O JOGO DA CIVILIZAÇÃO: A Sociedade de Vigilantes e seus Governantes Maníacos numa pedagogia histórica

Juan Michel Montezuma, de Salvador, BA
Anthony Palumbo

Nos primeiros anos do ginásio, quando os nossos dedos desinteressados, muitas vezes obrigados por professores e pais, passam pelas páginas do livro de História e encontram as palavras “controle” e “poder”, elas não nos dizem muita coisa. De fato, essas palavras são apenas algumas dentre muitas,  utilizadas para descrever os inúmeros movimentos políticos no ciclo de monarquias, repúblicas e impérios que marcam o ritmo da carnificina chamada civilização. Certamente, num mundo de desigualdades naturalizadas na mentalidade coletiva tal como o nosso, é apenas quando nos tornamos ativos no complicadíssimo jogo social da cidadania e seu exercício que começamos a compreender como “controle” e o “poder” encontram o seu caminho na realização desse épico fascinante, e terrível, chamado civilização. 

Partindo dessas premissas, talvez possamos, com a devida simplicidade, lançar luz sobre as pulsões políticas, cujas origens são apenas aparentemente obscuras,  que configuram os movimentos sócio históricos de maneiras ironicamente, para muitos intelectuais de gabinete, inesperadas. Poderia ser, se levantássemos nossos olhos para os sistemas políticos contemporâneos, usando a mão de leve para expulsar os maniqueísmos de nossas vistas, poderíamos nos remeter a simplicidade das lógicas abandonadas lá no ginásio. E munidos disso, considerássemos que a óbvia amplitude da legitimação de governos maníacos nos tempos atuais está fundamentada numa forma de “poder” e “controle” do que os próprios maníacos, representantes elegidos pelo povo, com seus discursos racistas, homofóbicos, ou  abertamente fascistas. Imitando a simplicidade das crianças, a quem ensinamos que a civilização trata-se de longo desfile das monarquias, repúblicas e dos impérios, podemos segurar o livro de História, curiosamente,perguntando: em que estágio desse desfile estamos? Ou seja, de qual sociedade faz parte esse espetáculo? E, mais importante, onde as palavras “poder” e “controle”, tão repetidas em cada capítulo da História, se encaixam aqui?

Se colocarmos um pouco mais de atenção neste exercício infantil que é vasculhar o livro didático da História, quem sabe possamos reconhecer uma função política tão simples quanto as linhas retas há muito contempladas nos quadros brancos do ensino fundamental. Representações básicas que nos denunciam a evolução das formas de controle na ascensão e queda das aguerridas organizações políticas através da história humana. Enxergássemos assim, a evolução da vigilância sob os indivíduos, sem cair no erro de pensar que nas origens desse processo o mundo era um lugar melhor. Notássemos, com a passar dos capítulos, essa pulsão política desde os laços que romperam a servidão dos nossos colonizadores na Idade Média e Moderna até as revoluções que  lançaram ao chão as cabeças e estados dinásticos da nobreza européia na Idade Contemporânea. Certamente, talvez, iríamos dizer que esse fenômeno prosseguiu em sua função vigilante e atomizadora das identidades humanas até a nossa era: o mundo da barbárie, pós-industrial, pós-guerras mundiais (?) e pós-revoluções derrotadas. Com certeza, o livro, segurado com força, tremesse em nossas mãos e nós, propelidos pela incredulidade digna das crianças ao aprender, diríamos tal como os filósofos presentistas há mais de quarenta anos, na época que Eric Hobsbawn chamou de “Era Dos Extremos”:

Quem irá governar esse tipo de mundo? Uma sociedade assim… onde o poder está espraiado na vigilância dos corpos, seus atos,  dos discursos, suas palavras e até mesmo os seus possíveis significados? Um mundo de indivíduos vigilantes que afirmam sua força, cada vez mais visceralmente, atacando  aqueles que podiam ser seus pares… tudo isso apenas para acabarem entregando sua força de vontade para algum grande líder, salvador e, acima de tudo, pai? Sim, apenas maníacos, piores do que aqueles no tempo dos senhores feudais, dos reis absolutos, ou ditadores, iriam ser legítimos governantes num lugar assim.

Acreditando num grande talvez, se nos aventurarmos por essa pedagogia histórica, fecharemos livro didático de História de maneira tão lúcida, e aliviada, quanto aquela dos pequenos. Riríamos da loucura que lemos, da loucura em que nos meteram, reconfortados por saber finalmente o que combatemos, mesmo isso  sendo nós mesmos. E como quem brincasse, propor íamos perguntar uns aos outros:

– Como é que nos superamos?

 

 

 

*Juan Michel Montezuma é Professor de História na Educação Básica, atuante no setor privado e voluntário no ensino de História Moderna e Filosofia no Projeto Social Cidadão Pensante em Pirajá, periferia de Salvador.