime político da democracia burguesa, para tal usam a cortina de fumaça da luta contra a corrupção, mas a Lava Jato se revelou como principal instrumento político da extrema direita no país, sem qual não seria possível o Golpe16 e a subversão das eleições presidenciais de 2018.

A classe dominante do sistema capitalista, a grande burguesia empresarial e financeira, exerce o seu poder político sobre o conjunto da sociedade, através do Estado e suas instituições. O Estado, independentemente do grau de democracia em que se sustente é uma ditadura de classe, uma ditadura das classes que dominam sobre as outras classes e setores sociais dominados. As frações dominantes da sociedade se impõem através, tanto da coerção física e jurídica, quanto do consenso social e ideológico. Os interesses econômicos, políticos e sociais da classe burguesa é o que molda sua dominação sobre o conjunto da nação.

O Estado pode assumir diversas formas, sendo mais democrático ou mais autoritário, mais centralizado ou menos centralizado, mais coercitivo e persecutório ou mais garantista de direitos e liberdades. Um mesmo conteúdo de classe do Estado pode assumir formas distintas: democracias mais liberais, democracias sociais ou mesmo ditaduras civis e/ou militares. Por exemplo, no Brasil, mesmo depois da queda do regime militar e a vitória da democracia, não houve sequer pequenas mudanças democráticas nas instituições militares que se preservaram intactas em sua cultura de criminalização das lutas sociais, mas tanto o Estado do Golpe64 quanto o Estado pós-Constituinte86 são formas de dominação do capitalismo.

A importância da análise da relação de forças sociais e sua dinâmica 

A extensão do período histórico de relação de forças entre as classes e setores de classes também é uma régua importante. Não basta haver uma geração aguerrida para os embates políticos, como houve durante a resistência dos grupos clandestinos ao regime de 64 no Brasil. É preciso que tais gerações naveguem em águas favoráveis para girar o curso mais civilizatório das mudanças sociais em dinâmica progressiva. A resistência do movimento dos ativistas sociais tem que ser maníaca para buscar inverter a relação de forças, o cabo de guerra entre as classes fundamentais da sociedade, buscando não somente defender suas conquistas mas preparando em perspectiva histórica a superação do Estado burguês, que somente pode ser alcançado pela via da insurreição.

O tempo presente, desgraçadamente agravado com a crise capitalista global desde 2008, ainda impregnado pelas heranças negativas resilientes da queda do Muro de Berlim, indica que não estamos apenas diante de uma conjuntura (curto espaço de tempo, medido em meses ou semanas na arena do cenário político e econômico), mas ante uma etapa de longo ou médio prazo de relação de forças desfavorável para os setores da sociedade que defendem e lutam pelos direitos sociais e trabalhistas, pelas liberdades democráticas e pelos direitos fundamentais. Neste cenário, a audiência para um programa socialista de transição está bem diminuta.

As conjunturas de curto prazo ou as etapas de longo prazo (ou ainda as “situações” políticas se queremos falar de médio prazo), se abrem e se fecham em razão dos grandes embates políticos, militares e também eleitorais na sociedade, entre as classes e setores de classes, entre os sujeitos sociais e suas organizações.

O bolsonarismo expressa, enquanto movimento político e ideológico, a materialização de uma onda reacionária que tomou corpo a partir das derrotas das Jornadas de Junho de 2013, que já tinha em suas entranhas o ovo da serpente sendo chocado, mas teve suas diretrizes políticas resolvidas por fatores mais profundos da crise social brasileira e diante da experiência pela negativa com os governos do PT.

Desde então, uma situação reacionária se abriu onde a grande burguesia e suas frações mais antidemocráticas e pró-imperialistas tomaram o protagonismo político no cenário nacional e impuseram uma agenda neocolonial e de espoliação social no país, legalizando e buscando legitimar um assalto ao poder impulsionado a partir da Operação Lava Jato e com o Golpe Jurídico-Parlamentar contra o governo de Dilma Rousseff.

Na sequência, prenderam e julgaram o Lula de forma totalmente manipulada para impedir sua candidatura, criando as condições para a derrota do candidato presidencial do PT e das forças sociais e políticas que expressavam uma tentativa de barrar o fechamento do regime político, nas eleições presidenciais e parlamentares de 2018. As fake news e a grande mídia empresarial navegaram neste tsunami da contrarrevolução para apoiar Bolsonaro, sem o qual não teriam audiência suficiente para instrumentalizarem o pensamento mediano das classes médias em decadência social e dos setores dos trabalhadores assalariados desmoralizados e desorganizados pelos governos anteriores da Frente Popular.

Mas o objetivo estratégico (objetivo final) do bolsonarismo e seu governo está em curso, mas ainda não foi alcançado. É preciso impedi-los! Eles querem impor uma nova ordem social e econômica com novos patamares de exploração e espoliação da força de trabalho e destruição do meio ambiente. A covarde, reacionária e submissa burguesia brasileira pretende sair da crise esticando ao máximo a extração da mais-valia e ampliando os ataques aos setores medianos da sociedade. Não desejam apenas impor reformas neoliberais na legislação, que por si só já são extremamente destrutivas para a vida da maioria da população como é a Reforma da Previdência, a destruição da CLT, a privatização da saúde pública e da educação públicas. Por isso, não há mais receio em se propagar o extermínio de setores sociais, a exemplo do que já se aprofunda com as populações originárias ameaçadas pelo garimpo ilegal, pelo latifúndio e pelo desmatamento.

O que vem emergindo do submundo social da desagregação do tecido societário, desde o agravamento da crise de reprodução global do capital que foi aprofundada com a crise financeira de 2008 são soluções radicais de extrema direita, onde o extermínio de regiões e populações inteiras do planeta estão cada vez mais ameaçados. Vejamos o exemplo da crise humanitária dos refugiados que já alcançou cifras superiores aos números do pós-Segunda Guerra.

Para tal projeto, o capital necessita, através de seus representantes políticos, militares, jurídicos e ideológicos, impor uma derrota de longo prazo, uma derrota de gerações, à resistência democrática, estabelecendo um novo regime político, um regime bonapartista semifascista ou abertamente fascista, muito mais autoritário e mais coercitivo. Por isso, erram categoricamente os setores da esquerda que tratam a oposição a Bolsonaro apenas como preparação para as eleições de 2022, numa mesa rotina de como faziam no passado quando perderam 4 eleições para o PSDB. Até lá poderá ser tarde demais.

A potência da Frente Única:  a principal ferramenta para derrotar o neofascismo 

Mas voltemos à pergunta inicial que motivou este artigo: como frear esse governo reacionário e derrotar essa onda anticivilizatória que tem no chefe da nação sua maior expressão? Como impedir o fechamento do regime e buscar inverter a relação de forças? Por um lado, existem setores da esquerda que apostam todas as fichas na preparação eleitoral de 2022, sendo os movimentos sociais apenas acessórios daquela. Por outro, há os impacientes que buscam fórmulas mágicas para derrotar o governo, desprezando a inércia da classe bem como o próprio calendário eleitoral.

As experiências históricas nos indicam algumas pistas. Não há garantias supremas, mas a principal ferramenta que se mostrou uma poderosa força de combate foi e é a formação da Frente Única dos trabalhadores e de suas organizações políticas e sindicais. A unidade da classe, não somente nas eleições ou em blocos parlamentares, mas em suas ações e programa, uma unidade construída honestamente e com abnegação desde a base às direções, com total liberdade de crítica e opinião como dever ser o movimento dos trabalhadores e dos oprimidos.

A história do Século XX revelou que das maiores crises sociais e econômicas do sistema capitalista surgiram saídas para as mesmas que buscaram na destruição das forças produtivas (força de trabalho, natureza e tecnologias) e em particular, na degradação e no extermínio humano, a solução para impor uma nova ordem política a serviço de um sistema que para sobreviver precisa aprofundar a exploração e a opressão dos trabalhadores e dos povos. Assim foram o fascismo italiano e sua expressão alemã, o nazismo, além de suas variantes nacionais na Europa e no mundo.

Algumas organizações e intelectuais da esquerda se preocupam muito em encontrar as diferenças entre o bolsonarismo e o fascismo do Século XX. Creio que ante os desafios atuais é mais útil encontrar as similaridades e entre tais movimentos de extrema-direita: a busca por instituir um regime bonapartista e destruir as organizações da classe trabalhadora e seus aliados, impondo uma derrota histórica.

Diante de movimentos de massas e partidos fascistas e governos com caraterísticas fascistas a principal tática é construir uma ferramenta unitária, é convencer, lutar e organizar para que as principais organizações da classe trabalhadora, suas direções e suas bases edifiquem de Fato a Frente Única, que pode se tornar no principal instrumento para enfrentar movimentos de ultradireita nas ruas e seus similares e diante dos ataques desses governos. Pouco servem as reuniões das centrais sindicais se não há continuidade unitária nacional e local do calendário de lutas.

A Frente Única não é somente a formação de fóruns para organizar protestos ou greves, pois essa prática já é a rotina do movimento social, a unidade de ação imediata para atingir objetivos específicos. Estamos tratando de um objetivo estratégico: a derrota do neofascismo que já está instalado no governo central, em governos estaduais e municipais, nos parlamentos e nas diversas instituições do Estado, em particular nas forças policiais. A unidade de ação é importante e deve ser praticada de forma mais ampla com setores da sociedade civil e até mesmo com setores da burguesia opositora, representada no país pelos partidos PDT, PSB e Rede, ou frações das legendas do chamado “Centrão”.

Ocorre que, diante de uma força social gigante que é o apelo político e ideológico de massas dirigidos pelos líderes e pelas bandas fascistas e algumas religiosas neopentecostais que agem de forma violenta para desmoralizar e destruir as organizações da classe trabalhadora, somente pode sair vitoriosa outra força social de massas unificada em movimento para destruir a contrarrevolução reacionária.

Mas a unidade da classe trabalhadora e suas organizações não pode ser para meros comícios de rua, precisa ser forjada de forma honesta em cada local de trabalho e estudo, em cada cidade, com as diversas organizações da classe trabalhadora em comitês unificados com suas diversas organizações políticas, sindicais, lideranças e bases respectivas, em organismos e instâncias comuns. Só assim se poderá enfrentar e medir força contra o neofascismo, e inclusive se organizar a autodefesa se for necessário.

Neste terreno, há uma certa confusão sobre o caráter das frentes políticas. A Frente Única da classe trabalhadora e seus aliados sociais, mais conhecida como a Frente Única Operária, é a chamada Frente Progressista ou Frente Ampla com todos os partidos de oposição inclusive os partidos de oposição da classe burguesa? Não, não são a mesma coisa. No próximo artigo trataremos dessa polêmica.

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