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MUNDO

A Justiça Climática, um combate anticapitalista

Manuel Afonso*, de Portugal

“O problema da mudança climática envolve uma falha fundamental dos mercados: os que prejudicam os outros pela emissão de gases de efeito estufa geralmente não pagam”.
Sir  Nicolas Stern (1)

“Fim do mundo e fim do mês: a mesma luta” lia-se num cartaz empunhado nas manifestações da Greve Climática Estudantil, a 15 de Março, em França. Uma definição simples mas certeira de “Justiça Climática”: a exigência de igualdade social e de uma transição energética paga pelos responsáveis.  No site do Climáximo (2), podemos ler na definição de Justiça Climática:

O Norte Global é significativamente mais responsável pelas emissões de gases de efeito de estufa ao longo da história, enquanto o Sul Global é dramaticamente mais afetado pelos seus impactos. (…) Num só país, os mais pobres são muito mais vulneráveis do que os ricos. Em geral, a cor da pele está associada a vulnerabilidades diferenciadas aos impactos ambientais (…), assim como o género.”  (3)

A luta pela Justiça Climática constata que as desigualdades sociais e geopolíticas atravessam as causas e os efeitos da crise climática. Em vez de apontar como culpada a “humanidade”, culpa as grandes multinacionais petrolíferas, os bancos e os governos. Ao encontrar nas classes dominantes o entrave à solução, convoca os “de baixo” para lutar pelas suas vidas e a do planeta.

A boa notícia é que esta ideia já move milhões de jovens por todo o planeta. A 15 de Março, 2 milhões fizeram greve às aulas e manifestaram-se pela Justiça Climática. Em Portugal, 20 mil  jovens fizeram greve em 20 cidades. Em França foram 350 mil. No Reino Unido, este dia assinalou a 30ª semana em que, às sextas-feiras, os estudantes faltam às aulas e manifestam-se pelo clima. Na Bélgica sucedem-se as greves, tendo por duas vezes trazido 75 mil pessoas às ruas. Dos EUA, ao Japão, Índia, Nova Zelândia, África do Sul e dezenas de outros países viram a juventude na rua pelo clima.

Rumo a uma crise climática global?

Todos os anos do século XXI estão no Top 20 dos anos mais quentes desde quando há registo. Desde o início da época industrial, as temperaturas médias subiram 1,14ºc. As consequências são, já hoje, incontornáveis: os fenômenos climáticos extremos tem aumentado, atingindo primordialmente as populações mais pobres e os países dependentes. O ciclone Inai, recentemente responsável por mortes e  destruição sem fim em Moçambique e no Zimbabué, lembra cenários recentes no Haiti, Porto Rico ou New Orleans. “Segundo a Munich Re, uma das maiores empresas de resseguros do mundo, o número de catástrofes naturais basicamente triplicou nos últimos 35 anos.” (4)

O aquecimento global deve-se à liberação massiva de Gases de Efeitos de Estufa (GEE’s) – como o Dióxido de Carbono ou o Metano – resultante não só da queima de combustíveis fósseis (os atuais incêndios na Amazônia também contribuem para o aquecimento global), mas também de práticas como a agricultura e criação de gado intensivas. Nos EUA, “97% dos cientistas do clima concluíram que as alterações climáticas provocadas pelo Homem são uma realidade” (5)

Estes dados não nos dão uma dimensão do cataclisma que enfrentamos. As alterações climáticas não se desenvolvem de forma linear. Pelo contrário, podem acelerar exponencialmente. Isto acontece, porque a emissão de GEE’s tem vindo a aumentar: 2018 foi o ano com mais emissões de GEE’s de sempre.

Acresce que as alterações climáticas se retroalimentam, através de mecanismos conhecidos como “feedbacks positivos”. O degelo dos polos faz com que a superfície da terra perca área branca – que reflete a luz solar – e tenha mais superfície azul – que absorve o calor. Assim, quanto maior é o degelo nos polos, mais aquece o planeta o que leva a um maior degelo… Este não é o único exemplo: o recuo do gelo pode expor o permafrost, uma camada de matéria orgânica coberta pelos gelos polares, rica em metano. Exposto, o permafrost pode rapidamente libertar grandes quantidades de metano, um gás com 20 vezes mais efeito estufa que o dióxido de carbono.

Os cientistas temem que a partir de dado patamar de aquecimento médio, possamos a entrar num cenário de desequilibro climático irreversível. Vários sinais dizem-nos que nos aproximamos perigosamente desse limite.

Publicado no final de 2018, um relatório do IPCC (Painel Internacional para as Alterações Climáticas da ONU) avisa que o “teto” de aquecimento médio de 2°c até 2100, assumido nos acordos de Paris, está sobrestimado. Afirma que o máximo aceitável de subida da temperatura atmosférica é 1.5°. Com um aumento superior, os riscos de um cenário de desregulação climática global, são demasiado grandes. Porém como vimos antes, hoje já superamos um aumento de 1ºc.

Um segundo relatório, da Assessoria Nacional para o Clima, dos EUA, indica que as medidas tomadas até hoje pelos governos têm sido ineficientes, e pelo presente ritmo, no final do século estaremos perante um aumento médio de 5ºc – um cenário assustador. O derretimento dos polos, a submersão de grandes metrópoles, secas e cheias que tornariam regiões inabitáveis, a perda de grandes áreas agrícolas e crises migratórias acrescidas – tudo isso seria provável perante um aumento de 5°c da temperatura..

Os capitalistas não vão largar o petróleo

Não estamos condenados. As soluções são conhecidas e exequíveis. Apesar de constituírem provavelmente o maior desafio jamais colocado à humanidade, não acarretam esforços superiores aos das inúmeras guerras  nem valores superiores aqueles usados pelos Governos para salvar a banca.

Um estudo publicado no jornal Nature Communication (6), aponta que “se toda a infraestrutura de combustíveis fósseis – usinas, fábricas, veículos, navios e aviões – for substituída, a partir de agora, por alternativas de carbono zero no final de suas vidas úteis, haverá 64% de chance de permanecer abaixo de 1.5Cº”. Outro estudo de 2015 de Mark Jacobson da Universidade de Standford comprova que a economia dos EUA, que é o maior emissor do mundo per capita, pode transitar 100% para energias renováveis até 2050.

Basta manter sob o solo todo o carvão, petróleo e gás que ainda lá está e substituir progressivamente todas as infra-estruturas produtivas ao longo do seu tempo de vida, por outras movidas a energias renováveis. É certo que uma transição energética justa não se limitaria a isto. Mas comprova-se que é possível evitar uma catástrofe climática. Porque não acontece então?

Todos os 20 principais emissores de GEE são grandes petrolíferas – Chevron, Exxon-Mobil, BP, Shell… Cinco são europeias, quatro norte-americanas, três russas e  duas chinesas. China e EUA são os maiores emissores mundiais, mas os EUA são de longe os maiores emissores per capita – só as forças armadas norte-americanas representam 5% das emissões de GEE do mundo!

Já depois dos acordos de Paris de 2015, “os 33 maiores bancos globais forneceram coletivamente 1,9 triliões de dólares em financiamento para combustíveis fósseis.” (7) O que explica a conclusão da Oxfam de que “Os 10% mais ricos de pessoas produzem metade das emissões de combustíveis fósseis que prejudicam o clima na Terra, enquanto a metade mais pobre contribui com apenas 10%”.(8) Por isso, empresas como Exxon-Mobil, Shell, Chevron, BP e Total  gastam “195 milhões de dólares por ano com o objetivo de atrasar ou bloquear políticas destinadas a lidar com as alterações climáticas.” (9)

O capital financeiro global, as petrolíferas, o complexo militar-industrial dos EUA e a cúpula da classe dominante dos principais países, estão intrinsecamente ligadas e dependentes. Mais facilmente as classes dominantes arrastam a civilização para o colapso do que abandonam de bom grado os combustíveis fósseis. 

Justiça Climática é luta de classes

A luta pela Justiça Climática não se trata por isso de uma luta individual, tão pouco de uma luta “de toda a sociedade”. É uma luta dos trabalhadores,  pobres, camponeses e povos indígenas contra os Governos, as Multinacionais e os Bancos que devoram o planeta.

Ao mesmo tempo, a percepção das desigualdades nas responsabilidades entre países imperialistas – como EUA ou a UE – e os países dependentes, aponta no sentido da “dívida climática” das nações industrializadas aos povos do sul, e abre uma brecha para a solidariedade entre os povos.

Esta perspectiva, internacionalista e classista, leva necessariamente as questões centrais  “O que produzir, para quem e como – e quem deve decidir?”. Ela expõe a necessidade de que os meios de produção e reprodução – as fábricas, os transportes, as casas e as escolas – sejam bens comuns, geridos racional e democraticamente. A transição energética global em poucas décadas e a adaptação a uma sociedade de carbono zero em prol da maioria, exigem uma sociedade socialista e ecológica.

Revolução ou extinção

Ao compasso das mobilizações, ganham corpo programas concretos de transição climática, assentes na criação de milhares de empregos. Nos EUA, o chamado “Green New Deal”, está no centro do debate político. No Reino Unido, a campanha por “Um Milhão de Empregos pelo Clima foi criada por sindicalistas (…). O relatório Um Milhão de Empregos pelo Clima define o trabalho que precisa ser feito na transição para uma economia de baixo carbono adequada ao futuro.” Também em Portugal, tem crescido a campanha “Empregos pelo Clima”, cujo relatório aponta:

“Os cálculos neste relatório estimam 120 a 160 mil novos postos de trabalho diretos empregues nos vários setores-chave desta transição. Destes, depois de garantir a substituição de todos os empregos perdidos no fabrico, comércio e transporte de produtos petrolíferos, restam 100 a 140 mil postos de trabalho a ocupar por pessoas atualmente no desemprego (…)Os empregos que é preciso criar em Portugal estão focados em particular nos setores da produção energética, transportes, edifícios e indústria, agricultura e resíduos, e floresta (além de requalificação e formação profissional)” (10)

Estas iniciativas refletem a radicalização do movimento ecologista global. Podem e devem servir como alavancas para levar a luta por Justiça Climática aos trabalhadores. “Segundo um relatório de 2011 da. Federação Europeia de Transportes, políticas abrangentes com vista a reduzir as emissões no sector dos transportes em 80% iriam criar sete milhões de novos empregos em todos os continentes, ao mesmo tempo que mais cinco milhões de empregos de energia limpa na Europa podiam cortar as emissões elétricas em 90%”. Alianças entre trabalhadores, comunidades afetadas pelas alterações climáticas e o movimento ecologista podem ser mobilizadas sobre esta base. 

Naturalmente, no seio deste movimento confluem diversas estratégias. O Green New Deal nasceu da exigência do movimento por um plano de transição para energias renováveis que criasse milhões de empregos de qualidade e Alessandra Ocasio-Cortez, da esquerda Democrata levou a ideia para o Congresso. A força desta iniciativa é a de provir de um movimento de base contra os bilionários do petróleo. Porém, o próprio nome do projeto (11) aponta no sentido da regulamentação estatal do mercado, ao estilo Keynesiano(12) É uma armadilha: a classe dominante não aceita a mínima regulação. Ela deve ser obrigada pela mobilização a indemnizar as vítimas da crise climática e a pagar a transição energética. Para tal, terá de ser removida do poder. John Bellamy-Foster, (13) um dos mais reconhecidos porta-vozes do ecossocialismo, apontou sobre o “Green New Deal” que Para trazer uma mudança significativa, a resolução proposta por Alexandria Ocasio-Cortez deve fazer parte de uma revolução ecológica com uma ampla base social.” (14) A mesma conclusão é válida para todo o movimento por empregos e Justiça Climática. Sob a bandeira da criação de milhões de empregos, ao serviço de uma transição energética paga pelos grandes capitalistas, é possível unir uma ampla base social. A classe trabalhadora será central, pelo seu papel na economia. Ela pode parar a produção e mobilizar a maioria do povo para retirar do poder os grandes capitalistas: uma eco-revolução para devolver aos povos as decisões sobre o que produzir e como produzir, reorganizar racionalmente a nossa relação com o planeta e evitar a catástrofe.

 

*Manuel Afonso é militante do Movimento Alternativa Socialista (MAS)

 

NOTAS

1 – Sir Nicolas Stern, é um Economista Britânico que coordenou um estudo sobre o aquecimento global para o Governo Britânico;

2 – O Climáximo é um coletivo pela Justiça Climática português, que se tem destacado nas principais lutas climáticas no país, como na luta contra a prospeção de petróleo e Gás natural, como na preparação da Greve Climática Estudantil. Define-se como:  um grupo de ativistas movidos pela urgência do combate às alterações climáticas e os seus graves efeitos. ( http://www.climaximo.pt/quem-somos/ , consultado a 26 de Março de 2019;)

3 – http://www.climaximo.pt/glossario-de-ativismo-climatico/ , consultado a 26/03/2019

4 – Manual de Combate às Alterações Climáticas, João Camargo, Parsifal;

5 – Relatório a Associação Americana para o Avanço da Ciência, 2014;

6 – https://www.theguardian.com/environment/2019/jan/15/immediate-fossil-fuel-phaseout-could-arrest-climate-change-study?fbclid=IwAR25chVU62yUtUl_ulTJ7Fu2m9qtdDGhRS96Q9fYq74IC7M1HxBW6sDOrLg , consultado a 26/03/2019

7 – https://www.fastcompany.com/90318532/banks-pumped-1-9-trillion-into-fossil-fuels-since-the-paris-climate-deal?fbclid=IwAR2W5xIT9YeUyaLo8S70en_O-eoByKptTfsujanBw0Ae2R6iOJEUjb5No30

8 – https://www.theguardian.com/environment/2015/dec/02/worlds-richest-10-produce-half-of-global-carbon-emissions-says-oxfam

9 – https://www.esquerda.net/artigo/petroliferas-fazem-lobi-para-impedir-politicas-anti-alteracoes-climaticas/60413?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook&fbclid=IwAR2NjRdtQI1T6urCx8gFakay5mSBYYo9_btVAKtlcpKQiv2Br_TDADwHQg8

10 – http://www.empregos-clima.pt/ , consultado em 26/03/2019;

11 – O ‘New Deal’ (em português, novo acordo ou novo trato) foi o nome dado à série de programas implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana, e assistir os prejudicados pela Grande Depressão. (fonte: Wikipédia);

12 – John Maynard Keynes, foi um economista britânico que se opunha à ideia de que os mercados livres ofereceriam automaticamente empregos aos trabalhadores contanto que eles fossem flexíveis na  procura salarial. As suas ideias de intervenção e regulamentação estatal na economia influenciaram diversos Governos após a 2ª Guerra, mas igualmente o New Deal, nos EUA nos anos 30;

13 –Um professor de sociologia da Universidade de Borrego, John Bellamy Foster é também o editor da revista socialista Monthly Review. Ele escreveu amplamente sobre capitalismo, marxismo e crises ecológicas.”, https://climateandcapitalism.com/2019/02/12/john-bellamy-foster-on-the-green-new-deal/?fbclid=IwAR11OvzNS1uLpiGZwizh8k2kSr2oppajSVYECZdZQEyr3wlpS0xqvYAbxec , consultado em 26/03/2019;

14 – https://climateandcapitalism.com/2019/02/12/john-bellamy-foster-on-the-green-new-deal/?fbclid=IwAR11OvzNS1uLpiGZwizh8k2kSr2oppajSVYECZdZQEyr3wlpS0xqvYAbxec , consultado em 26/03/2019;