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BRASIL

O caso do trabalhador que vendia sonhos

Jean Montezuma, de Salvador (BA)
Reprodução

Quarta-feira, 14 de agosto de 2019. Eram pouco mais de seis da tarde e André estava na Estação Pirajá, segundo maior terminal de ônibus da capital baiana. O que seria mais um dia normal na luta deste vendedor de sonhos por conseguir o seu sustento, acabou interrompido pela ação truculenta dos Guardas da CCR. Com “ordens de cima”, os ditos agentes de segurança disseram ter carta branca para promover a violência. O resultado do uso abusivo e injustificado de força foi um trabalhador agredido, uma dignidade violentada e sonhos espalhados pelo chão.

“Eu vendo sonhos pra conseguir meu pão. Eles não tiveram coração comigo”

Dois dias depois, em entrevista a um telejornal local, André “do Sonho” (como é conhecido na Estação Pirajá) expôs de um jeito simples, porém sensível e humanamente vigoroso, sua visão sobre a agressão que havia sofrido: “Eu vendo sonhos pra conseguir meu pão. Eles não tiveram coração comigo”.

Segundo dados apresentados pela Associação de Trabalhadores Autônomos, somente esse ano outras 150 ocorrências deste tipo se deram nas estações de metrô e terminais administrados pela companhia CCR. A reincidência desses casos tem rompido a barreira da invisibilidade e chamado atenção até da grande imprensa que, por diversas vezes, tem noticiado as ações que quase sempre terminam em trabalhadores agredidos e mercadorias destruídas.

Nessa mesma semana, no último dia 15, o IBGE divulgou os dados da PNAD que apontaram a Bahia como Estado campeão nacional no ranking do desemprego, com uma taxa 17,3% no último trimestre. Não é por coincidência que as ruas do centro da capital estão cada vez mais abarrotadas de homens e mulheres que se viram como podem, que tentam de tudo, que vendem de tudo, para conseguir, assim como André, o seu pão. O trabalho ambulante é precário, descoberto de direitos e garantias legais. Numa capital como Salvador ele também tem cor, pois são negros os rostos dos homens e mulheres que se apertam nas ruas e estações da nossa cidade, expostos ao sol, a chuva e a violência institucional praticada pela polícia, pela Guarda Municipal e agora pelos agentes da CCR-Metrô.

Enquanto isso, o presidente da República, Jair Bolsonaro, e o presidente do Congresso, Rodrigo Maia, dedicam-se com afinco para amenizar o sofrimento dos empresários. Aliás, antes mesmo de colocar no peito a faixa presidencial, Bolsonaro afirmou em dezembro passado que “hoje em dia é muito difícil ser patrão no Brasil”. Para amenizar o sofrimento dos senhores engravatados, nessa mesma semana em que André teve sua guia de sonhos lançados no chão, Bolsonaro e Maia conseguiram juntos aprovar a MP da liberdade econômica. Liberdade para os sofredores de colarinho branco nos obrigarem a trabalhar aos domingos e feriados sem pagar hora extra, liberdade para flexibilizar totalmente o cumprimento regular da jornada de trabalho, liberdade para os empresários fazerem as relações trabalhistas retrocederem um século.

É tanta liberdade para os empresários e tanto açoite nas costas dos Andrés, Josés e Marias, que mais parece que o Brasil, último país do mundo a abolir a escravidão, está trilhando o caminho para se tornar o primeiro a reintroduzi-la. Retomando as palavras do nosso personagem da vida real, do Brasil real, André “do Sonho”, eles não tem coração com a gente. Não há espaço para coração num sistema regido por leis imersas numa lógica que tem uma sede insaciável por sugar até a última gota de nosso suor, de nossa dignidade e nossa vida.