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COLUNISTAS

Minha viagem à China em junho/julho de 2019

Por Henrique Carneiro

Relatos de viagem são sempre visões particulares, sob um prisma individual e temporário. Como escreveu Paul Theroux, “escrever sobre viagens é uma forma reduzida de autobiografia”[1]. No meu caso, foi uma viagem à China de apenas 18 dias, dos quais, oito em Xangai, incluindo três dias de uma conferência da ADHS (Alcohol and Drugs History Society), na Universidade de Xangai, num bairro periférico da cidade (distrito Baoshan). Depois fui de trem para Nanjing, onde fiquei duas noites, depois novo trem de cinco horas até Ychang, mais um ônibus de hora e meia até o porto fluvial do Yang Tse chamado Zingui, onde tomei um navio de cruzeiro durante quatro noites em que percorremos cerca de 600 km do maior rio da Ásia (menos de 10% de seu comprimento), até Chongqing, que é a maior área metropolitana do país, com 29 milhões de habitantes, governada diretamente pela administração central (assim como apenas outras três cidades: Beijing, Xangai e Tianjin). Nesta cidade fui do porto ao aeroporto onde embarquei num avião pra Beijing, onde fiquei mais três noites e depois voltei num trem que ia a 345 km por hora até Xangai novamente.

A primeira coisa que ressalta na China é a enorme dimensão de tudo. Xangai que é a maior cidade do mundo, com 24 milhões de habitantes, tem o maior metrô e o segundo maior edifício, é onde foi fundada a China contemporânea com a realização do primeiro congresso do Partido Comunista Chinês, em 1921. De uma cidade cosmopolita e dominada por potências coloniais que dividiam o controle da cidade por uma área francesa e outra inglesa, chamadas de “concessões”, é uma capital populacional e cultural de um país que vem se tornando uma potência global com perspectivas de passar a ser a principal no equilíbrio geopolítico do planeta. Com a maior população do mundo de cerca de 1,4 bilhões (em torno de 18% da população do planeta, embora se preveja que a Índia irá superá-la em alguns anos), um território continental, uma civilização milenar e um crescimento econômico contínuo há décadas, a condição de global player número um é uma espécie de destino natural desse país.

A tese de Giovanni Arrighi no livro Adam Smith em Pequim, de 2007, é de que o século XXI será um “século chinês”, ou seja, que haverá um período de predominância desse país na economia e na política internacional. A forma dessa predominância ainda está indefinida, mas ela parece não apontar ambições supremacistas militaristas, como ocorreu com o projeto do “novo século norte-americano” dos EUA. Ao invés de um país imperialista, a China se caracterizou por ser uma nação colonizada e oprimida pelas potências europeias ao longo de mais de um século, que só após a segunda guerra mundial alcançou a sua efetiva emancipação e soberania nacionais.

O PIB nominal da China hoje, conforme os dados da ONU, é o segundo do mundo, de cerca de 15 trilhões de dólares, sendo o primeiro o dos EUA, com 21 trilhões, e o terceiro o japonês, de cerca de 5 trilhões. Mas, pelo método de cálculo segundo a paridade do poder de compra, o PIB chinês já seria o maior do mundo, superando os Estados Unidos.

A economia chinesa também é a que mais vem crescendo nas últimas décadas, com um crescimento médio de 9,5%, que só agora começou a cair para em torno de 6,5% anual.

O sucesso desse crescimento, muito mais do que devido às medidas de liberalização econômica e abertura aos capitais internacionais, parece ser também o resultado da manutenção de uma planificação central e de um controle estatal e de uma presença da propriedade estatal ainda em cerca de 40% da economia. Apesar do peso enorme das empresas estatais, o setor privado já seria responsável por 60% do PIB, por 70% da inovação tecnológica e por 80% dos empregos urbanos[2].

Isso leva os governantes chineses a adotarem um discurso em que se postulam como os maiores defensores do crescimento econômico do capitalismo global e da liberdade de comércio, apresentando o governo Trump como um inimigo do liberalismo econômico, praticante de medidas protecionistas e de guerra comercial por motivos egoístas e que irão comprometer a prosperidade global.

Dessa forma, salta aos olhos o maior de todos os paradoxos contemporâneos, ou seja, o de que a economia de maior crescimento capitalista nas últimas décadas seja a de um país oficialmente comunista, cuja Constituição traz, como artigo primeiro, a afirmação de que: “a República Popular da China é um Estado socialista, sob a ditadura democrática da classe trabalhadora e baseado na aliança entre os operários e os camponeses” e o artigo sexto estabelece que: “a base do sistema econômica da República Popular da China é a propriedade pública dos meios de produção, nomeadamente, a propriedade do conjunto do povo e a propriedade coletiva do ovo trabalhador”[3].

Os guias chineses com quem conversei tinham visões distintas. Para um deles, o comunismo na China hoje não passa de algo que só existe da “boca pra fora” (lip service). Outro, repetindo a versão oficial, dizia que o país é uma “economia socialista de mercado”. O conceito de “capitalismo de estado”, muito usado no ocidente, é repudiado pelo governo chinês, que continua a estabelecer o socialismo como um objetivo, inclusive datando a sua realização para o ano de 2050, como faz o governo atual.

O PCC tem a prática de levar “jovens empresários” para jornadas de três dias de estudos em Xibaipo, aldeia em que se estabeleceu a primeira base rural do partido durante a guerra civil, para aprenderem com o “espírito revolucionário do PCC”. Esse “espírito de Xibaipo” é definido como “ser modesto, prudente e trabalhar duro”[4].

A ideologia “comunista” atual se parece muito com as cinco virtudes do confucionismo (bondade, retidão, bem-estar, sabedoria, lealdade) ou os ideais vagos e genéricos dos “três princípios” da primeira república de Sun Yatsen, em 1911: nacionalismo (minzu), democracia (minquan) e bem-estar do povo (minsheng).

O culto oficial ao maoismo se contrasta com o florescimento de um enorme consumismo que faz do ideário ultra-igualitário da Revolução Cultural (chamada na China de “Dez anos turbulentos”) um anacronismo diante de um comércio de luxo nas capitais maior do que costumo ver mesmo nas maiores cidades ocidentais. Também é notável não haver miséria visível, nem nos centros das grandes cidades, assim como ao longo de quase 12 horas em que olhei as paisagens das janelas dos trens.

A expansão da construção civil com centenas de edifícios enormes, de 30 a 40 andares, brotando como se fossem ilhas urbanas intermináveis ao longo de toda a área entre Xangai e Nanjing é impactante. Nunca vi tantos guindastes de construção como lá!

No rio Yang Tse, comecei um cruzeiro de 4 dias pela maior represa do mundo, a das Três Gargantas, que é também a maior construção de concreto do mundo. Aliás, a notícia que tinha lido sobre a China estar colocando mais concreto a cada três anos do que os EUA produziu ao longo do século XX inteiro, dá um pouco a dimensão do que significa o ramo da construção pesada na China, que emprega 60% do cimento do mundo hoje em dia[5]. Mas, a pujança chinesa não é apenas nos volumes e quantidades, o que mais me surpreendeu é o alto grau de desenvolvimento tecnológico incorporado no dia-a-dia.

Em Xangai, quase todos os veículos de duas rodas eram elétricos. O uso do aplicativo de celular Alipay, usado por 800 milhões de pessoas, faz do celular o meio de pagamento mais comum, até mesmo para o metrô. O sistema viário de trens de alta velocidade é uma rede que interliga todo o país. Nas tecnologias do 5G, da internet das coisas, da inteligência artificial, da robótica e da computação em nuvem, os chineses estão na vanguarda.

A exclusão das “quatro grandes” da economia digital global (Google, Amazon, Apple e Facebook) criou uma intranet no lugar na internet, com um bloqueio geral dos sites ocidentais, inclusive os jornalísticos e acadêmicos, cujos efeitos são, por um lado, um enorme controle estatal da circulação de informações com elementos diretamente orwellianos de vigilância e, por outro, a criação de uma reserva de mercado para as empresas chinesas que criaram redes sociais análogas às ocidentais.

O massacre de Tienanmen, sobre o qual li uma minuciosa crônica do jornalista italiano Ilario Fiore, continua como o emblema de um regime que impediu, por meio da repressão letal, a emergência de qualquer forma de organização autônoma de estudantes e trabalhadores. A praça, na sua enormidade de proporções desumanas de concreto e vastidão, com o mausoléu de Mao visitado por filas intermináveis de milhares de devotos, é um centro geográfico e simbólico do poder. Da Cidade Proibida ao complexo governamental de Zhongnanhai, os acessos sempre controlados exibem um poder imperial que vem sendo um estado contínuo há mais de dois mil anos.

O cientista social Wang Hui, em seu livro sobre a China do século XX[6], argumenta sobre o papel excepcional do PCC que, durante a guerra popular, teria criado a auto-expressão da classe trabalhadora e, dessa maneira, a classe no sentido político, “nenhum partido no passado” – escreve ele – “conseguiu criar uma classe proletária composta primariamente de camponeses”. Durante a “longa revolução chinesa” que iria desde a proclamação da república, em 1911, até a morte de Mao e o fim da revolução cultural em 1976, o partido comunista teria, entretanto, se transformado num “super-partido” com algumas características “supra-partido”, mas, num processo de despolitização, teria ocorrido uma destruição da representação em prol da “estatização” (statification) do partido num sistema de estado-partido (guodang tizhi) em que a lógica do estado controla o partido e não o contrário. Essa “estatização” se acompanhou da “partidização da mídia” e da “midiatização da política”, financeirizando a mídia e contraindo e suprimindo a esfera pública e o debate intelectual.

As condições propostas por Wang Hui para a superação desse partido estatizado seriam: a liberdade de expressão da cidadania, com espaço na esfera política para a participação política dos cidadãos apoiada pela tecnologia moderna e com a reinstalação dos trabalhadores no centro da vida política chinesa.

O povo chinês, em sua enorme diversidade, me pareceu, em geral, um povo alegre e expansivo, em que as pessoas falam e riem alto, cantam nos parques, dançam nas ruas e tratam bem os estrangeiros. Mas, também andei no metrô às 7 da manhã, com a multidão autista de zumbis eletrônicos grudada em seus celulares numa proporção que nunca tinha isto igual. Sempre com uma delicadeza que só quem vive em meio a multidões tão grandes sabe ter. Para sair dos trens lotados ou para caminhar pelas escadas rolantes nunca vi aquela aspereza rude dos empurrões indelicados que sentia, por exemplo, em Moscou.

O que é China e no que ela vai se tornar é um debate em aberto. Não teria a pretensão de fazer desta crônica de uma breve viagem uma análise mais aprofundada e referenciada. O que não resta dúvida é de que não se poderá mais pensar no destino futuro da história global sem levar em conta esse enorme, antigo e exuberante país.

 

 

[1] Paul Theroux, Viajando de trem através da China, Porto Alegre, LPM, 1995, p.82.

[2] Amir Guluzadi, “Explained, the role of China’s state-owned companies”, WEF, in

https://www.weforum.org/agenda/2019/05/why-chinas-state-owned-companies-still-have-a-key-role-to-play

[3]“The People’s Republic of China is a socialist state under the people’s democratic dictatorship led by the working class and based on the alliance of workers and peasants”; “The basis of the socialist economic system of the People’s Republic of China is socialist public ownership of the means of production, namely, ownership by the whole people and collective ownership by the working people” in

https://web.archive.org/web/20130726154413/http://english.gov.cn/2005-08/05/content_20813.htm

[4] Liu Cayu, “Young entrepreneurs study CPC revolution spirit”, in China Daily, 20/06/2019.

[5] Niall McCarthy, “China Used More Concrete In 3 Years Than The U.S. Used In The Entire 20th Century”, Forbes, 05/12/2014. In

https://www.forbes.com/sites/niallmccarthy/2014/12/05/china-used-more-concrete-in-3-years-than-the-u-s-used-in-the-entire-20th-century-infographic/#7bb85414131a

[6] Wang Hui, China’s twentieth century, Verso, Londres, 2016.

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