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OPRESSÕES

Depois do Grito, o beijAto na bienal

Tatianny Araújo, do Rio de Janeiro (RJ)

Numa guerra judicial em torno da temática LGBTI+ durante a Bienal Internacional do Livro no Rio de Janeiro, observamos que o obscurantismo e o retrocesso negam as liberdades individuais e provam que decisões descabidas, como a do desembargador Cláudio de Mello Tavares, ferem a laicidade do Estado e a impessoalidade nas decisões dos magistrados. Sua conduta é motivada por suas convicções religiosas e homofóbicas. O presidente do TJ-RJ, que permitiu a apreensão dos livros, já defendeu que, “com base na fé”, homossexualidade possa ser vista como “desvio de comportamento”. Logo, não é nenhuma preocupação com a infância, é uma cruzada LGBTfóbica!

Com uma vasta programação e já perto de seu fim, a Bienal contou com mesas e atividades importantes, como as que trazem o debate racial e de gênero para a roda. A preocupação que devemos ter nestes espaços é que se cumpra um papel educativo, para além do entretenimento e do consumo (as cifras que movem moinhos, tornando a leitura ainda pouco acessível para muitos!), e que promovam reflexão e maior acesso ao mundo das letras.

Infelizmente, o Rio de Janeiro, capital mundial do samba (e do maior Carnaval do planeta!), tem sofrido duros golpes da prefeitura de Marcelo Crivella. O prefeito se nega a cumprir a tradição carnavalesca de entrega da chave da cidade ao Momo, tem entrado em guerra com espaços de promoção da cultura popular (como o Jongo da Serrinha) e insiste em brigar com a cultura em seus múltiplos aspectos e variações. Agora, novamente entra em cena com seu moralismo hipócrita para dar vasão às atitudes mais reacionárias e antidemocráticas a que o Rio já assistiu após a redemocratização. O alvo da vez? Uma revista de histórias em quadrinhos, Vingadores: a cruzada das crianças. Ele ordenou que a publicação fosse recolhida da Bienal do Livro, no Riocentro. Para seu espanto e nossa felicidade (mas mais ainda da editora e distribuidora), a HQ foi consumida loucamente ainda pela manhã. A atitude arbitrária gerou uma procura gigantesca pela edição. Mas não é a primeira vez que isso ocorre neste governo. Lembremos que a prefeitura cancelou, em outubro de 2017, a Coletiva Curto-circuito, que ocorreria no Castelinho do Flamengo, trazendo temas como diversidade sexual, preconceito e violência. Censura nítida, o ocorrido não foi fato isolado, ele havia vetado um dia antes a vinda da exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. E, além da censura, ele chegou a debochar do feito ao dizer que “Saiu no jornal que seria no MAR. Só se for no fundo do mar”. Logo, há uma política da prefeitura de perseguição e censura à cultura e à educação que fomentam importante debate sobre diversidade de gênero. No país campeão de mortes de transexuais e altamente violento contra parcelas enormes da sua população – não heteronormativa, a atitude do prefeito da cidade deveria ser outra: apoio e incentivo! Além da criação de políticas públicas para uma crescente e contínua diminuição da LGBTfobia e de toda violência que ela gera.

A fala do governo para que as HQs fossem lacradas é estapafúrdia, demonstra que não passa de um problema moral a partir de seu conservadorismo e sua hipocrisia. Disse ele que era conteúdo impróprio para menores e que ele deveria proteger as crianças. Por conta disso, ordenou que a publicação fosse lacrada com plástico preto e contendo anotação externa sobre conteúdo impróprio para crianças. Ora, estamos falando de uma revista para adolescentes e jovens (e muitos adultos!). Assim como esta, há várias outras na bienal, inclusive literatura erótica! Crianças não andam sozinhas na Bienal, andam com responsáveis, sejam eles mães, avós, professores em atividades escolares! Além disso, quero problematizar o próprio conteúdo sendo acessado por uma criança. Crianças a partir de uma idade, não vê mais as relações de amor como as que elas têm pelos seus afetos (família, amigos, cuidadores), elas percebem que há relações e núcleos afetivos constituídos e cada vez se torna mais nítido que o amor por todos é diferente de amor entre dois (ou mais, no caso de famílias poliamoristas), descobrem o namoro, a relação entre pares. E elas devem saber que essas relações não são somente homem-mulher, elas devem saber reconhecer a diversidade (que pode ser a família de uma amiga ou a sua própria) e exercitar desde muito novas o respeito. Um casal de jovens dando um beijo deve simbolizar afeto e ponto! E onde mora a hipocrisia? No moralismo falseado de proteção! Porque as crianças estão cercadas por tamanha violência, por imposição de padrões que adoecem físico e mentalmente; por objetificação constante do corpo feminino, especialmente o da mulher negra! E isso não está nas publicações, isso se dá no cotidiano. É o fuzil apontado para crianças e adolescentes, mochilas escolares revistadas, os seus sendo mortos na sua frente. Isso deve gerar preocupação! A falta de educação e saúde deve gerar preocupação e todo esforço do prefeito que se elegeu dizendo cuidar das pessoas!

Mas para seguirmos no terreno das publicações, ou teremos que gastar muita tinta, gostaria de fazer uma reflexão sobre cenas impróprias. É muito difícil para mulheres educarem filhas e filhos quando seus corpos são usados para venda de tudo que é mercadoria: cerveja, tênis, bolsa, jornal, e uma lista sem fim. É muito difícil educar para a desconstrução da violência quando as histórias que ouvem desde pequeninos, são como as da Bela Adormecida, na qual um homem beija uma jovem desacordada e todos acham normal. E como violência é variada, ela dói e dilacera por dentro muitas mulheres, quero dizer que para as mulheres negras é muito difícil educar suas filhas e filhos quando todo retrato do “belo” segue apenas um tipo (padrão de gênero, raça/cor, corpo, cabelos, idade). Temos muito a caminhar e gostaria muito de ver um prefeito de mãos dadas conosco nessa caminhada. Poderia lhe propor uma semana sobre diversidade só usando os quadrinhos. Porque não foi o primeiro beijo e vão ter outros!

O primeiro beijo gay das HQs foi em 2009, na X-Factor da Marvel Comics, nº 45, escrita por Peter David. Shatterstar e Rictor, ambos super-heróis, davam concretude a um universo muito presente nos quadrinhos (isso para não falar do mundo real!), afinal, era notável personagens não heteronormativos, como o Estrela Polar (Jean-Paul Beaubier), outro super-herói da Marvel. Ele foi criado por Chris Claremont e John Byrne e sua primeira aparição foi em X-Men 120 (com data de abril de 1979), integrante da Tropa Alfa onde assumiu sua homossexualidade em 1992 (Tropa Alfa nº 106). Em 2012, o primeiro personagem abertamente gay da Marvel Comics se casou Kyle Jinadu, celebrando a garantia do direito legal ao “Casamento Igualitário” (também chamado de casamento homoafetivo, gay) em alguns estados dos EUA – em junho de 2011, foi aprovado no Estado e em Nova Iorque. Quatro anos depois, no governo Obama, a Suprema Corte dos Estados Unidos, legalizou em todo o país.

Foram muitas as relações homoafetivas nos quadrinhos. Mas a verdade é que levaram tempo para serem explicitadas. Desde 1979, John Byrne buscava demonstrar, tal qual o mundo real, que o amor, o afeto, o sexo não são exclusivamente homem-mulher, é preciso trazer para as histórias o respeito à diversidade: identidade de gênero e orientação sexual, que é mais amplo que o sexo biológico e os papéis de gênero construídos a partir de um padrão heteronormativo. Paz na vida de Wiccano e Hulkling, Kate Kane, Karolina Dean e Xavin, Apolo e Meia-noite, Arlequina e Hera Venenosa, Mística e Sina – por sinal, anteriores ao Estrela Polar e Kyle Jinadu, mas, assim como no mundo real, as mulheres sempre campeãs da história que a história não conta. Mística, inclusive, pode ser uma chave importante para debatermos transgêneros nos quadrinhos. Eu sei que, no mundo real e na fantasia, a lista é grande! Segue o baile! “Toda maneira de amor valerá” desde que sem abusos, sem violência! Beijar a moça desacordada é violência sexual, é crime!

Em situações como a ocorrida, é preciso transformar a revolta em luta e em aprendizagem. As primeiras medidas foram garantidas pela própria Bienal (que entrou com liminar suspendendo a ação do prefeito), que deverá se posicionar novamente diante da nova decisão e por partes dos mandatos do PSOL/RJ. Mas é preciso que o povo reaja. Especialmente a população LGBT+. Nesse sentido, a iniciativa de um beijaço (um BeijATO!), em um dos pavilhões, foi muito acertada! É preciso tirar a capa superficial da “moral” e fazer o debate de forma aprofundada. Se é para debater crianças e direitos façamos o debate sobre o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) e todas as tentativas de rasgá-lo; bem como sobre a não garantia de seus direitos mais básicos. Mas não nos venham com hipocrisia! Contra os ataques conservadores, a radicalidade do desejo de transformação do mundo é a resposta necessária! Pessoas boas e bacanas de todo mundo amai-vos! Como desejarem! E uni-vos! Para combater o obscurantismo e todo retrocesso!

 

¹ Dia 7 de Setembro, dia do Grito dos Excluídos, com atos programados em várias cidades na defesa da soberania nacional, da Amazônia, dos oprimidos e dos direitos. O “Beijaço” na Bienal foi chamado para o mesmo dia, mas no início da noite.