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O marxismo internacionalista de Leon Trotsky

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Leon Trotsky

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

No dia 20 de agosto de 1940, Leon Trotsky foi assassinado por Ramon Mercader, um oficial da espionagem soviética, catalão de nascimento, por ordem de Josef Stalin. Depois de iniciada a Segunda Guerra Mundial, Trotsky era consciente que estava marcado para morrer. Mercader tinha se infiltrado no círculo íntimo de Trotsky e teve acesso à casa, no bairro de Coyoacán, na Cidade do Mexico, onde estava exilado.

O crime foi, especialmente, brutal: Mercader usou uma picareta para golpear a cabeça de Trotsky. Tinha 60 anos ao morrer. Trotsky tinha nascido na cidade de Ianovka, no sul da Ucrânia, no dia 7 de novembro de 1879, o mesmo dia em que triunfou a revolução de Outubro, no calendário juliano, que ainda vigorava na Rússia.

Mas Trotsky era um cidadão do mundo. Uniu muito jovem sua vida à causa do socialismo. Foi estudar em Odessa, foi preso e desterrado para a Sibéria duas vezes, morou em Londres, Viena, Paris, Berlim, além de São Petersburgo e Moscou, além de exílios em Istambul, Oslo, e no Mexico. Lia e falava ucraniano, russo, francês, alemão e ingles. Era russo e judeu, mas era, sobretudo, um internacionalista.

Há vários tipos diferentes de internacionalismo. O “internacionalismo” do capital sempre foi o imperialismo, ou seja, a legitimação do domínio dos Estados do centro sobre a periferia do mundo. Na esquerda, há, sobretudo três diferentes correntes. A humanitária, a campista e a revolucionária.

O internacionalismo marxista sempre foi uma questão de método na análise, de programa na perspectiva histórica, de política na linha de intervenção, e de organização no compromisso com a Internacional. O movimento socialista se constituiu, a partir da experiência da I Internacional, com a premissa de que a burguesia era uma classe mais heterogênea que o proletariado, e que se articulava, essencialmente, sob plataformas de interesses, irremediavelmente, nacionais.

Os trabalhadores deveriam constituir um movimento internacionalista nas metrópoles que seria solidário com os movimentos nacionalistas das colônias e semi-colônias, porque a hora da revolução social nas metrópoles seria a hora da libertação nacional das nações oprimidas.

Sem a derrota do nazi-fascismo em 1945 é impossível compreender o processo de independência nacional que foi impulsionado na Ásia depois do triunfo da revolução China, Vietnam e Coreia. Sem a revolução chinesa é impossível compreender a independência da Índia.

Foi uma ironia da história que tenha acontecido, mais de uma vez, o inverso deste prognóstico: sem a derrota na Argélia, seria impossível compreender a crise de 1968 em Paris, sem a derrota nas colônias africanas, seria impossível compreender a revolução dos cravos em Lisboa em 1974.

Acontece, porém, que a situação internacional é sempre o resultado de um processo de lutas entre as classes, mas, também, de luta entre Estados. E a luta entre Estados assumiu formas diferentes nos últimos cento e cinqüenta anos. Esgotada a época de expansão e apogeu do capitalismo, sob liderança inglesa, abriu-se uma época histórica de decadência do capitalismo e, ao mesmo tempo, uma etapa política, na primeira metade do século XX, de disputas furiosas entre os impérios pela disputa da liderança no sistema internacional que culminou com consolidação da supremacia econômica e política norte-americana em 1945.

Desde então, os conflitos inter-imperialistas passaram a ser de baixa intensidade, predominando a complementaridade econômica, como entre os EUA e o Japão, e a colaboração política, como entre os EUA e as burguesias da Europa Ocidental, depois do Plano Marshall. Uma conclusão incontornável se impõe: a frente contra-revolucionária mundial esteve mais sólida na segunda metade do século do que na primeira, embora as duas vagas revolucionárias que ameaçaram mais seriamente a sobrevivência do capitalismo tenham sido as que sucederam as duas guerras mundiais.

Ou seja, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, enquanto a política da contra-revolução passou a ser mais “internacionalista”, as direções mais influentes no movimento socialista regrediam para diferentes tipos de nacionalismo. Nos países centrais, a social democracia capitulava às aspirações nacional-imperialistas de suas burguesias, e os partidos comunistas se transformaram em apêndices da diplomacia russa. Nos países dependentes, a imensa maioria da esquerda aceitou ser sócia da aspirações nacionalistas de suas burguesias periféricas.

Este campismo “socialista” parecia ter desmoronado no início da década de 1990. O campismo foi, na maior parte do século XX, uma das mais influentes teorias na esquerda mundial. Influenciou gerações, afirmando que o mundo estava dividido em dois campos: o capitalista e o socialista, supostamente, irreconciliáveis e em luta, sendo este último a retaguarda estratégica das lutas de classes contra o imperialismo, apesar das oscilações da coexistência pacífica.

Algumas poucas vozes marxistas alertaram para as perigosas conseqüências dos critérios campistas, sendo que a tradição associada à elaboração de Leon Trotsky, sem hesitar quanto à importância de defender a URSS e de qualquer Estado periférico diante do imperialismo, se destacou na reivindicação da centralidade do internacionalismo revolucionário. Nem todos os defensismos eram, portanto, campistas. Não obstante, uma insuperável divisão se estabeleceu durante décadas entre as lutas no Ocidente e no Oriente, acabando de enterrar o internacionalismo como um movimento político organizado, tal como tinha existido, por exemplo, diante da revolução espanhola.

Análises inspiradas no marxismo sempre tiveram que enfrentar uma questão metodológica chave. A compreensão da dinâmica política mundial exige que se articulem duas dimensões: por um lado, o estudo das relações de forças na luta de classes na esfera nacional não pode desconhecer, evidentemente, que as classes se posicionam para a luta pelos seus interesses – e, quando em crises revolucionárias, pelo poder – dentro de fronteiras, mas estas relações de forças são fortemente condicionadas pela relação de forças internacional, que pode favorecer um desenlace revolucionário – como depois das duas guerras mundiais – ou torná-lo mais difícil – como a revolução espanhola nos anos trinta.

Mas, por outro lado, a consideração das relações de forças entre as classes não deveria desconhecer, também, que as classes não lutam na arena mundial em um corpo a corpo direto, porque existe a mediação das fronteiras, ou seja, dos Estados, que disputam posições no interior de um sistema mundial hierarquizado, e estes conflitos incidem sobre as relações entre as classes em cada país.

Três exemplos: seria impossível explicar a permanência do regime que nasceu da revolução de Outubro em 1917, sem considerar as seqüelas da I Guerra Mundial e a fragilização do sistema de Estados na Europa: afinal, a Alemanha ansiava por uma paz em separado e a conseguiu. Seria muito difícil, também, explicar a decisão de Mao e da direção do PC da China de levar a guerra contra Chiang Kai Chek em 1949 até ao fim, sem considerar o quadro das relações de forças no sistema internacional de Estados após a entrada do Exército russo em Berlim. Seria, também, impossível compreender a decisão de Fidel Castro – até então, um líder nacionalista – de não aceitar os ultimatos norte-americanos em 1961, sem considerar que a perspectiva de alinhamento com a URSS oferecia um bloco de alianças no sistema internacional de Estados.

Não obstante, tão ou mais verdadeiro, a permanência do regime burocrático na URSS até 1991 – ou seja, a lentidão do processo de restauração capitalista – só pode ser plenamente compreendido, se considerarmos que o triunfo das revoluções do pós-guerra fortaleceu a posição da URSS, retirando-a do isolamento. A vitória das revoluções chinesae cubana dificultou os planos restauracionistas de Kruschev, mas a derrota do imperialismo americano no Vietnam não foi suficiente para bloquear os mesmos planos de Deng Xiao Ping na China, vinte anos depois.

Este desafio teórico do movimento socialista desdobrou-se, no século XX, no que podemos resumir como um dilema entre posições internacionalistas e posições nacionalistas. Eis o dilema: uma análise que equaciona os conflitos entre as classes nos países ou continentes decisivos, ignorando ou diminuindo o lugar e a política dos Estados na situação mundial, será incapaz de explicar as relações de forças entre as classes, porque o posicionamento dos Estados é uma determinação dos contextos políticos, e pecará por unilateralidade, diminuindo a força da contra-revolução.

O caminho inverso seria ainda mais perigoso. Quando se subestimam os conflitos entre as classes em cada sociedade, a análise redundará em avaliações superficiais, porque as lutas de classes subvertem, em maior ou menor medida, o posicionamento dos Estados, e pecará por unilateralidade, exagerando a força da contra-revolução.

Esse segundo caminho foi percorrido por boa parte da esquerda mundial no século XX, sobretudo, aquela que considerou que o destino da causa socialista estava indissoluvelmente associado ao futuro do governo da URSS e seus aliados. Este “nacionalismo da URSS” ou campismo socialista não deve ser confundido com o internacionalismo da revolução mundial.

O marxismo sempre se distinguiu por considerar que os antagonismos de classe seriam os conflitos decisivos no mundo contemporâneo, embora não fossem, evidentemente, os únicos. Reconheceu que as lutas de classes, mesmo quando crises revolucionárias se precipitam e a luta pelo poder ganha atualidade, se desenvolvem no limite das fronteiras nacionais.

O marxismo, no entanto, não deixou de sublinhar, também, que, se a luta entre as classes era um combate que se iniciava dentro de fronteiras, se decidiria na arena mundial. Toda revolução socialista nacional, mais cedo ou mais tarde, teria que medir forças com a contra-revolução internacional.

Essa perspectiva histórica sempre pesou de forma significativa nos cálculos políticos das organizações que, em cada país, tinham que avaliar não somente se havia condições de lutar pelo poder, mas se havia condições de preservar o poder. O internacionalismo marxista se fundamentava, portanto, em uma necessidade histórica da época de transição ao socialismo, a primeira que teria que enfrentar uma contrarevolução, também, mundial.

Defender a vigência do legado de Trotsky é levantar a bandeira do internacionalismo.

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