“Sexta-feira 13” em dose dupla: uma temporada no inferno dantesco pós-golpe 

Paulo César de Carvalho

Paulo César de Carvalho, o Paulinho, é bacharel em Direito (USP), mestre em Linguística e Semiótica (USP), professor de Língua Portuguesa (lecionou na ECA-USP) e autor de materiais didáticos de Gramática, Redação e Interpretação de Texto. Publicou seis livros de poesia, constando em antologias literárias no Brasil e em Portugal (como em É agora como nunca, da Companhia das Letras, organizada por Adriana Calcanhoto). Compositor, tem canções gravadas por diversos músicos da cena contemporânea. Foi militante da organização trotskista Convergência Socialista.

PARTE 1 – The Number of the Beast: Jason ataca novamente

A Portaria n⁰ 666, de 25 de julho de 2019, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, foi publicada no Diário Oficial da União na manhã do dia seguinte. Fosse outro contexto, a assinatura do ministro e o teor do texto, passariam despercebidas as insólitas coincidências numéricas da (des)medida. A começar pelo emblemático “666”, a trinca temida pela superstição religiosa como marca do demônio, a tríade amaldiçoada pela crença mística como sinal de desgraça.

Não fosse tão quente a temperatura política, nenhum numerólogo cristão de centro-esquerda certamente haveria de ler nos três dígitos da portaria o aviso assinado em brasa pelo diabo paranaense. Não estivesse a Constituição pegando fogo, nenhum meteorologista pseudo-socialista obviamente haveria de admitir a previsão equivocada, não podendo negar a evidência catastrófica do Estado de Direito ardendo em chamas reacionárias, sob o calor infernal de 666 graus autoritários na escala “Bolsonazi”.

Em “condições normais de temperatura e pressão” institucionais, num quadro de mínima estabilidade democrática (sempre relativa no capitalismo) e de básico respeito às garantias e liberdades individuais e coletivas (nunca absoluto na democracia burguesa), seria improvável – para não dizer absurdo – que algum petista cinéfilo pudesse ler na data de publicação da portaria o anúncio da reprise do filme de terror “Sexta-Feira 13”, justificando a visão premonitória com o argumento de que a assustadora medida foi divulgada no dia 26, que não à toa caiu na sexta-feira, que não por acaso é o dobro de 13, que sintomaticamente é o número do PT.

Não fosse tão insólita a narrativa política, pareceria ainda mais insólita qualquer analogia entre o Brasil real de Bolsonazi e a cidade ficcional de Crystal Lake. Melhor dizendo, para não dizer que não poderia ser pior, soaria descabida qualquer comparação se os assassinatos em série de mulheres, negros, índios e transexuais pudessem mesmo dar a impressão – a sangue, suor e lágrimas – de que Jason realmente circula impune de verde e amarelo “CBF” nos becos, nas vielas, nas ruas, nas avenidas tropicais.

Sob o signo tenebroso do “666” deste filme de terror da vida real, não causaria mais estranhamento, pois, assistir a uma procissão de metaleiros devotos de Iron Maiden entoando com agudas vozes góticas – em coro medieval – a macabra profecia numerológica dos satânicos trechos de “The Number of the Beast”: “Woe to you, oh Earth and sea, for the Devil sends the Beast with wrath” (“Ai de você, oh terra e mar, pois o Diabo envia a Besta com ira”)/ “Let him who hath understanding reckon the number of the Beast” (“Aquele que tem entendimento, calcule o número da Besta”)/ “For it is a human number, its number is six hundred and sixty six” (“Pois é um número humano, seu número é seiscentos e sessenta e seis”).

Nesta altura ofuscante, mesmo de ouvidos fechados, é como se não desse mais nem para a classe média cega negar que não viu para não crer: “What did I see can I believe that what I saw” (“O que eu vi posso acreditar que o que eu vi”)/ “Was all this for real or some kind of hell” (“Foi tudo isso de verdade ou algum tipo de inferno”). Nesta escuridão ensurdecedora, é como se não desse mais nem para pequeno-burguês surdo negar que não ouviu para descrer: “That night was real and not just fantasy” (“Aquela noite foi real e não apenas fantasia”).

De norte a sul, de leste a oeste, de moto ou de carro, de bicicleta ou a pé, enfim, não parece mais alucinação reconhecer o espectro de Jason perseguindo sádico qualquer um que ouse usar roupas vermelhas. Por mais absurdo que pareça, um metaleiro petista seria acusado de sofrer de síndrome persecutória se, depois de ser brutalmente espancado, fizesse o retrato falado do suspeito “serial killer” à imagem e semelhança de um prototípico bolsomínion.

Mesmo repetindo convicto o verso sangrento de “The Number of the Beast”, e não tendo nenhuma dúvida de qual é “The evil face that twists my mind and brings me to despair”, o espancado seria transformado em réu ao revelar “o rosto maligno que torce minha mente e me leva ao desespero”. Qualquer delegado devoto de “Messias”, evidentemente, desdenharia sarcástico do depoimento, argumentando não crer na “disparatada” história por não ver sequer uma mancha vermelha na camisa vermelha do “esquerdopata”.

Em coro com o chefe chifrudo, o investigador e o escrivão – também fãs de Jair e de Jason – certamente dariam uma obscena risada de desdém, endossando a covarde ridicularização da vítima indefesa. Desautorizando a “delirante” denúncia do “inocente” algoz, sob a batuta do tridente do magistrado de rabo, a legião de replicantes agentes repressivos do infernal Estado burguês autoritário bradaria em uníssono, com pontiagudos golpes paródicos de extrema direita nos tímpanos vermelhos, este perverso verso de “The Number of the Beast”: “I have the power to make my evil take its course” (“Eu tenho o poder de fazer o meu mal seguir seu curso”).

Enquanto isso, sob a trágica trilha do heavy revival do disco de chumbo riscado tocando ao contrário no repeat desta diabólica jukebox retrô, um psicopata dançaria na chuva ácida com a foto do torturador Ustra no peito protegido com colete à prova de balas e o número 17 nas costas quentes, e com a máscara imoral de Moro na cara de pau e a mórbida marca fascista do Bozo na testa de ferro.

PARTE 2 – “Percam as esperanças vocês que entraram”: cuidado com os “cães de aluguel”

Virando o disco e trocando de filme, essas imagens trazem à memória o clássico “Laranja Mecânica”, romance distópico de Anthony Burgess transposto para as telas por Stanley Kubrick em 1971 (para quem aprecie coincidências numerológicas, o “17” e o “171” são reveladores). Inevitável não recordar a cena em que Alex DeLarge e sua milícia de “drugues” roubam um carro e invadem a casa do escritor F. Alexander: o cruel chefe da escória, depois de espancá-lo até quase a morte, cantarola calmamente “Singin’ in the Rain” violentando a sua esposa. O que mais assusta é que toda a sequência de ações bárbaras ocorreu numa atmosfera de absoluta naturalidade, sem que os desprezíveis sociopatas esboçassem o menor sinal de pesar, como psicopatas sem princípios éticos nem julgamento moral.

Para não dizer que a ficção não imita a realidade, enfim, os “drugues” agiram exatamente como os brutamontes correligionários da besta Jair, que marcaram uma suástica à faca nas costas de uma jovem petista durante as disputas eleitorais de 2018. Aliás, não foi a própria besta – ainda parlamentar – quem vociferou a uma deputada petista que ela “não merecia nem ser estuprada”? Não foi o próprio diabo – ainda deputado – quem louvou o diabólico torturador Ustra, honrando sua nefasta memória com o macabro epíteto de “o terror de Dilma Rousseff”? Não foi o mesmo demo – já com a faixa presidencial – quem abriu a porteira, liberando geral a “portaria” (para não perder o troca-trocadilho “comercial”) para que “fique à vontade” o turista “com a arma na mão” (e o dedo no trocadilho) que “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher”?

Frente a esses absurdos, considerando o conjunto da obra – por tudo o que se leu, viu e ouviu – seria fantasiar demais acreditar que foram membros da corja do submundo, com um carro roubado, que perseguiram e vararam de balas o veículo oficial em que a vereadora do PSOL Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram friamente assassinados? Neste bizarro remake de “Laranja Mecânica”, alguém diria que seria realmente um delírio distópico imaginar a contratação de Alex DeLarge e seus milicianos “drugues” como acéfalos “Cérberos” a serviço sujo de Boçalnazi e sua gangue, interpretando o sórdido papel infernal de patrióticos guardiões demoníacos da “Portaria 666”, para expulsar não só do país, mas sobretudo da vida, “hereges” comunistas e “bruxas” vermelhas?

Evidentemente, seria fantasiar demais acreditar que os facínoras tupiniquins estivessem cantando “Singin’ in the Rain” enquanto descarregavam as armas e a raiva na cabeça de uma mulher, de uma negra, de uma favelada, de uma lésbica, de uma ativista dos direitos humanos, de uma socialista. Obviamente, se a trama do assassinato tivesse sido arquitetada numa descontraída mesa de bar pelo bando de “Cães de Aluguel” de Quentin Tarantino, a crua realidade seria outro nefasto filme, e não seria fantasiar demais que os bandidos misóginos caíssem de boca suja e metessem a língua no hit pop “Like a Virgin”, violentando verbalmente Madonna num amoral bate-papo escroto de macho de boteco, coçando o saco e falando sobre o “falo” antes de cometer (metendo o trocadilho “do caralho” no meio) os crimes brutais.

Quem assistiu à violenta película, recorda que os oito bandidos vestiam ternos de cores distintas, justificando seus codinomes. Tarantino no papel de “Mr. Brown”, foi quem fez o deplorável comentário machista explicando a canção aos comparsas: “É sobre essa garota que é uma verdadeira máquina de trepar. De manhã, de dia, de noite, de tarde… É pinto, pinto, pinto, pinto”. Isso traz à memória um vídeo do misógino presidente elogiando sua esposa e dizendo a um militar, sentado ao seu lado, que até mereceria um jantar quando chegasse em casa, disparando este escroto trocadilho: “Não é isso que você está pensando. Aliás, você está na ativa, major?”. Sintomaticamente – não se esqueça – o milico com pinico na cabeça é capitão da reserva, o que significa que ele mesmo não está na ativa (em sentido literal…).

Por incrível que pareça, enfim, essa não foi uma cena de “Cães de Aluguel”: se a bizarra história fosse projetada na tela grande, Bolsoasno certamente estaria representando o papel asqueroso de “Mr. Yellow-Green”. A propósito, lembrando que um dos oito criminosos tinha o apelido de “Mr. Orange”, e que “laranjas” são importantes coadjuvantes do governo que saqueia o país, inevitável não pensar que o nome verdadeiro desta personagem cítrica é Queiroz, não? Não dá para não lembrar também, fazendo justiça (com as próprias mãos – para não perder o trocadilho), do diabólico “Mr. Blonde”, papel que poderia ser interpretado “in memoriam” macabra pelo torturador Ustra. Na ficção, é antológica a cena em que o frio bandido liga o rádio e faz uma dança satânica com uma navalha na mão diante da vítima amarrada, decepando a sua orelha direita ao som de “Stuck in the Middle With You”, da banda Stealers Wheel (ironicamente, em versão brasileira, o nome do grupo é “Roda de Ladrões”; com legenda em português, o título da canção é “Preso no Meio Com Você”).

Como a realidade é a matéria-prima da ficção, quem atravessou a “Portaria 666” do DOI-CODI e sobreviveu para contar história, sentiu na carne e entendeu com os ossos que Ustra daria inveja a “Mr. Blonde” (e a Jason e a Alex DeLarge também, que se faça justiça!). Uma das sobreviventes do coronel serial-killer da ditadura é Maria Amélia Teles, torturada na cadeira de dragão enquanto seu companheiro César Teles era açoitado no pau-de-arara. Com requintes de perversidade, o “terror de Dilma Rousseff” – o “herói” que estampa as camisetas dos “drugues” bolsonazis – não se fez de rogado: levou os dois filhos do casal para verem aterrorizados os pais espancados na tenebrosa sucursal do inferno. O dramático depoimento de Amelinha Teles – que não foi personagem de “Sexta-Feira 13”, “Laranja Mecânica” ou “Cães de Aluguel” – nunca esteve em cartaz nos cinemas, porque certamente as imagens seriam muito assustador para o grande público.

De fato, seria necessário ter nervos de ferro e estômago de aço para assistir sem passar mal, contorcendo-se na poltrona, à indigesta cena das crianças desesperadas diante do espectro da mãe: vomitada, urinada e coberta de hematomas como o pai. Quem é feito de carne e osso, tem um coração batendo do lado esquerdo do peito e mínima consciência da fragilidade da vida, evidentemente não precisaria de legenda para compreender o quadro de terror descrito por esta mulher franzina e de baixa estatura, mas de admirável força sobre-humana: “Minha filha perguntava: ‘mãe, por que você ficou azul e o pai verde?’ Meu marido entrou em estado de coma e quando saiu estava esverdeado. E eu estava toda roxa, cheia de hematomas e ela viu aquela cor roxa como azul. Meu filho até hoje lembra do momento em que eu falava ‘Edson’ e ele olhava para mim e não sabia que eu era a mãe dele. Estava desfigurada”.

Voltando à ficção, para acalmar um pouco as mentes aflitas com tanta história de terror, em “Cães de Aluguel” há uma cena em que o sádico Mr. Blonde pergunta à orelha direita da vítima ainda sangrando em sua mão: “Ei, o que está acontecendo? Você pode me ouvir?”. No Brasil, a Coordenação de Classificação Indicativa (Cocind) do Departamento de Políticas de Justiça (DPJUS), responsável pela Classificação Indicativa (Classind) “de filmes, aplicativos, jogos eletrônicos e programas de televisão” no Brasil, não permitiria, por exemplo, que uma criança ou adolescente assistissem a esse filme. Para ser mais exato, a todas as narrativas do gênero, já que o órgão prescreve como “Não Recomendado Para Menores de 18 Anos” quaisquer obras que contenham “violência de forte impacto; elogio ou apologia da violência; crueldade; crimes de ódio”.

Bolsonazi faz apologia da ditadura e elogio da tortura: segurou a mãozinha inocente de várias crianças ensinando-as a fazer “arminha”. Para o demoníaco fascista, o sanguinário gângster Ustra é “herói nacional”: os drugues bolsomínions batem palmas para o carrasco do DOI-CODI. A ordem para metralhar “petralhas”, exibida em rede nacional, com crianças na sala, não é crime de ódio? Aliás, como a evanjegue Damares, que defendeu a proibição da animação “Frozen” por supostamente fazer apologia do “lesbianismo”, não disse nada sobre as crianças de 4 e 5 anos que assistiram à mãe vomitada, urinada e cheia de hematomas no porão do Paraíso (na Rua Tutóia, em São Paulo)? Como diziam os agentes satânicos aos que atravessavam a Portaria 666 do DOI-CODI: “Você está na Oban (Operação Bandeirante). Sabe o que é a Oban? É o Paraíso no inferno. Fica no Paraíso, mas aqui é o inferno”.

Nada disso, infelizmente, é ficção. Na “Porta do Inferno” de Dante estava escrito: “Percam as esperanças vocês que entraram”. Será que dá para ouvir bem os versos de “The Number of the Beast” com a orelha decepada por Mr. Blonde? “Aquele que tem entendimento, calcule o número da Besta/ Pois é um número humano, seu número é seiscentos e sessenta e seis”.