Faz mais de dez anos que não possuo uma TV. Neste mês de julho, contudo, tive acesso a uma. Passei um tempo na casa dos meus pais, que possuem uma das grandes graças ao emprego precarizado em que trabalham e ao parco acesso a bens de consumo possibilitados pelos governos petistas. Não têm acesso à saúde e educação de qualidade, mas têm TV à cabo na sala e um carro de mais de dez anos financiado na garagem. Pude, então, assistir com alguma frequência a programação da Globo News e de outros telejornais da chamada “Grande Mídia”.
Até as pedras do calçamento estão vendo a impressionante campanha que essa mídia vem fazendo pró reforma da previdência. Na sala de estar apertada e abafada pelo calor de Goiás da casa dos meus pais, vejo engravatados defendendo com todas as palavras que o hoje e o amanhã devem ser um ontem com nome diferente.
Entendo agora as amigas e amigos que dizem que, caso essa mudança drástica não seja aprovada, uma série de jornalistas entrarão em estado de coma. Lembrei dessa piada enquanto estava com a minha avó na fila do banco. Era dia de receber a aposentadoria. Com o salário mínimo que recebe todo o mês, ela precisa arcar com farmácia, mercado, água, energia. Apesar da expropriação, todo início de mês ela costuma estar animada, pois é dia de comprar laranjas, fruta que adora. Lembro da piada sobre os jornalistas liberais e dou um riso nervoso. O ódio cresce no peito e queima a garganta.
Segundo o discurso dominante, com as regras atuais o rombo da previdência previsto para este ano é de R$ 309 bilhões. No entanto, essa narrativa, além de superlativizar o déficit, esconde que a seguridade social é historicamente superavitária. A Previdência é só uma das partes do tripé da Seguridade Social que, nas regras atuais, compreende ainda a Saúde e a Assistência Social. Tudo o que é arrecadado para a Seguridade (via INSS, Confis, PIS, Pasep) é, assim, destinado para essas três áreas. Quando se deduz dessa receita todos os gastos, ao invés de surgir um rombo, o que acontece é que sobra dinheiro. É o chamado superávit. Os dados abaixo da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) dão uma dimensão da série histórica enorme de superávit.
Como se pode ver, a média de superávit é de R$ 50 bilhões ao ano. O ano de 2012 registrou o recorde de R$ 83 bilhões. Em 2016 e 2017 tiveram resultado deficitário, mas que foi completamente inchado pelo governo. Com base no relatório da ANFIP, os déficits desses anos são cinco vezes menores do que os apresentados oficialmente pelo governo. A tabela abaixo evidencia com relação ao ano de 2017.
Esses déficits possuem uma série de fatores. Por conta do atual modelo de repartição, é primordial uma economia saudável para a seguridade social se manter sustentável, pois tudo que é arrecadado serve para financiar as trabalhadoras e trabalhadores que já estão aposentados. No entanto, não seria necessária uma lupa para constatar que o país passa por um período de crise econômica. Os números apontam mais de 13 milhões de desempregados e quase 40 milhões em situação informal que não podem (ou não têm condições) contribuir para o INSS, além de uma grande parcela do setor produtivo em dívida com a previdência.
Enquanto acompanho a minha avó ao médico, aproveito as horas esperando na fila do hospital para ler o relatório da CPI da Previdência concluído e apresentando em 2017 à Câmara dos Deputados, feito a partir de dados da Controladoria Geral da União (CGU). Desde o fim do atendimento oferecido pelos médicos cubanos, as filas se alongaram muito e o atendimento decaiu em qualidade. A fila é tão grande que atravessa a porta do hospital e segue pela calçada. Os mais fracos precisam esperar sentados no chão. “Antes não demorava tanto. A doutora de antes falava enrolado, mas era bem atenciosa. O de hoje nem me olha”, lamenta a minha avó. O relatório da CPI demonstrou que as empresas privadas sonegadoras devem cerca de R$ 450 bilhões à Previdência.
A reforma trabalhista, que se combina com a da previdência, contribui para esse estado de crise, flexibilizando as relações de trabalho – o que, por sua vez, prejudica ainda mais a arrecadação da seguridade social. Neste sentido, assim que a economia voltar a crescer, a seguridade social voltará a ser superavitária.
Esse dinheiro que sobra, contudo, ao invés de ser destinado para maiores investimentos em Previdência, Saúde e Assistência Social, é desviado para o Orçamento Fiscal – em especial, para pagamento dos juros e amortizações da dívida pública. O mecanismo utilizado hoje para desviar o dinheiro da Seguridade Social é o chamado DRU (Desvinculação de Receitas da União), que foi adotado pelos governos de FHC, petistas, Temer e que continua sendo utilizado pelo governo Bolsonaro. Com a reforma da previdência esse mecanismo não será mais necessário, pois o montante que sobrará será por emenda constitucional desviado.
Antes, a DRU também era utilizada para desviar recursos de áreas como educação e segurança. Grande parte do montante arrecadado via impostos já não precisa mais da DRU para serem redirecionado para pagamento dos juros e amortização da dívida por conta da aprovação da PEC 55, hoje emenda 95, que estabeleceu um teto por duas décadas para os investimentos em educação, segurança. Essa emenda desvinculou todos os recursos que ultrapassarem o teto e que, historicamente, seriam destinados à educação e seguridade social, ou, então, canalizados via DRU para a dívida. Agora todos esses recursos cativos já são, automaticamente, redirecionados via emenda constitucional.
Os próximos governos, incluindo o atual de Bolsonaro, terão dificuldade para implementar o seu projeto, agora que existe um teto para os gastos federais. Teoricamente, na democracia a concretização do conjunto de interesses mediados pelas demandas dos setores sociais populares organizados, representados pelo executivo e demais forças políticas no congresso e senado, se dá de diferentes maneiras e, primordialmente, se expressa no orçamento do governo federal que estrutura e financia um programa político-econômico de governo. No instante em que o governo Temer estabeleceu um teto no orçamento federal, todo e qualquer projeto futuro não poderá ir além do que ocupar o espaço do que foi previamente estabelecido. Assim, independentemente de quem vença as próximas eleições, a correlação de forças atual se perpetuará enquanto estiver vigente a emenda 95. Isso substitui o nosso modelo de baixo teor democrático por outra coisa que pode ser chamado de muitos nomes, mas entre essas denominações o verbete “democracia” não faz parte.
A imagem abaixo dá uma dimensão do quanto o nosso dinheiro é deliberadamente desviado para encher os bolsos do sistema financeiro.
Isto mesmo. No ano passado mais de R$ 1 trilhão foi transferido para pagamento de juros e amortizações. Não obstante terem reduzido drasticamente a destinação de recursos para áreas básicas como educação e segurança, agora querem retirar dinheiro do montante da Seguridade Social, reduzindo o valor destinado para Previdência, Saúde e Assistência Social. Em outras palavras, isso significa que, para muitas brasileiras e brasileiros, incluindo os meus pais, a aposentadoria será o caixão. Ou, quem conseguir se aposentar, receberá uma miséria. Tudo para engordar a parcela amarela da pizza acima.
“Mas, afinal, se deve tem que pagar”, questionou-me o meu pai em relação a dívida pública. É um homem digno e honesto que honra as suas dívidas. Numa certa tarde, quando a minha mãe estava prestes a ter o meu irmão, em trabalho de parto, o meu pai a deixou no hospital com uma tia porque precisava devolver uma carroça (carro puxado por animais, comumente utilizado nas regiões pobres do país) que ele pegou emprestado e que prometeu devolver naquela tarde. Ele é assim. Uma pessoa de palavra, como dizem os velhos. O questionamento faz sentido. Se estamos devemos, temos que pagar, certo?
Mas, tudo indica que essa tal de “dívida pública” se trata de um grande esquema de corrupção institucionalizado, porque não existe contrapartida real. O ideal seria realizarmos uma auditoria para evidenciar isso. O único país que fez a auditoria da sua dívida foi o Equador. O processo foi coordenado por uma brasileira, a auditora da receita federal Maria Lúcia Fattorelli. A auditoria evidenciou que 70% da dívida do país equatoriano se tratava de fraude.
Essa dívida metafísica que paira sobre o orçamento do país e sobre as nossas vidas se trata, neste sentido, simplesmente de um mecanismo adotado para desviar o nosso dinheiro, recurso público, para o sistema financeiro. O que poderia ser usado para construir um país melhor para se viver é, assim, destinado a quem tem muito: banqueiros, investidores de fundo hedye, e outros tantos que lucram com o sangue e com as lágrimas de nós – os de baixo.
O que o Estado brasileiro, apoiado pela grande mídia, está fazendo com a reforma da previdência, conjuntamente com a reforma trabalhista e a emenda 95 (teto de gastos), é colocar os interesses específicos da grande burguesia como se fossem um projeto da população. Atuam como remediadores da crise do sistema capitalista, socializando com o conjunto da classe trabalhadora as perdas sofridas pelo grande capital. Ou seja, estamos pagando o pato por uma dívida que não é nossa e, pior, que nem existe.
A reforma da previdência é, assim, um crime de lesa-pátria. É um atentado contra a população brasileira. Por isso, quando se diz que “o Brasil precisa” de uma reforma na previdência, há de se questionar o que se entende aqui por “Brasil” e o que se entende por “precisar”. Quando a defesa desse retrocesso se traveste da pergunta “qual é a alternativa”, há que se questionar alternativa a quê, para quem e segundo qual modelo.
Sempre que o sol já está se pondo a minha mãe chega do trabalho, doze horas depois que saiu de casa. O dia foi longo e o calor é horrível em Goiás, mesmo no inverno. A poeira toma conta de tudo. Com a reforma trabalhista, ela e o meu pai, conjuntamente com toda trabalhadora e todo trabalhador canavieiro, tiveram uma redução drástica no salário. A canetada desobrigou os patrões de pagarem as horas in intireres, termo estranho para denominar o tempo em que essa gente fica no translado para o campo, cerca de 2h a 3h em um ônibus empoeirado ou sujo de lama (a depender da época do ano e região do país). Com isso, o salário foi reduzido em aproximadamente 20%. Ela chega cansada e com fome. Senta na frente da tv com o prato de comida numa mão. O garfo na outra. Liga a tv. Pela primeira vez no dia, terá um momento de descanso. Pelo menos quando estou lá ela não tem segunda jornada. O primeiro canal que aparece é a globo News. Recomendo outro, aonde está passando uma dessas séries de comédia estadunidense com gente bem alimentada e carros enormes.
Relembro essa cena comum a milhões de brasileiras e brasileiros enquanto ouço um companheiro falar numa reunião. Trata-se de uma reunião ampla, juntando gente que, normalmente, não se bica, mas estão juntos para definir uma agenda comum de mobilização. O companheiro é quase um arquétipo do militante de esquerda brasileiro. Está bravo porque não tem conseguido centralizar em si as decisões e o grupo. Enquanto ouço calmamente o super-ego-ambulante falar, recordo a vida difícil da minha família e me pergunto o que estou fazendo ali. É preciso ter paciência.
É preciso ter paciência e não desistir da luta. O governo avança, rifando direitos históricos e arduamente conquistados, mas devemos continuar avançando também, mobilizando e organizando quem estiver ao lado. As últimas mobilizações evidenciaram a força da classe trabalhadora. Desistir é um luxo a que não temos direito.
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