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Como a reforma da Previdência vai matar as indenizações da anistia política

Proposta altera a natureza dos benefícios pagos, de indenizatória para previdenciária. Com isso, futuros anistiados terão benefícios reduzidos ou cortados

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

A PEC 06/2019, da reforma da Previdência, está no Senado, e caminha para ser aprovada. Além do objetivo principal, que é impedir que as pessoas consigam se aposentar, o texto traz muitas armadilhas. Uma delas é aq que atinge os benefícios concedidos a milhares de pessoas que foram perseguidas, presas ou torturadas pelo regime militar.

A mudança constitucional que agora se pretende fazer no artigo 8 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) é provavelmente o maior ataque já ocorrido contra a Lei de Anistia Política. A base de toda regulamentação da anistia política no Brasil, é o acima citado artigo 8, pelo qual os Constituintes de 1988 concederam anistia politica a todos aqueles perseguidos pelo regime militar de 1964 (e inclusive contemplando perseguições de 1946 a 1964), o que depois resultou na regulamentação da atual lei de anistia no ano de 1992 (Lei 10. 559/02). Esta lei traz as diversas hipóteses de perseguições , demissões, cassações, punições, enfim, situações a serem contempladas com a declaração de anistia, assim como a concessão de indenizações em favor dos anistiados, que poderá ser em parcela única, ou de prestação mensal continuada. 

Entre os anistiados estão, por exemplo, ex-funcionários públicos, ex-operários, ex-bancários, ex-militares, que, além de muitos guardarem em seus corpos as marcas da tortura, em sua maioria absoluta até hoje não conseguiram assegurar do Estado o mesmo rendimento que recebiam quando foram punidos, sobrevivendo de outros trabalhos ou aposentadorias, ou que teriam caso não tivessem sido vítimas do regime.

A PEC da reforma propõe mudar a natureza jurídica, antes indenizatória, para doravante previdenciária das verbas de anistia política, através da mudança dos parágrafos 6, 7, 8 e 9 do artigo 8 do ADCT da Constituição Federal. Se isso for aprovado, ocorrerá o seguinte: 

  1. a) Será proibido acumular proventos de aposentadoria (fruto do trabalho realizado) com a reparação mensal a título de anistia política, obrigando-se o mesmo a optar por uma destas verbas.
  2. b) os anistiados passarão a contribuir para a Seguridade Social, através de uma alíquota que será aplicada sobre suas pensões mensais, de forma cumulativa com outras contribuições que o anistiado já esteja obrigado a recolher; 
  3. c) imposição do teto do INSS para o valor máximo da reparação de anistia politica, assim como os índices do RGPS.

Estas, em síntese, são as mudanças, já aprovadas na Câmara dos Deputados. Elas misturam dois conceitos totalmente diferentes – o previdenciário e o indenizatório. O primeiro é decorrente do  tempo de trabalho e respectivas contribuições previdenciárias ao longo do tempo, a depender de cada legislação previdenciária, e o segundo – a indenização de anistia – consiste em uma recomposição dos  prejuízos causados aos anistiados por motivo do regime de exceção que os perseguiu e prejudicou em determinado tempo histórico e que o Estado entendeu de indenizar, por haver excedido de suas próprias leis.

Esta mudança conceitual é nefasta e promove o esvaziamento jurídico, material e simbólico das reparações de anistia no Brasil, conquistadas após tantas lutas. É uma estrada que, uma vez não enfrentada, terá como próxima “estação”  um ponto final em todo o processo de justiça de transição brasileiro, iniciado em 1988 e que hoje atravessa o seu pior período. Não se trata simplesmente do valor da contribuição, da alíquota ou a cumulação com outros proventos (o que é um direito de quem fez jus a outro benefício através de seu trabalho), mas de uma estratégia do Estado deixar de reconhecer que tem o dever de  indenizar e que perseguiu por motivos políticos durante a ditadura. Ou seja, significa passar a isentar o mesmo Estado de seus crimes. 

Embora estas mudança somente se aplicará ás novas anistias a partir da reforma, se trata de  um conjunto de mudanças legislativas que visam fundamentalmente ir, lentamente, afastando não somente o caráter reparatório e indenizatório das verbas de anistia, mas  também o significado politico-educativo das mesmas, diluindo-as nos pagamentos previdenciários, para que percam o simbolismo e a natureza constitucional e politica.

Encerro este texto alertando  anistiandos e anistiados, assim como todos aqueles que lutam pela democracia e os direitos humanos para a gravidade destas propostas que tramitam hoje no Senado, entendendo que se incluem na politica canhestra deste governo de tentar ocultar e destruir a memória das atrocidades da ditadura militar e das lutas de resistência. Por coincidência, isto ocorre quando rememora-se os  40 anos da primeira lei de Anistia no Brasil pós-golpe militar de 1964. 

Não possui a extrema-direita a coragem – ainda – de alterar o caput do artigo 8 do ADCD da Constituição Federal que assegura o universal e humano direito de anistia politica, mas, sorrateiramente, vão lentamente “ matando”  este direito, como na atual reforma.

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