Quem está à esquerda de quem? Sobre a ilusão de ótica de mapas políticos anacrônicos

Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

“Diz, espelho meu, quem está mais à esquerda do que eu?”; “Na dúvida, pela esquerda”; “Fulano está à direita de sicrano”. Estas brincadeiras coloquiais são muito comuns entre os ativistas de esquerda. São, também, menos inofensivas do que parecem. Porque de alguma maneira revelam uma mentalidade, uma maneira de pensar, um tipo de educação política.

É nesse contexto que a Resistência, corrente interna do PSol, tem sido criticada. Dizem alguns que somos a “direita” do PSol, porque estivemos na primeira linha da candidatura de Boulos à presidência, porque defendemos a Aliança do MTST com o PSol, e porque valorizamos a participação do PSol na campanha Lula Livre. Mas, no outro extremo, para outros, seríamos tão radicais e antipetistas que nos chamam até de golpistas. Não nos preocupamos em estar à “esquerda” ou à “direita” das outras correntes revolucionárias. Queremos estar, cada vez mais, ao lado delas.

Não devemos desconhecer, contudo, que há uma questão de método neste tema. Não devemos subestimar o erro muito comum de substituir a análise da situação concreta pelo método da “cartografia”. O método da cartografia consiste em considerar uma política mais ou menos certa ou errada, em função das posições que as distintas correntes, partidos e líderes ocupam em um imaginário mapa político constante, rígido, invariável. Esse mapa imutável não existe. Em função das transformações na situação política ocorrem, permanentemente, reposicionamentos.

Este método é errado por duas razões fundamentais: (a) primeiro porque desvaloriza a análise da realidade, ou pula a etapa do entendimento dos novos desafios de cada situação; (b) em segundo lugar, porque não se deve tirar uma conclusão do que fazer considerando qual é o espaço político que se pretende ocupar. Não se deve escolher um lugar na luta política para obter vantagens.

O maior perigo deste método cartográfico é o anacronismo. Ser anacrônico é desconsiderar que tudo ao nosso redor muda, e perder o sentido das proporções. Para preservar a capacidade de comparar com lucidez situações passadas e presentes é necessário aceitar o rigor do método, sendo o mais objetivo possível.

Porque nossa própria experiência pessoal não é uma régua suficiente para atribuir sentido. Existem diferentes formas de anacronismo na análise de conjuntura.  Há o anacronismo de olhar o passado com os olhos do presente, mas há, também, o de olhar o presente com os olhos do passado.

A memória política tem uma dimensão afetiva, portanto, subjetiva que, se não estiver calibrada por critérios incontroversos, conduz ao autoengano. Se olharmos o passado com os olhos do presente, podemos, facilmente, “romantizar” o que passou. “Embelezar” o passado não é difícil quando a experiência do presente é muito ruim. O passado pode parecer muito melhor do que, na verdade, foi.

Milhões de pessoas comparam a trágica experiência do governo Bolsonaro com os anos dos governos do PT e chegam, sem muitas dificuldades, à conclusão de que estão vivendo pior. Essa percepção não é errada, evidentemente. Mas é errado não compreender, também, que a direção do PT tem responsabilidades nas três grandes derrotas que sofremos: o impeachment golpista de Dilma Rousseff, a prisão de Lula, e a eleição de Bolsonaro.

O argumento de que perdemos porque eles estavam mais fortes e nós mais fracos é circular, portanto, não explica nada. Perdemos porque, evidentemente, erros graves foram cometidos. O anacronismo produz uma ilusão de autoengano.

Em defesa do MTST, Guilherme Boulos, e do PSol é necessário dizer que se posicionaram bem. Porque ser de esquerda, ou seja, defender os interesses de classe, diante dos governos do PT, era ser oposição de esquerda, e alertar para os erros. Acontece que o mapa político mudou 180 graus a partir de 2016. O governo do PT foi derrubado por um golpe institucional.

Mas há o perigo oposto. Se olharmos o presente com os olhos do passado seremos incapazes de perceber os desafios da nova situação. Ser de esquerda, ou defender os interesses de classe exigiu, desde 2016, um posicionamento dentro da frente única de resistência contra o golpe, contra a prisão de Lula, ao lado do PT para derrotar Bolsonaro no segundo turno em 2018. Quem não se reposicionou, ou só o fez pela metade, ficou prisioneiro de uma posição anacrônica. Estar a favor ou indiferente à prisão de Lula, por exemplo, não é uma posição à esquerda do PT, mas ao contrário, à sua direita.

Esquerda e direita são, portanto, conceitos aproximativos e coloquiais, um vocabulário sempre datado, ou sem rigor científico. Em função das oscilações da relação social e política de forças variam.

A situação reacionária que prevalece desde 2016 girou a superestrutura do país tão à direita que, por exemplo, o PT é apresentado pela mídia burguesa comercial como uma esquerda extremista, o que além de injusto, é absurdo. Porque, afinal, é necessário defender que Bolsonaro, um neofascista, seja embelezado como de direita, para que o DEM e o PSDB de Dória sejam de centro. A extrema direita, por sua vez, diz combater trinta anos de herança “socialista” no Brasil, o que não é, somente, insensato, é diretamente, insano.

Quais são as pressões mais perigosas neste momento? A maior é o eleitoralismo que reina, em forma selvagem, na esquerda e atravessa os movimentos sociais. O eleitoralismo é uma concepção que reduz a estratégia política à tática eleitoral. Vencer eleições ou eleger vereadores, deputados ou senadores tem imensa importância tática. Mas a experiência de trinta anos de regime democrático-eleitoral já demonstrou que, quando deixa de ser uma tática, e passa a ser um fim em si mesma, ou é elevada a condição de estratégia resulta em desastre político. Não vai ser elegendo vereadores que poderemos derrotar, e muito menos derrubar o governo Bolsonaro.

Mas o eleitoralismo não é o único perigo. Há também pressões anarcosindicalistas. A exasperação na vanguarda mais ativa nas lutas de resistência é grande. O anarcosindicalismo é uma estratégia que desconsidera o estado de ânimo das amplas massas populares, desvaloriza a luta política institucional, despreza a ocupação de espaço nas Câmaras, Assembleias e Parlamento, e atribui poderes “mágicos” a palavras de ordem de ação direta como a greve geral. Alguns a defendem por tempo indeterminado até à derrubada de Bolsonaro. Mesmo se não há, nem remotamente, condições de o fazer.

Estes dilemas se dão em condições concretas. As diferentes correntes e partidos na esquerda têm influência e pesos diferentes. A força exerce muita pressão de adaptação. Ninguém está imune à pressão das forças “gravitacionais”. A cabeça acompanha o chão que os pés pisam.

Quem atua em partidos, que precisam responder à questão do poder, sofre mais diretamente a pressão eleitoralista. Quem atua em sindicatos e nos movimentos sociais sofre mais diretamente a pressão movimentista. Não fosse o bastante, se manifesta, também, uma seleção militante “antidarwinista”, porque tendem a prevalecer em ambos os processos as posições mais extremas. E a sobrevivência dos mais adaptados não favorece os melhores.