À primeira vista, é quase inevitável responder pela positiva a essa pergunta, ou seja, admitir o caráter marginal da corrente histórica trotskista. Aliás, falar de corrente é pouco recomendável, até pela imensa coleção de agrupamentos, nacionais e internacionais, que se reivindica do trotskismo, enquanto o velho Leon Trotski se remexe no túmulo.
Agora, por que é quase inevitável admitir que só seja possível responder a essa pergunta pela positiva, isto é, reconhecendo a marginalidade do trotskismo? Isso se deve, fundamentalmente, ao fato de que, dentro e fora do movimento trotskista, isso se tornou quase um mantra, que é repetido por velhos e novos adeptos, e, incrivelmente, por aliados e inimigos. Desse modo, o trotskismo é apresentado como aquilo que está sempre à margem do que é central. Isolado.
É essa questão que, mediante este artigo, queremos abordar, adotando como método o uso de indagações premeditadamente organizadas.
Ao longo dos últimos 90 anos, aproximadamente, o trotskismo – ou correntes que, de um modo ou de outro, se aliaram ou se aliam ao seu arcabouço histórico – se ligou a acontecimentos que dificilmente escapam a um olhar perscrutador: como nos esquecer dos trotskistas no movimento de resistência ao aprofundamento da burocratização da ex-URSS e à ascensão do nazifascismo, inclusive no Brasil? Ou a sua inserção na Resistência ao longo da Segunda Guerra Mundial? Como não rememorá-los na Revolução Boliviana de 70 anos atrás? Seria possível não evocá-los em meio ao Maio Francês ou ao Cordobazo na Argentina? Por que omiti-los de fatos tão ruidosos como a grande revolução Iraniana ou a Nicaraguense (sob a égide da Brigada Simón Bolívar), em 1979?
Podemos diminuir o espectro da visão sobre a história e indagar sobre o significado da presença dos trotskistas no sindicalismo estadunidense, nos anos 1930 e ainda nas décadas seguintes, ou no Brasil, dos anos 1970-1980 para cá, sobremaneira na classe operária, ou quem sabe, tomando como referência os anos 1960, as suas relações com o campesinato no Peru, com Hugo Blanco, ou no Brasil, com o velho Partido Operário Revolucionário (POR). Figura essencial na organização dos homossexuais, no Brasil, em fins da década de 1970 e começo dos anos 1980, o militante ou a militante trotskista sempre se mostrou ativo(a) na organização dos chamados movimentos sociais.
Ademais, quem já não foi acusado, à direita e à esquerda, de ser um trotskista? Até mesmo em Cuba, onde o nome de Trotski se tornou quase proibido, como não se comover com o seu ressurgimento na obra O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura? Acresça-se que o velho Leon, ao longo dos anos, se tornou tema de filmes, séries e nunca deixou de aparecer nas páginas dos livros didáticos que contam a história da Revolução Russa. Ou seja: o trotskismo (e, evidentemente, Trotski) irrompe na escrita da história, embora nas suas linhas mais que tortas. Independentemente disso, não se trataria, em todos esses casos, de questões, de fato, relevantes? Não se estabeleceria, nesse contexto, uma zona de tensão com a tese consagrada da marginalização?
Deixemos para depois as respostas a essas questões, se é que teremos essas respostas, e retomemos, neste instante, ao fio da meada.
Se quisermos limitar a atuação do trotskismo ao terreno puramente institucional, como não notificar o leitor do lugar do trotskismo na vida política da França, como exemplifica o caso de Arlette Laguiller, em especial no ano de 2005, quando obteve quase 6% dos votos do eleitorado daquele país? Ou os exemplos do velho MAS Argentino e, mais recentemente da FIT, elegendo parlamentares socialistas? Do Paquistão aos EUA, passando por Portugal e Inglaterra, sem nos esquecer do Peru, os troskos, como são afetivamente chamados, não deixaram de ocupar espaços políticos, levantando programas para cada um desses países e elegendo representantes capazes de defender as suas propostas no âmbito do parlamento burguês.
Mesmo no Brasil, a velha e combativa Convergência Socialista, a Causa Operária, o PSTU, as antigas correntes internas do PT (DS e O Trabalho) e muitas das tendências do PSOL – Resistência, MES, CST, Insurgência etc. (cada uma delas, a seu prazer, reivindicam o legado de Trotski, ou de parte dele, ou de alguns de seus seguidores), não deixaram de registrar o nome do trotskismo no livro da história nacional, não somente no campo da institucionalidade, em alguns casos, com postos parlamentares conquistados, mas, principalmente, no campo das lutas sociais: organização de sindicatos, de entidades estudantis, do movimento de mulheres, de greves gerais etc.
Esses exemplos não são indicadores de que a noção de marginalidade política do trotskismo não deveria ser objeto, pelo menos, de uma investigação com um grau maior de profundidade, ou deveríamos deixar a profundidade de lado? As vidas despedaçadas de seus líderes, a começar de Trotski e de seus filhos, não podem ser argumentos que apaguem os farrapos de lembranças de dirigentes trotskistas que marcaram o século XX, não só na Europa (Mandel, Lambert, Broué etc.), mas em outras partes do mundo, como a América Latina (Sacchetta, Moreno, Lora, Altamira, dentre outros) e nos EUA (especialmente, Cannon, do velho SWP).
Nas veredas vertiginosas da história, no entanto, ainda é possível enfrentar as privações mortais que a vida política e os estudos intelectuais buscam impor ao movimento trotskista. Opor-se a essa lógica implica recuperar a trajetória de uma franja da intelligentsia que, no Brasil e em outras partes do mundo, se ligou às ideias de Leon Trotski e de alguma das organizações que reclamaram ou reclamam o seu legado. Como nos esquecer de que, na juventude, o historiador francês François Dosse militou sob as bandeiras do trotskismo? Como não recordar dos escritores James Thomas Farrell e Mary McCarthy (autora de Memórias de uma menina católica e de O grupo), companheiro e companheira de viagem do trotskismo estadunidense? Por que haveria de se esquecer da estrutura de sentimentos que se estabeleceu entre Trotski, Breton e o surrealismo, até como ponto de partida de relações futuras de artistas e intelectuais com essa tradição marxista tão sedutora?
No Brasil, Mário Pedrosa, um crítico de arte, Lívio Abramo, pintor e desenhista, Lívio Xavier, professor e tradutor, e Aristides Lobo, professor, jornalista e tradutor, estão entre os pais fundadores do trotskismo, quando criaram a Liga Comunista Internacionalista (LCI), no começo dos anos 1930. Lélia Abramo, atriz e irmã de Lívio Abramo, mesmo quando se afastou da militância direta, sempre manteve a sua simpatia pelo trotskismo. Como se percebe, uma intelligentsia nada marginal esteve no alicerce da constituição do primeiro núcleo político inspirado nas ideias de Trotski em território brasileiro. No caso de Mário Pedrosa, ele participou como delegado da conferência de fundação da IV Internacional, e embora tenha se afastado organicamente do Partido Mundial da Revolução Socialista, não deixou de preservar algum tipo de ligação com parte do ideário de Leon Trotski. Registre-se ainda outra personagem que dialogava com as ideias do revolucionário ucraniano, mas que depois daria um giro de 180 graus rumo aos braços da direita: Rachel de Queiroz. Isso, contudo, sem menosprezar a também curta passagem de Patrícia Galvão, a Pagu, pelo campo trotskista.
Se esse ideário se mostrou irresistível a essa intelectualidade, em fins dos anos 1920 e ao longo da década de 1930, essencialmente, não perdeu a sua força nos decênios seguintes, conforme se desprende das relações de uma juventude culta que, posteriormente, galgaria posições importantes no mundo acadêmico brasileiro. Na esteira dessas conexões, sobressaem nomes como os de Florestan Fernandes, Moniz Bandeira, Leôncio Martins Rodrigues e Boris Fausto. Mais adiante, distingue-se a figura de Michael Löwy, aliás, ainda hoje, intelectual-militante trotskista.
Observa-se, portanto, as dificuldades de se pronunciar de modo tão inequívoco a tese da marginalidade das ideias de Leon Trotski e não refletir em torno de experiências e personagens que, de alguma maneira, parecem indicar um campo mais complexo de situações, práticas, coletivos e indivíduos que, em última análise, sugerem exames menos superficiais do objeto em questão.
Ainda que se admitisse a marginalidade do trotskismo, considerando o seu isolamento depois da Segunda Guerra Imperialista, devido o fortalecimento do stalinismo, no primeiro momento, e o recuo relativo da classe operária, nas décadas seguintes, produzindo fracionamentos quase intermináveis nas hostes trotskistas; ainda que se considerassem as dificuldades dos agrupamentos trotskistas diante de acontecimentos tão distintos quanto complementares, como a queda dos Estados Operários Burocráticos e o aparecimento de novos atores sociais em um mundo cada vez mais complexo, haveria de se raciocinar além da aparência acolhida como verdade incontestável. Nesse sentido, aos defeitos ordinários do trotskismo, há de se acrescentar as suas virtudes extraordinárias, que de modo discreto e simples tentamos enfatizar ao longo deste breve texto. Essas virtudes são fundações sobre as quais poderia se apoiar uma tese lapidar: se se deve falar de marginalidade do trotskismo, de fato, há de se anuir, antes de qualquer outra coisa, que essa marginalidade é sempre relativa, nunca absoluta. O espelho da história quer nos desmentir, mas ao mesmo tempo revela esse segredo tácito, que por tudo que se viu até agora, parece que deseja explodir, em nome da própria história, que, se considerado o aparecimento da Oposição da Esquerda na EX-URSS, na segunda metade dos anos 1920, já traz em seu bojo uma temporalidade que ultrapassa 90 anos de um percurso crítico que não cessa de se questionar. Esse questionamento, porém, não é sinônimo de perecimento; é condição de vida.
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