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OPRESSÕES

Visibilidade e resistência lésbicas: das telas do cinema à vida real

Marina Amaral, de Itabuna, BA
Reprodução Rafiki Movie

* Contém spoiler do filme Rafiki

No Brasil, agosto é o mês da visibilidade lésbica. Um mês, ainda mais importante, pra refletirmos sobre o que é ser uma mulher lésbica nessa sociedade capitalista, construída em cima do sexismo, do racismo e da LGBTfobia, onde uma mulher amar e desejar outra mulher é uma transgressão. O termo visibilidade é exatamente porque há um apagamento histórico, social e político que nos atinge, pois enquanto transgressoras, tentam nos empurrar de volta para os armários. Por isso, esse mês deve estar a serviço de gerar debates que contribuam, na teoria e na prática, com a nossa visibilidade e luta.

Sobre o filme Rafiki

No mês da visibilidade lésbica, chegou ao Brasil um filme que aborda muito bem essa temática. O filme Rafiki, em queniano swahili, que significa “amigo (a)”, é um longa-metragem dirigido pela Wanuri-Kahiu, queniana, “nascida e criada” em Nairóbi. Nesse ponto, é preciso fazer uma consideração geopolítica. Sabemos que a partir das “grandes navegações” e da colonização e exploração das Américas, e posteriormente, da África e Ásia, os usurpadores europeus impuseram, sob a ótica do patriarcado, em todo mundo, leis que criminalizam a homossexualidade e a transgeneridade, e muitas delas persistem até hoje. A África subsaariana (ao sul do deserto do Saara e que corresponde a 75% do continente) é composta por 49 países, e em 28 desses é crime ser LGBT. No Sudão, por exemplo, e em alguns outros estados que seguem a lei islâmica da sharia, é previsto também a pena de morte. Rafiki se passa no Quênia, onde inclusive neste ano de 2019 foi votada a continuação dessa criminalização – em que o sexo entre pessoas do mesmo gênero (na lei diz-se “conhecimento carnal contra a natureza) pode ser punível em até 14 anos de prisão.

Rafiki, inspirado no livro Ugandense Jambule Tree, é um filme de drama, que conta a história de amor entre duas mulheres. Uma história de amor que tem um pano de fundo muito doloroso. Como já dito, se passa no Quênia, um país onde as famílias e a população em geral são extremamente conservadoras. Onde as mulheres são criadas pra casar e agradar seus maridos. “Boas meninas quenianas tornam-se boas esposas quenianas”, diz um ditado popular no país. Por esse contexto, o filme foi proibido de ser lançado no país, “devido a seu tema homossexual e clara intenção de promover o lesbianismo no Quênia, ao contrário da lei”. Todavia, por toda sua história cenográfica e política, foi o primeiro filme queniano a ser exibido no Festival de cinema de Cannes em 2018, e posteriormente, ganhou as telas de cinema de vários países, incluindo o Brasil.

Reprodução Rafiki Movie

Sobre o filme, eu quero expor duas situações que acontecem em uma cena: As personagens principais, Kena e Ziki, passam por um episódio muito grave de violência por serem flagradas cometendo o crime de estarem se amando. Após serem violentadas, são levadas à delegacia. A primeira coisa que ouvem quando chegam, é a pergunta, de forma debochada, de “quem é o homem da relação?”. Essa é uma pergunta que quase toda mulher lésbica, ou melhor, mulheres que se relacionam com mulheres, já ouviram. Ora, se o relacionamento é lésbico, é justamente porque não existe homem na relação. Mas o patriarcado, baseado na heteronormatividade, tenta a todo tempo encaixar os papeis de gênero nas nossas relações, contribuindo pra nossa invisibilidade.

A segunda situação, ainda mais grave, é que enquanto estão na delegacia, após a violência física e, psíquica, os pais das duas vão buscá-las. Um deles, o pai de Kena, vê a filha machucada e a abraça, dá colo. O outro, pai de Ziki, enquanto a filha está com o rosto ensanguentado, dá um tapa na cara dela. Isso me fez lembrar um meme – acho que memes podem ser muito educativos as vezes. O meme dizia assim: “Quando nós, LGBTs, tomamos um murro na boca no meio da rua, o que a gente mais quer é chegar em casa e ter apoio, ter um colo pra chorar, ter um abraço. Então, família, não seja você o murro na boca”. Meme forte, porque um dos maiores sofrimentos pra quem é LGBT é a rejeição da família. Assim como uma das maiores felicidades é a aceitação da família. Eu desejo muito, que um dia, as famílias de todas as pessoas LGBTs sejam seu maior suporte e jamais seu maior sofrimento.

Das vivências e resistências

Nós sabemos que, no Brasil, ser LGBT não é crime. Mesmo assim, seguimos sendo o país que mata mais LGBTs do que países em que é crime ser LGBT. Apesar de toda tragédia, o Brasil é um dos poucos países em que o dia da visibilidade lésbica vem de uma data positiva e não de massacre. A data do 29 de agosto surgiu porque neste mesmo dia, em 1996, ocorreu o I Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), que hoje se chama Senalesbi, incluindo também as mulheres bissexuais. Ou seja, a data surge a partir de um movimento organizado de mulheres lésbicas. E é justamente isso que nós, enquanto seres políticos, precisamos entender: a necessidade e a importância dos movimentos sociais organizados pra conquista de direitos.

Para pensarmos em direitos e movimentos sociais, é muito importante também refletir sobre a atual conjuntura. Vivemos, hoje, talvez a maior derrota política de nossa geração, que foi a eleição de Bolsonaro e a propagação de sua ideologia – no sentido marxista mesmo, de inversão, de falsa consciência. Bolsonaro foi eleito apesar das lutas que foram encampadas contra ele. O #EleNão, por exemplo, foi um grande levante, protagonizado especialmente por mulheres, muitas mulheres lésbicas, para dizer que ele não nos representa. Para dizer que sapatão rima com #EleNão. Mas, mesmo com essas resistências, Bolsonaro foi eleito e põe em prática um governo protofascista, que a todo tempo tenta acabar com nossas vidas, seja na questão econômica, política ou social.

Todas as pessoas, da juventude, da classe trabalhadora deveriam estar preocupadas com o momento atual. Quem não está muito preocupado, é porque certamente não está prestando atenção. Mas nós, mulheres, lésbicas, LGBTs em geral, negros e negras, temos que estar ainda mais preocupados, porque além da retirada de direitos, o discurso e a prática Bolsonarista pode também ser uma questão de vida ou morte.

Muita gente, inclusive parte da esquerda, acredita que as pautas morais do governo Bolsonaro são apenas cortina de fumaça, ou seja, são secundárias, e servem somente para disfarçar o avanço, aliás, o retrocesso, nas questões macro econômicas. Eu discordo. Primeiro porque nossas vidas não são cortinas de fumaça. E segundo, porque as pautas morais neste governo são tão importantes quanto. Sabemos que nos últimos tempos, ideias abertamente racistas, sexistas, e LGBTfóbicas ganharam força no nosso país e em outros países que também tiveram o avanço da extrema-direita. Com isso, vimos aumentar também todas as formas de violências. O Brasil, que já era o país onde mais se matava LGBT, continua sendo, e agora, com o discurso legitimador do presidente, de uma forma  escancarada. Nesse sentido, penso que nós, mulheres lésbicas, precisamos, por exemplo, nos levantar contra a licença para matar negros e negras contida no pacote anticrime de Sérgio Moro – e é importante falar disso, porque milhares de mulheres negras também são mulheres lésbicas, e isso vai nos atingir diretamente.

Não podemos esquecer o caso de Luana Barbosa – uma mulher preta, lésbica, que foi morta após ser espancada por policias militares em São Paulo há três anos. Foi brutalmente espancada, porque, enquanto mulher, exigiu seu direito de ser revistada por uma policial mulher. O caso de Luana é nitidamente um caso de racismo e lesbofobia. E é importante pontuar isso, porque casos como o de Luana quase nunca são tipificados como lesbofobia, e essa é mais uma forma de nos invisibilizar.

Apesar da invisibilidade e de sua morte, nós não esqueceremos Luana Barbosa, assim como não esqueceremos Dayane Ramos – lésbica, morta em Maringá em 2014; não esqueceremos Laís Rodrigues Castanho, bissexual, morta com 12 tiros; e com certeza também não esqueceremos a companheira Marielle Franco – brutalmente assassinada por questões políticas, mas também pelo que simbolizava, mulher negra, bissexual, socialista e de luta.

Eu gostaria muito de não ter que lembrar dessas mulheres. Gostaria muito que Luana continuasse em seu anonimato como milhares de brasileiros pobres e negros, vivendo sua vida periférica cotidiana. Gostaria muito que Marielle tivesse continuado seu mandato combativo e sua história de amor com Mônica. Mas, infelizmente, a realidade é outra, e o mínimo que nós podemos fazer é transformar o nosso luto diário em luta diária.

Não voltaremos para o armário, nem sairemos da luta

Falar sobre ser lésbica, às vezes, é algo muito subjetivo, porque trata de vivências, que podem ser individuais. Mas, acima de tudo, é uma vivência coletiva e política. Quando me assumo enquanto uma mulher lésbica para a sociedade, geralmente já se percorreu um longo passo, que é o de primeiro assumir pra si e se aceitar. E quando eu me assumo para a sociedade, eu rompo com a heteronormatividade, eu desafio o patriarcado. Por isso que sempre digo, amar outra mulher, além de muito gostoso, é revolucionário.

Tudo isso mostra que o combate à LGBTfobia, a lesbofobia, só pode se realizar através de muita luta. E nós, principalmente nessa conjuntura, só podemos resistir na coletividade. Não podemos nos perder na subjetividade e nas experiências individuais. É preciso criar estratégias de luta coletiva contra instituições de exploração e opressão. Não existe saída individual para o fim da lesbofobia. Não existe saída individual para o fim do racismo. Não existe saída individual para o fim do sexismo. E não existe o fim de nada disso dentro desse sistema capitalista, que nos explora e nos oprime. Que precisa que entre os explorados da classe trabalhadora, haja aqueles que serão ainda mais explorados e oprimidos, que somos nós mulheres, lésbicas, negros e negras.

É preciso compreender que o capitalismo é um sistema de exploração e de opressão. E por isso, será impossível acabar com a lesbofobia e todas as formas de opressões nesse sistema. Marielle sabia disso. Por isso, dedicava suas forças à luta feminista, antirracista, anti-lgbtfóbica, mas também anticapitalista e socialista.

Que a semente de Marielle floresça em nós, e nos dê força pra resistir todos os dias!
Viva o mês das mulheres corajosas que amam outras mulheres!

 

 

*Marina Amaral – sapatão e militante do Afronte!