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MUNDO

Entrevista com Juan Branco, advogado do fundador da WikiLeaks – Parte 2

A política migratória da União europeia constitui crime contra a humanidade

Tradução: Joana Benário, de São Paulo (SP)

As 242 páginas [do livro de Juan Branco] acusam a UE por “assassinato, tortura, tratamentos desumanos e deslocamentos forçados” e a tentativa de “travar a todo custo os fluxos migratórios para a Europa, inclusive através do assassinato de milhares de civis inocentes que fugiam da zona do conflito armado”. Pactos com milícias líbias, abandono dos migrantes no mar, a política migratória da União Europeia acabou criando o maior cemitério a céu aberto do planeta: o mar Mediterrâneo.

Correo del Orinoco: O texto da denúncia sobre a política migratória da União Europeia, derivada da crise dos migrantes no Mediterrâneo é muito forte: nessa investigação, você acusa a UE de tortura, cumplicidade, crimes contra a humanidade, colaboração.

Juan Branco: Nos custou muito assumir a acusação. Não são questões que podem ser tratadas superficialmente porque são acusações muito pesadas. Levamos mais de dois anos para elaborar este documento para o qual utilizamos fontes exatas. Não entregamos uma lista sobre as pessoas que deveriam ser acusadas, porque há muitos discursos duplos sobre estas questões. Quem tem assumido publicamente estas decisões não são necessariamente quem as aprovaram. Há muitas perguntas sobre o papel de Ângela Merkel, do ex-presidente francês, François Hollande, e do atual, Emmanuel Macron. Mas também há funcionários por trás. No secretariado geral do Conselho europeu e na Comissão europeia, há funcionários que tiveram um papel importante na tomada de decisões. Há mais que cumplicidade: há uma corresponsabilidade nos fatos e até inclusão. O que nós demonstramos é que houve uma situação muito complexa, que começou na Europa, durante estes anos.

CO: Para você, a crise migratória é a soma de diversos fatores que terminarão convergindo no Mediterrâneo?

A crise geopolítica que se desencadeou com a guerra na Líbia e as insuficiências das nossas elites, nomeadamente a francesa, levou-nos a uma crise migratória. Esclareço que essa crise migratória não começa aí, mas revela-se nesse momento. O que estava escondido graças aos acordos secretos de gestão migratória, que haviam sido acordados com o coronel Kadafi e que permitiam ocultar a prática de crimes cometidos nos campos de detenção construídos com a ajuda da União Europeia, de repente veio à tona.

Milhares de pessoas tentaram escapar dessa situação causada por um estado autoritário. Acrescente uma medida do Tribunal de Estrasburgo que, ironicamente, decidiu proibir o reenvio de migrantes para países onde não estavam seguros.  Ao conhecer essa decisão, a União Europeia (UE) optou por deixar de salvar os povos que escapavam da Líbia, diminuindo as operações de salvamento na zona onde ela agia para salvar povos. Essa primeira decisão causou a morte de milhares de pessoas. E o que nós demonstramos, é que a decisão foi tomada com total consciência.

Encontramos documentos internos do FRONTEX (Agência europeia do proteção das costas e das fronteiras) que dão conta da existência de informação disponível, antes que as decisões sejam tomadas. Aí, estava claro que com estas medidas iam causar milhares de mortes. E apesar disso, foi decidido. Logo, quando a estratégia não funcionou, a União Europeia fez duas escolhas mais. As pessoas que escapavam da Líbia preferiram arriscar suas vidas, e inclusive se afogar, do que permanecer na Líbia. Então as ONGs começaram a salvar as pessoas que estavam se afogando. Diante disso, primeiramente, a União europeia tentou criminalizar as ONGs. Mais tarde, a UE terceirizou sua política migratória, pactuando com agentes criminosos na Líbia, quer dizer, com as guardas costeiras da Líbia que são uma junção de milícias e não uma força do Estado. São grupos criminosos que se juntaram e foram financiados pela União Europeia para fazer o trabalho sujo.

Essa política migratória só poderia ter consequências criminosas porque na Líbia não há mais um estado central capaz de controlar a crise. Fixou-se o objetivo de parar a qualquer preço a saída das pessoas que tentavam fugir da Líbia. Isto teve como consequência torturas sistemáticas, em violações arbitrárias, em execuções e em apreensões de quem tentava fugir.

A queixa que nós apresentamos ante a Corte Penal Internacional foi aberta por um diplomata do embaixador alemão em Níger, dirigido a chanceler alemã Ângela Merkel, o qual foi enviado três dias antes de Merkel negociar com a Líbia um acordo para fomentar a cooperação em questões migratórias. Nesse caso, o embaixador alemão declara textualmente: “as condições nas campos de detenção de migrantes na Líbia são comparáveis aos campos de concentração”. A responsabilidade estabelece-se aqui.

A Comissão europeia, através de seu porta-voz, admitiu os fatos… e disse que era um erro. A partir daí, a Corte Penal Internacional já não tem desculpa. Deve tomar conta do caso. Já há atores que admitem sua responsabilidade na crise e o mínimo que pode fazer a Corte é fiscalizar essas pessoas para certificar de que não foi intencional. Se a CPI não abrir uma investigação com a base documental que nós lhe oferecemos, e a análise legal que nós temos feito, não vejo como possa justificar isso.

CO: A sequência é de uma lógica macabra: começa com a intervenção norte-americana no Iraque em 2003 e segue com a intervenção ocidental na Líbia. Ambos os desastres provocaram uma explosão do número de migrantes que, na Europa, acabará explicando a pujança da extrema direita na França e a ascensão de Matteo Salvini na Itália.

JB: Evidente. Na Itália, Salvini até assinou um decreto por meio da qual criminaliza a ajuda aos migrantes, com uma multa de 5.000 euros por migrante salvo. A vida de um humano tem um preço. É necessário pagar 5.000 euros para salvá-lo. Aqueles discursos populistas nascem da crise política. Estou convencido que há uma continuidade entre as forças que se dizem progressistas, que estavam no poder desde 2008, e as forças que se opõem e dizem-se populistas. Houve uma incapacidade das elites políticas de Europa para assimilar a responsabilidade da violência social que era declarada. As forças que estavam no poder em 2008 não responderam à crise social, nem assumiram suas responsabilidades. Isso impulsionou as forças que se chamam populistas. Esta corrente encontrou bodes expiatórios para seduzir a sociedade e para dar a oportunidade de aliviar a violência social que as pessoas sofrem.

Minorias foram eleitas como “bodes expiatórios”, para redirecionar a violência que poderia ter ido contra as elites. Essa violência foi redirecionada para as minorias, os imigrantes. Trata-se de um mecanismo de regulação das sociedades muito comum.

Os coletes amarelos são uma reação extremamente saudável e maravilhosa a tudo isso. Os coletes amarelos não saíram para procurar bodes expiatórios nem para atacar os migrantes. Este movimento se afastou destes discursos porque seu único objetivo foi acabar com uma violência social massiva. Não havia nenhuma maneira remover-lhes sua legitimidade. Tiveram uma inteligência coletiva maravilhosa.

 

*Artigo publicado em junho de 2019, em Pagina 12, da Argentina, e em Correo del Orinoco, da Venezuela.

 

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