No momento em que aumentam as nossas descobertas arqueológicas fica evidente que o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás, se preferem. (FERNANDES, Millôr, Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1994, p. 30).
1. Votos de Feliz 1968
Em 11 de outubro de 2018, Jair Messias Bolsonaro – então candidato à Presidência da República pelo PSL – deu uma insólita entrevista à Rádio Jornal de Barretos. Bem ao seu estilo tosco, grunhindo frases entrecortadas entre espasmos mentais, anunciou em tom saudosista, sem qualquer pudor democrático, o projeto reacionário de fazer “o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás” (sic). Hoje, no sétimo mês de mandato, o ex-capitão está empenhado em cumprir a retrógrada promessa de campanha, provando aos crentes correligionários e aos incrédulos opositores que o “trem da história” pode mesmo dar marcha à ré. Por trágica ironia gramatical, enfim, quase um ano depois, o pleonasmo vicioso parece insistentemente mais enfático, para que não haja a menor sombra de dúvida de que “há 50 anos” significa voltar “atrás” mesmo.
Na disparatada verborreia radiofônica de 2018, a sinistra “profecia” do diabólico Messias apontou que o futuro teria acontecido, paradoxalmente, em 1968. Não é de surpreender o fetiche do rude milico com a data que marcou o início da fase mais terrível da ditadura militar, cujo ápice ocorreu em 13 de dezembro, sob o signo do famigerado AI-5. Redigido no governo do general Costa e Silva pelo ministro da Justiça Gama e Silva, o ato institucional conferia plenos poderes ao chefe do Executivo, que, sob o pretexto da defesa da “segurança nacional”, não só pôde fechar o Congresso (em 21 de outubro de 1969), como também as Assembleias Legislativas, nomeando interventores federais para dirigir os estados e municípios. O decreto totalitário também instituiu a censura prévia no cinema, no teatro e nos órgãos de comunicação (televisão, rádio, jornais e revistas), tornou ilegais as reuniões políticas, suspendeu o “habeas corpus” e autorizou o presidente a demitir funcionários públicos (conferindo-lhe, inclusive, a prerrogativa de destituir juízes).
Por mais anacrônico que isso pareça aos olhos do presente, 50 anos depois da barbárie antidemocrática, o filho n⁰ 2 da besta fascista ameaçou em tom irônico os magistrados do STF. Dando uma “aula” num curso preparatório para concursos públicos, Eduardo Bolsonaro vociferou o “recado” petulante não só para os candidatos à Polícia Federal ouvirem entre as quatro paredes da sala, mas para reverber(r)ar aos quatro cantos dos tribunais, atingindo o supremo tímpano do Poder Judiciário: “O pessoal até brinca que para fechar o STF você não manda nem um jipe, manda um soldado e um cabo. Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular? (…) O STF vai ter que pagar para ver. E aí, quando ele pagar para ver, vai ser ele contra nós”. O bolsoasno do meio deu essa declaração criminosa certo de estar blindado, com a arrogante presunção de que bastaria se confirmar a vitória do pai e ele ser o deputado federal com maior número de votos da história do país para nada os deter.
Aliás, a prepotência da família é tal, vale ressalvar, que nem protegido pelos superpoderes do AI-5 um general teve o desplante de indicar um filho para o posto de embaixador. O despótico ex-capitão nepotista, contudo, desprezando as regras do Itamaraty, o princípio consagrado pela tradição diplomática de nomear apenas funcionários de carreira, escolheu o presunçoso herdeiro com boné de Trump para encabeçar a Embaixada do Brasil nos EUA: como o quadrúpede fascista não cansa de repetir, sempre se achando acima de tudo e de todos, “quem manda sou eu”. Vale lembrar que tão logo o “todo poderoso” Messias colocou a faixa presidencial, autorizou a exoneração de quase 4000 servidores públicos. O ministro-chefe da Casa Civil justificou a medida despótica com um sarcasmo que escancara o viés ideológico: “Sobre o episódio da exoneração, a gente brincou em ‘despetização’, o presidente gostou do exemplo, e todos os ministros estão autorizados a, dentro das suas pastas, proceder de maneira semelhante e ajustada a cada uma das pastas (…). Esse conceito que temos de rever está perpassando todo o governo, até para desaparelhar e permitir que o governo possa executar suas políticas”.
Abrindo um parêntese para analisar a manobra linguística de Onyx Lorenzoni, comecemos explicando o processo de formação das palavras: o substantivo “despetização” – de que o “presidente gostou” – é formado a partir do verbo “despetizar”, criado por derivação prefixal a partir do verbo “petizar”, formado por derivação sufixal a partir da sigla “PT” (com agregação do sufixo formador de verbos “-izar”). O perigoso discurso do ministro parte do pressuposto de que os governos do Partido dos Trabalhadores teriam aparelhado – leia-se “petizado” – os órgãos públicos: como o prefixo “des-” significa, no contexto, “ação contrária”, para “desaparelhar” o Estado, pois, seria necessário proceder à “despetização”. Em outros termos, a demissão dos supostos funcionários partidários do PT (que, vale registrar, ocuparam cargos de destaque em governos anteriores aos da Frente Popular) se justificaria para “limpar” as “marcas ideológicas” dos órgãos estatais, condição imprescindível para garantir a “neutralidade” no exercício das funções públicas – cujo objetivo, afinal, seria atender às demandas de toda a “coletividade”, promovendo o “bem comum”.
Para demonstrar essa farsa discursiva democrático-burguesa, desmontando a falácia do articulador político do governo – que tenta simular a “imparcialidade” da decisão para dissimular a descarada defesa dos espúrios interesses da classe dominante – contrapomos à fala enganadora de Lorenzoni a lição precisa da filósofa Marilena Chauí:
O social histórico é o social constituído e fundado na luta de classes. Essa divisão, que faz, portanto, com que a sociedade seja, em todas as suas esferas, atravessada por conflitos e antagonismos que exprimem a existência de contradições constitutivas do próprio social, é o que a figura do Estado tem como função ocultar. Aparecendo como poder uno, localizado e visível, o Estado moderno pode ocultar a realidade do social, na medida em que o poder estatal oferece a representação de uma sociedade, de direito, homogênea, indivisa, idêntica a si mesma, ainda que, de fato, esteja dividida. A operação ideológica consiste em afirmar que “de direito“ a sociedade é indivisa, sendo “prova” a existência de ‘um só e mesmo’ poder estatal que dirige toda a sociedade e lhe dá homogeneidade (CHAUÍ, Marilena, Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1980, p. 20).
No fundo, sob o ardiloso pretexto da “despetização”, tentando “legitimar” o maior corte de servidores públicos da história do país, Onyx resgata, sintomaticamente, a terrível memória da legislação dos ditadores, que autorizava a demissão de funcionários considerados “subversivos ou não cooperativos com o regime”. Não é necessário dizer que o condenável trocadilho entre “despetização” e “dedetização” significa “extermínio”, e que a “brincadeira” assassina de Lorenzoni agradou ao presidente porque reflete os execráveis princípios da ditadura, que este não se cansa de exaltar. A exoneração dos servidores supostamente “vermelhos” faz parte da obsessiva perseguição do governo reacionário aos adversários de esquerda: o “nostálgico” Messias já anunciou reiteradas vezes que os “vermelhos devem ser exterminados”, sentenciando que “o erro dos militares foi torturar, e não matar” os opositores do regime. A sórdida justificativa sarcástica do ministro-chefe da Casa Civil, pois, ecoa a nefasta proposta anunciada na Rádio Jornal de Barretos, pouco antes da fatídica vitória eleitoral do candidato da extrema direita: fazer o país voltar 50 anos.
2. Pra Frente Brasil
Passados quase nove meses da posse do tosco chefe do Executivo e do aniversário de 50 anos do famigerado AI-5, ainda que o país tenha andado para trás, é certo que não voltou a 68. Mesmo que não estejamos vivendo sob a tutela militar (em que pese a forte presença de militares no governo), merece toda a atenção da esquerda a obscura ideologia da caserna que orienta os passos do quadrúpede e sua tropa asinina. Não é só mera coincidência a semelhança entre o lema “Brasil Acima de Tudo” de Bolsoasno e o slogan ufanista “Pra Frente Brasil” dos ditadores fardados, que caçavam e cassavam opositores sob o argumento de conspirarem contra a “pátria”. Para deixar mais nítidas algumas aproximações entre ontem e hoje (guardadas as devidas proporções entre os diferentes contextos históricos), vêm bem a calhar as seguintes observações do linguista José Luiz Fiorin, cuja dissertação de mestrado desvenda as manobras discursivas e os valores ideológicos de sustentação do regime autoritário inaugurado com o Golpe de 64:
Concebendo a nação como um “querer único e homogêneo“, torna-se fácil colocar todos os oposicionistas na categoria de oponentes (…). Serão, portanto, inimigos internos, traidores da pátria e do ‘mundo livre’ e, por isso, devem ser exterminados (…). O traidor não faz parte da nação (…). Não é, assim, povo, mas antipovo. Opor-se aos desígnios do governo é estar contra a nação, a serviço de seus inimigos (os comunistas) ou de interesses pessoais ou de grupos. O governo detém o monopólio do patriotismo, porque é legitimado pelo Estado, que realiza as “aspirações nacionais“. Como o governo (…) considera-se acima dos interesses pessoais ou de grupos, de que os partidos são representantes, ele se julga guiado pelos critérios impessoais do interesse nacional. Afirma o discurso que o governo (…) não admite a pressão dos interesses políticos e que esses não se misturam à atuação da vida administrativa
(FIORIN, José Luiz, O regime de 64: discurso e ideologia. São Paulo: Atual, 1988, p. 43).
Como a marca do atual governo de extrema direita é a contradição descarada entre o discurso e a prática, não é difícil desmontar a sua retórica frouxa, invalidando os pressupostos argumentativos com a evidência dos fatos. O conceito central de “patriotismo”, por exemplo, cai por terra com a imagem de Bolsonaro batendo continência para a bandeira dos EUA em 2017, quando ainda era deputado, e em 2019, já como presidente. Da primeira vez, como se não bastasse a submissa saudação ao imperialismo norte-americano, ainda puxou entusiasmado o indecoroso coro de “USA, USA, USA!”. Na viagem deste ano, o tosco capacho de Trump cometeu um sintomático ato falho ao confundir o próprio slogan da campanha eleitoral e do governo. Depois de se rebaixar diante do Tio Sam, prometendo aos ianques que “o Brasil de hoje é amigo, respeita os Estados Unidos e quer os americanos ao nosso lado”, o boçal colonizado encerrou os espasmos verbais com a solene gafe americanófila: “Brasil e Estados Unidos acima de tudo”.
Não é de estranhar a vexatória versão do slogan “nacionalista”, considerando que a besta fascista já disse que o Brasil é um “lixo”. Para refrescar a memória, aliás, eis as palavras ofensivas que saíram da boca imunda do acéfalo: “No plenário, um petralha gritou: ‘Se fosse da Suécia, você não estava criticando’. Eu falei: Imbecil, tu acha que o da Suécia vai querer vir pra esse lixo aqui?”. Só para contextualizar a agressão verbal, Jair, à maneira de Trump, estava condenando a presença de imigrantes nas seleções de futebol, dando como exemplo a seleção francesa: seu alvo, obviamente, eram os imigrantes venezuelanos, cubanos e haitianos no Brasil. O problema, na verdade, não é tanto a imigração, mas o país de origem e a classe social dos estrangeiros: prova disso é que os norte-americanos, como proclama o “xenófobo”, são bem-vindos ao país.
Enfim, sobre o “patriotismo” de fachada do fascista, vale conferir o artigo “Nacionalismo falso de Bolsonaro“, publicado na coluna Direita Volver do Esquerda Online, que atesta ser insustentável o discurso nacionalista de “valorização da pátria”, de “defesa da soberania brasileira”, tão repetido pela ignara claque de autômatos verde-amarelos:
O “nacionalismo” deles é o que presta continência à bandeira dos Estados Unidos, como Bolsonaro fez em 2017. É o que vende a Embraer ao capital norte-americano. É o que cede a base de Alcântara ao interesse estrangeiro. É o que vai a atos com bandeiras dos Estados Unidos e de Israel. Que raios de “nacionalismo” é esse?
Aliás, lembramos aos bolsominions uniformizados de CBF, tão nostálgicos dos anos de chumbo, que o insolente “capetão” entreguista já disse que nem a Amazônia pertence ao Brasil: “A Amazônia é nossa? Com todo o respeito, só uma pessoa que não tem qualquer cultura fala que é. Não é mais nossa!”. A imagem do bolsoasno n⁰ 2 com o boné de Trump dispensa palavras para confirmar a desonrosa submissão do governo brasileiro ao imperialismo norte-americano. A propósito de sua indicação pelo pai à Embaixada do Brasil nos Estados Unidos, haja manobra retórica para o ministro-chefe da Casa Civil insistir que o governo está “acima dos interesses pessoais”, que ele é “guiado pelos critérios impessoais do interesse nacional”. Convenhamos que é preciso ser muito estúpido para crer que este desgoverno “não admite a pressão dos interesses políticos e que esses não se misturam à atuação da vida administrativa”: como o linguista Fiorin mostrou, nem há 50 anos esse “princípio abstrato” foi respeitado (o Estado, afinal, sempre atende aos interesses da classe no poder).
Se Millôr estivesse vivo, assistindo à tragédia teimar em se repetir como farsa, repetiria seu irônico prognóstico aos acéfalos bolsominions que urram “Pra Frente Brasil”: “O Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás, se preferem”.
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