Quando meu filho era pequeno, foi alimentado com o melhor da literatura infantil disponível em português – uma das vantagens de ter nascido com mãe e avó especialistas no tema. Enquanto lia para ele aqueles livros, eu me perguntava como ele processava os contos de fadas, já que tinha muito mais familiaridade com paródias e reinterpretações do que com os originais.
Mal comparando, penso que está acontecendo algo semelhante com a ideia de “lugar de fala”. Quando a preocupação com lugar de fala ganhou corpo, nas últimas décadas do século passado, ela se apresentava como uma crítica ao discurso – científico, político, artístico – que, ignorando sua própria particularidade e seu consequente reducionismo analítico, se acredita capaz de englobar a universalidade. Afirmava, assim, que todo discurso é socialmente situado e que, portanto, entender de onde ele parte é sempre importante para avaliá-lo.
Levar em conta a perspectiva social não é o mesmo que rechaçar de antemão como impróprios ou inaceitáveis discursos que porventura não partam do lugar “correto”. É entender que as marcas da particularidade sempre estarão presentes, para o bem ou para o mal.
Hoje, “lugar de fala“ é usado nas disputas políticas sem lembrança desse pano de fundo. Com isso, muitas vezes seu sentido parece invertido: parece que se trata de denunciar a universalidade falsa de antes para colocar em seu lugar uma nova universalidade, autêntica, “subalterna“. Perdemos, nessa mudança, o que havia de mais radical, que era a denúncia da própria universalidade abstrata.
Nos combates políticos, “lugar de fala“ surge casado com a percepção extrema de um privilégio epistêmico dos dominados. Como se a posição de dominado promovesse acesso garantido e imediato a uma compreensão fiel da realidade. Joga-se no lixo tudo o que produziu sobre ideologia, dominação simbólica, produção da doxa, imposição de representações do mundo social pelos grupos dotados de maiores recursos.
Joga-se no lixo igualmente a necessidade da teoria, do estudo, do debate. O acesso à verdade depende da posição social e de nada mais.
É também como se um olhar externo não pudesse dizer nada sobre nossa situação – confundindo o esforço de produção de conhecimento com a liderança de movimentos políticos que, essa sim, deve permanecer coletivamente nas mãos dos integrantes daquele grupo social.
Como consequência, em vez de ser um alerta para que todos os discursos sejam avaliados levando em conta o local social de onde partem, o “lugar de fala“ serve para se defender a produção de espaços isolados, em que a posição social conta como único critério de validade, independente do que se diz.
Se, na sua origem, a ideia de lugar de fala podia ser entendida como um chamamento à abertura do debate para a integração de múltiplas vozes silenciadas, agora o “lugar de fala“ muitas vezes serve como ferramenta de censura e exclusão.
Da maneira como eu a entendo, a velha discussão sobre lugar de fala, apesar de toda a sua denúncia da universalidade ilusória, não implica abandonar a busca de discursos capazes de compreender o mundo de forma mais ampla e plural. Saber que a universalidade nunca será plenamente alcançada não significa abraçar um particularismo míope e auto-indulgente. Pelo contrário, pode ser um meio de nos tornar mais exigentes na busca nunca concluída de uma visão para além dos particularismos.
No momento em que o retrocesso se alastra pelo mundo afora, prejudicando tantos grupos de pessoas em tantas dimensões, e em que é tarefa urgente construir uma resistência também pluridimensional, o particularismo estreito e estridente dessa percepção rasa do “lugar de fala” torna-se, sem dúvida, um aliado da permanência da dominação.
[Este texto foi publicado previamente no Facebook. Agradeço a Felipe Demier pelos comentários.]
*Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política na UnB.
Comentários