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BRASIL

O “Future-se” no beco sem saída do capitalismo contemporâneo

Flávio Miranda*
Luís Fortes (MEC)

“A reforma da previdência já foi aprovada,
acho que vai ser bom para o país,
 e temos a reforma fiscal também, que pode ser boa,
mas importante mesmo é a reforma da educação.”
– Lucinaldo Ângelo, diretor geral da Baterias Moura

Em tempo recorde o governo Bolsonaro coleciona uma série de ataques a qualquer forma de garantia sócio jurídica que poderíamos chamar “direitos adquiridos”. Tais ataques estendem-se por um espectro de largura incomensurável, que vai desde o ar que se respira e a reprodução das condições ambientais da vida humana, até os há muito combalidos direitos à aposentadoria, condições dignas de trabalho, saúde e educação, passando por um conjunto de temas cuja enumeração excederia o espaço desta comunicação.

Nas linhas que seguem, nos deteremos apenas sobre o projeto governista para o conjunto das Universidades Federais do país, denominado “Future-se”. Se abrimos o texto com a menção ao arcabouço geral do retrocesso imposto pelo governo, o fazemos no intuito de ressaltar que o projeto em tela se inscreve em uma concepção mais ampla de sociedade, cujo caráter profundamente reacionário parece exigir a companhia das medidas violentas que transcendem em muito o campo discursivo[1], mas nele tomam a forma de uma continua ameaça ao que restou das chamadas garantias democráticas.

A esse respeito, uma pergunta fundamentalmente importante do ponto de vista estratégico deve ser feita: no contexto da crise atual que, como se sabe, tem escala global, haveria solução alternativa à de Bolsonaro para o funcionamento da economia? Uma vez que no capitalismo são os objetivos do capital que representam a mola propulsora do sistema econômico, podemos começar a esboçar uma breve resposta a esta questão pelo comportamento prático daqueles cujas ações personificam o capital, isto é, a grande burguesia.

É sabido que as ações do governo Bolsonaro se desdobram, invariavelmente, em tensões que revelam disputas nos diferentes setores da burguesia, entre si e contra medidas pontuais do governo[2]. Sabe-se também que Bolsonaro não fora desde o início o candidato preferido de importantes entidades representativas dos interesses empresariais[3]. No entanto, o que se observa é não apenas a plena adesão às principais (contra)reformas promovidas pelo governo, como a atuação explícita de representantes do grande capital por sua aprovação no Congresso.

É verdade que tal fato evidencia uma “necessidade geral do capital”, afinal é isso o que seus principais representantes (dos mais diversos ramos) estão buscando. Isto é, tais pautas homogeneízam os interesses de grupos diversos da grande burguesia, invariavelmente envolvidos em encarniçadas disputas entre si. No entanto, a demonstração rigorosa de tal fato demandaria uma análise pormenorizada das condições gerias para a acumulação de capital no que se pode chamar de capitalismo contemporâneo[4].

De modo perigosamente sintético, a enorme expansão do capital para a esfera financeira, na esteira da mudança no padrão monetário internacional (1971) e do amplo processo de desregulamentação que se segue (sintomas da crise do capitalismo do segundo pós-guerra), demanda a crescente punção de uma riqueza, na forma de ganhos de capital, produzida com dificuldades. Nesse processo, o conjunto de reformas contra o trabalho (em curso desde, pelo menos, os anos 1980, em escala mundial), o endividamento de países periféricos, postos em condição de crescente fragilidade diante dos movimentos internacionais do capital, o processo de privatização dos serviços públicos etc.,  representam momentos de um movimento que se resolve apenas na medida em que aprofunda suas contradições internas. Ou seja, crescem as necessidades do capital que se acumula em escala grotesca na grande roda financeira, cresce o grau de exploração e a espoliação da classe trabalhadora e das classes subalternas em geral, mas não se pode gerar lucros suficientes para garantir mares tranquilos para a acumulação de capital.

A contradição é patente. Por exemplo, a política de austeridade que tem por objetivo garantir a remuneração do capital financeiro através das dívidas públicas, corrói o chão sobre os pés do capital uma vez que reduz enormemente a demanda por mercadorias e, portanto, deprime as possibilidades do crescimento econômico[5]. Na prática, o que se observa desde os anos 1980 é a sucessão de diversas crises que assumem incialmente a forma financeira, mas revelam problemas graves e endêmicos do modo capitalista de regulação da esfera econômica. Há que se dizer com clareza, não está posta a possibilidade do retorno a um capitalismo guiado pela esfera produtiva, promotor de crescimento sustentado e empregos, capaz de oferecer algum tipo de seguridade social (o que sempre se deu, na prática, como resultado da mobilização política da classe trabalhadora). A situação descrita foi engendrada pela crise desse tal capitalismo “fordista”, “keynesiano”, como se queira chamá-lo. O retorno a tal passado idealizado está fora de questão, a lógica do capital contemporâneo aponta para a ampla devastação[6].

As contradições mencionadas atingem o paroxismo na crise atual, que se desdobra, como sabemos, por sentirmos, desde o final da década passada. É nesse contexto, que o apetite do capital sobre a massa dos que vivem do próprio trabalho, seja pelo aumento da exploração, pela apropriação dos fundos públicos e privatização dos serviços antes (ou ainda) oferecidos pelo Estado ou pela expropriação direta dos meios de vida, se faz dramaticamente crescente e absolutamente destruidor. Isso, como se pode depreender, apenas para satisfazer necessidades de curto prazo enquanto se espera a próxima derrocada financeira, como noticiado amplamente pela mídia proprietária.

Em suma, o que se coloca como política de governo não é efetivamente solução para a crise, mas representa uma busca desesperada por sobrevivência que necessariamente atropela tudo o que encontra pelo caminho. O projeto “Future-se” é parte privilegiada desse processo – como reconhece desavergonhadamente o representante da grande burguesia citado na epígrafe.

Com uma única tacada o “Future-se” pretende entregar o que sobrou dos fundos públicos destinados às Universidades Federais à iniciativa privada, entregar o patrimônio físico das Universidades Federais ao mercado financeiro, destruir qualquer possibilidade de produção do conhecimento desvinculada dos interesses diretos do capital (o que atinge de maneira óbvia o pensamento crítico, as minorias, a pesquisa nas e sobre as comunidades periféricas etc., mas também ataca o desenvolvimento de novas tecnologias sem aplicabilidade imediata), ao mesmo tempo em que reafirma ao mercado financeiro o compromisso com as metas fiscais, isto é, com a transferência de recursos para o grande capital por meio do sistema da dívida pública.

Se se pode observar há décadas, é verdade, avanço paulatino da lógica mercantil sobre a educação pública[7], o “Future-se” a leva aos seus limites mais extremos. Para o governo, só deve caber na Universidade o que for passível de comercialização, isto é, o que se coadunar à dinâmica do mercado, e o mercado, como se sabe, não corresponde ao reino da igualdade e da fraternidade, no qual os interesses privados acabam se harmonizam perfeitamente.

Como se pode ver sem a necessidade de grande esforço, ou melhor, bastando o acesso a fontes minimamente confiáveis de informação (coisa rara em tempos em que governos são eleitos com base na fraude eleitoral do disparo de notícias falsas por redes sociais), a preservação ambiental, o direito à existência das comunidades indígenas, o direito à terra, o direito a uma vida digna para os idosos, os direitos reprodutivos das mulheres, o direito de um jovem negro sair de sua casa na periferia sem correr o risco de ser baleado em uma operação policial etc., nada disso cabe no mercado, muitos menos as reflexões críticas que devemos seguir desenvolvendo sobre esses fenômenos, menos ainda a crítica ao próprio mercado como meio de regulação social. Quando não se pode pensar criticamente os problemas sociais e as condições de vida, não se pode construir um mundo melhor. O que sobra é a exacerbação da lógica da competição, do salve-se quem puder, da exclusão, da miséria, da violência.

O “Future-se” pretende, aliás, internalizar essa lógica na própria atuação cotidiana dos profissionais e alunos que constroem, dia a dia, a Universidade. O projeto prevê a cessão da administração das Universidades Federais a Organizações Sociais (OS), entidades privadas que vão receber recursos do Estado, gerir o patrimônio público, atuar no mercado financeiro através de fundos de investimentos, vender serviços prestados pelas Universidades e produtos diversos etc., para prestar serviços públicos, guiadas, no entanto, pela lógica privada do lucro. Desta forma, pretende-se trocar a “autonomia da gestão financeira”, do texto da Constituição Federal, para a “autonomia financeira”[8].

Apesar de receberem dinheiro do Estado e gerirem patrimônio público, as OS são reguladas pelo direito privado, o que as distancia do controle dos tribunais de contas públicas. O “Future-se” não explicita mecanismo de controle e auditoria das OS que, a despeito disso, têm a prerrogativa da dispensa de licitação pública e da contratação de professores e funcionários técnico-administrativos para as Universidades sem concurso público. A atividade docente na Universidade, ademais, passa a ser permeada pela lógica competitiva do “empreendedorismo”, termo que ganha destaque no projeto de lei.

Os professores serão estimulados a complementar a sua renda com atividade remunerada pela OS, desde que cumprida a carga horária em sala de aula, o que descaracteriza completamente o instituto da dedicação exclusiva ao ensino, pesquisa e extensão. Os professores e os departamentos serão estimulados a abrirem empresas para vender serviços e produtos diversos. Em suma, a previsão da maior interação com o “setor empresarial” indica a ampla transformação da Universidade pública brasileira em um verdadeiro balcão de negócios.

O “Future-se” não oferece qualquer garantia para a assistência estudantil, pelo contrário, o estrangulamento financeiro das Universidades, a necessidade de se recorrer às práticas mercantis, com todos os riscos associados (inclusive das flutuações nos mercados financeiros), indica que o passo seguinte deverá ser a liberalização ampla da cobrança de mensalidades em cursos de graduação e pós-graduação. Afinal, trata-se precisamente do que é feito nos países em cujos sistemas educacionais o “Future-se” busca inspiração, com consequências desastrosas que vão desde a ampliada elitização do acesso aos cursos universitários, ao endividamento insustentável de milhões de estudantes que precisam recorrer aos bancos para realizarem o sonho do diploma superior e de um melhor acesso ao mercado de trabalho (como é o caso dos EUA).

Este texto não chega perto de esgotar, linha por linha, o conjunto de ataques contidos no projeto de Bolsonaro para as Universidades. No entanto, parece suficiente para que, de maneira preliminar e sob os anunciados riscos de se sintetizar argumentos complexos em um curto espaço, se compreenda a conexão entre o “Future-se” e as necessidades do grande capital no contexto da severa e prolongada crise por que passa, em escala mundial, a economia capitalista. O projeto, justo por estar completamente embebido dessa lógica, não pode oferecer nada de positivo no que diz respeito à defesa e ampliação do caráter universal e democrático do ensino público, da liberdade de ensino e produção de conhecimento. O projeto “Future-se”, enfim, deve ser rejeitado de cima a baixo!

Mais do que isso, o projeto de sociedade que se impõe no Brasil e no mundo, ainda que de modo desigual, deve ser derrotado. O quadro atual não permite qualquer ilusão conciliatória. A radicalidade com que se impõe a pauta do capital tem de ser contraposta pela decidida radicalidade daqueles que se posicionam socialmente como trabalhadores, de todas as raças, orientações sexuais, lugares de origem etc., e que, portanto, têm suas condições de vida e interesses imediatos atingidos frontalmente pela política de governo. O beco sem saída a que chegamos, resultado da gestão do capital sobre a reprodução social em toda a sua amplitude, impõe a construção de uma alternativa radical que supere as contradições que se avolumam, nos acossam por todos os lados, causando sofrimento, miséria, destruição, e impedindo o desenvolvimento humano em sua plenitude. Um outro mundo não apenas é possível, um outro mundo é mais do que nunca necessário e urgente!

[1] Vide, por exemplo, a escalada da violência de Estado na cidade e no campo.

[2] Um exemplo claro se encontra nos posicionamentos da grande mídia capitalista. Mais recentemente, o tema candente do crescente desmatamento da floresta amazônica suscitou críticas do setor do Agronegócio, na figura de um de seus altos representantes, Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e da Agropalma, em entrevista do Valor Econômico. “Desmatamento afeta imagem do país e causa preocupação”, 22 de agosto de 2019. [Disponível em: https://www.valor.com.br/brasil/6402077/desmatamento-afeta-imagem-do-pais-e-causa-preocupacao]

[3] A esse respeito, vide O conselho das Américas e as eleições de 2018 no Brasil, de Rejane Hoeveler. [Disponível em: http://www.niepmarx.blog.br/MM2019/Trabalhos%20aprovados/MC19/MC192.pdf]

[4] Muitas vezes referido como neoliberal, financeirizado, tardio etc.

[5] Para se compreender o aparente paradoxo do apoio de entidades representativas dos interesses da grande indústria à política “austericida”, deve-se atentar para as formas contemporâneas de propriedade do capital, em especial, para o seu caráter brutalmente centralizado e transnacionalizado, em processos de fusão que cruzam as mais diversas esferas e possibilidades para a acumulação de capital sob o comando de poucos. A esse respeito, O Brasil e o capital-imperialismo, de Virgínia Fontes, é referência indispensável.

[6] Como aponta Elaine Behring, no texto Devastação e urgência. [Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2019/09/02/devastacao-e-urgencia/?fbclid=IwAR0x9aR1weDnXoIF_9ZN3G9Xlgh9cnb5JoUTh4O9ehuYZfU0PTUyzKOKGnY]

[7] Como recorda a pesquisadora Simone Silva em entrevista ao site da Aduff, a Lei de Inovação Tecnológica, que remonta aos anos Lula, corresponde à abertura de uma nova fase para o financiamento das pesquisas científicas nas Universidades Federais, dado que seus resultados têm de passar a ser concebidos como produtos comercializáveis, isto é, mercadorias. [Disponível em: http://aduff.org.br/site/index.php/notocias/noticias-recentes/item/3776-pesquisadora-critica-future-se-e-afirma-que-programa-bolsonarista-promove-saque-do-fundo-publico?fbclid=IwAR35etWEr3n4BoFtTxvUhfbTdmOjS2EgoCOguBRch3rvJxY95Z33GxPZJUk]

[8] Como aponta Roberto Leher, em Análise preliminar do “Furure-se” indica a refuncionalização das Universidades e Institutos Federais. O autor, ademais, recorda que tal manobra já foi tentada no Projeto de Emenda Constitucional 370/1996, derrotado, contudo, pela intensa mobilização nas Universidades Federais espalhadas pelo país. [Disponível em: https://avaliacaoeducacional.com/2019/07/25/texto-de-leher-sobre-o-future-se-versao-final/]

 

*Flávio Miranda é professor de Economia Política na UFRRJ