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EDITORIAL

É impossível abater a tiros a violência no Rio de Janeiro

Editorial de 22 de agosto de 2019
Reprodução

Quando nesta terça, 20 de agosto, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, saltou exultante do helicóptero que o levou à Ponte Rio-Niterói, é razoável supor que o que ele então comemorava não era nem a morte de um sequestrador, o vigilante Willian da Silva, nem a liberação de quase quarenta reféns, vitimados naquela manhã a caminho do trabalho. O que animava o governador era a oportunidade quase perfeita para consagrar sua solução simples para o problema complexo da violência urbana: o abate.

Os motivos para esta mensagem ser bem recebida naquele momento são compreensíveis. A situação de terror vivida pelos reféns suscitou em milhares de pessoas que acompanharam o evento pela TV a sensação de medo e vulnerabilidade da população em geral frente à violência e o anseio por uma resposta do poder público. Nessas condições, a operação de resgate de um ônibus pôde parecer fornecer o modelo perfeito para a intervenção policial em geral, um método no qual o policial age essencialmente como eliminador de ameaças em situações de risco, como um franco-atirador num campo de batalha. Witzel não teve embaraços em apresentar o desfecho do sequestro como prova de sua tese de que o necessário para combater a violência no estado é a autorização prévia, desimpedida e permanente para que a polícia faça uso de força letal a seu próprio escrutínio contra criminosos de periculosidade presumida. Somente algumas horas após os seis tiros disparados na Ponte Rio-Niterói, o ex-juiz anunciou que enviaria ao Supremo Tribunal Federal medida judicial para assegurar aos policiais o direito de “abater quem estiver portando fuzil” como forma de legítima defesa.

A recuperação de iniciativa por parte de Witzel acontece num momento em que sua política abertamente belicista e exterminista apresentava seus primeiros sinais de desgaste por sucessivas mortes de jovens negros sem relação com o crime em operações policiais em favelas em um período de apenas cinco dias. Agora, o governador espera que estas mortes sejam esquecidas ou relativizadas em vista do combate ao crime e de uma violência que preveniria mais mortes do que causaria. Entretanto, as estatísticas não apontam que este aumento da letalidade policial tenha resultado numa diminuição da violência.

Nos últimos cinco anos, com a explosão do desemprego e o agravamento da crise econômica e social, a incidência de crimes violentos no estado do Rio de Janeiro retomou patamares que não eram vistos desde a década anterior, com mais de 6.000 mortes violentas por ano. Este aumento não se deu por uma diminuição da atuação da polícia ou de sua letalidade, muito pelo contrário. Se durante o quadriênio de 2015 a 2018, segundo os dados do ISP, as mortes não causadas oficialmente por agentes do Estado cresceram quase 10% em comparação com o anterior, as causadas por membros das forças de segurança no mesmo período cresceram mais de 117%. Se em 2013 menos de 8% de todas as mortes violentas foram ocasionadas por agentes do Estado, em 2019 esse número beira os 29%. Se a persistir a mesma trajetória, ao final do seu mandato as forças de segurança comandadas por Witzel serão responsáveis por mais de uma em cada três mortes no Rio de Janeiro. A julgar pelas estatísticas oficiais, as polícias são hoje o principal motor no aumento de mortes violentas no estado.

Os atingidos por esse enorme potencial letal têm perfil muito definido, são em sua enorme maioria homens negros, jovens, moradores de favelas e periferias. Suas mortes são consequência necessária de uma atuação policial que conflui no seu âmago contenção de conflitos sociais com o combate aos crimes cometidos majoritariamente por pessoas oriundas de populações marginalizadas. Nesse contexto, muitas vezes o perfil social e racial é suficiente para selecionar a vítima dos disparos que o governador quer sancionar preventivamente. Mas a aparente arbitrariedade dos episódios de violência respeita a segmentação do território e distribuição dos interesses. Os territórios onde as milícias cumprem elas mesmas seu papel disciplinador e explorador não são alvos das operações policiais que são a essência da política de segurança pública do governador Witzel.

A política de segurança de Witzel, portanto, parece não se guiar por um objetivo claro de redução nos crimes violentos, e nem mesmo num combate generalizado aos grupos armados que perduram, uma vez que ignora o poder acumulado pelas milícias. Parece mais interessada em repercutir uma imagem específica e parcial de confronto com o crime organizado representado quase exclusivamente pelo tráfico de drogas, envolta em uma linguagem marcial e contra-insurrecional, em que snipers, helicópteros e mísseis devem ser usados para abater inimigos tal como se as favelas cariocas fossem florestas vietnamitas ou ruínas iraquianas. Essa política, se continuar se desenvolvendo, em nada diminuirá a violência que permeia o cotidiano de maioria da população, mas provavelmente aumentará em muito o custo humano e social de sua preservação.