O desigual e combinado Brasil de Bolsonaro

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

A estupidez humana não conhece limites, diz o conhecido adágio. Com a “habilidade dos descarados” a qual certa feita se referiu Balzac, o presidente brasileiro parece dedicar todo o seu tempo a confirmá-lo. Obstinado como um jesuíta, Bolsonaro é incansável como um jumento, e parece não haver um só domínio, uma só dimensão da vida social, uma só área da atividade política que ele deixe intacta. Nesse sentido – e só nesse, claro –, Bolsonaro parece ter afeição à totalidade. Da política externa à relação entre os poderes institucionais internos, passando pela Ciência, Tecnologia, Meio Ambiente, Saúde, Educação, Cultura, Previdência e tudo o mais, o candidato a Bonaparte tropical não se esquiva de proferir opiniões tão peremptórias quanto deletérias. Toda a formação social brasileira lhe diz respeito, e diante dela ele se porta como se fosse um arquiteto do futuro.

Se, na segunda metade do século XIX, Bismark prometeu – e teve êxito em – unificar a tardia Alemanha a “ferro e fogo”, Bolsonaro se mostra hoje, no Brasil do século XXI, como um líder cujo propósito não é senão, à base de férrea violência e incêndios criminosos, reconfigurar a economia, o território e as relações sociais do país de modo a torná-lo adequado às novas necessidades da acumulação de um capital estrangeiro e nacional cada vez mais vampiresco e parasitário. Dialeticamente, a cada diária expressão do “atraso” contida na política governamental, assim como a cada cotidiana manifestação do “arcaísmo” presente na verborragia reacionária do presidente e de seus asseclas, corresponde alguma “moderna” contrarreforma necessária à modernização possível de um capitalismo periférico e dependente como o brasileiro. Vertiginosamente, a modernização econômica desenhada por homens obscuros como Paulo Guedes nos converte em um país cuja fotografia atual expõe uma inaudita e catastrófica desagregação social talvez impensada em tempos pretéritos.

Nos marcos de uma democracia a cada dia mais blindada – e que não dispensa o uso de blindados contra seus adversários sociais e políticos – e sob a égide do neofascismo de Bolsonaro, ultraneoliberalismo econômico e ultraconservadorismo cultural se combinam perfeitamente, vertebrando um cenário social dramático em que preconceitos ancestrais, teocentrismo, aversão à cultura e repulsa à ciência se coadunam contraditoriamente com miseráveis trabalhadores desprovidos de direitos que literalmente pedalam em jornadas de trabalho similares às da era vitoriana. Tais pedaladas, convém destacar, são “solicitadas” pelas conectadas classes médias mediante aplicativos digitais instalados em celulares de última geração. Do mesmo modo, os homens e mulheres que sofrem da escassez mais “medieval”, da pobreza mais indigente, tornam-se vítimas de surtos de sarampo, febre amarela e outras enfermidades que há muito se supunham extintas, ao mesmo tempo em que favelados e negros em geral convertem-se em alvo, agora declarado, dos novos gestores do chicote, políticos da antipolítica que do alto de modernos helicópteros, para júbilo dos inocentes do Leblon e alhures, ordenam a seus snipers que disparem suas modernas e mortíferas armas contra pobres cabeças, isto é, contra a cabeça de pobres, muitos dos quais apenas aguardavam ansiosamente por uma nova mensagem de celular pré-pago que os convocasse imediatamente para entregar comida aos mesmos inocentes que sua morte festejarão efusivamente nas redes sociais.

À maneira desigual e combinada, o Brasil de Bolsonaro se moderniza e se torna cada vez mais desigual, exibindo todo o caráter recente e simultaneamente decrépito do nosso capitalismo financeirizado, digital e on demand. As altas dosagens de machismo, homofobia e militarismo ajudam a conservar ativa e funcional a velha plantation, e por detrás da máscara do moderno empreendedor e ativista da filantropia não há senão o tacanho, sórdido e vetusto rosto do senhor de engenho de antanho. Se o futuro proposto por estes velhos-novos senhores é, em uma palavra, uma barbárie moderna (ou um futuro bárbaro), cabe então aos escravos do tempo presente a tarefa de construir um verdadeiro amanhã, no qual armas, opressões e Bolsonaros não poderão ter lugar senão nos livros e museus de História.