Parece indubitável que a atual conjuntura nacional tem lançado desafios substanciais à toda esquerda socialista. Esses desafios nos exige um rigor analítico que não pode, de forma alguma, resultar numa cômoda postura de acadêmico que se distancia da luta social para “não enviesar o seu olhar”, mas também que se evite um empiricismo que vai dar respostas às grandes questões sociais apenas através da experiência sensorial dos sujeitos.
Ciente, portanto, da complexidade e do turbilhão de acontecimentos e fatos novos, o que significa que o que foi afirmado hoje, pode não corresponder exatamente à análise da semana anterior, o Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (COLEMARX) se propõe a contribuir com uma série de artigos que sintetizem, de forma bastante acessível, os primeiros meses do governo Bolsonaro na educação. Os respectivos textos apresentam o resultado das discussões nas reuniões do grupo de pesquisa na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e que contaram com a participação de professores, pesquisadores de doutorado e mestrado e estudantes de graduação.
Nossa primeira contribuição aborda a estrutura e organização do Ministério da Educação (MEC). Logo que Jair Bolsonaro terminou vitorioso no pleito presidencial de 2018, as especulações em torno do anúncio do seu ministério alimentaram as diversas bolsas de apostas informais sobre quais figuras estariam ao lado do longevo deputado federal de sete mandatos que prometia a instauração de uma “nova política”.
No que tange ao MEC, o primeiro nome ventilado foi o do brasileiro de origem grega, Stavros Xanthopoylos, nome que tem forte presença no setor do ensino a distância, e que concedeu diversas entrevistas sobre suas ideias de ensino de “moral e cívica do século XXI”, desideologização da educação, ensino domiciliar e pela modalidade a distância. Embora as ideias do greco-brasileiro aparentemente se sintonizassem com as do presidente eleito, este não despertou maiores entusiasmos entre os “especialistas” em educação, particularmente aqueles alinhados às fundações empresariais e recorrentemente ouvidos pela grande imprensa, que preferiam nomes mais “técnicos” e alinhados com a agenda hegemonizada pelo Movimento “Todos pela Educação”, como a ex-presidente do INEP, Maria Inês Fini, e Mozart Neves Ramos. Este, com vastíssimo leque de serviços prestados na universidade pública, em órgãos estatais e às próprias fundações empresariais e que, especula-se, teria sido convidado a assumir o cargo em visita à Brasília em novembro de 2018, quando foi entregar a agenda para a educação do “Todos pela Educação” intitulada Educação Já, mas foi posteriormente desconvidado por não se alinhar com a pauta autoritária do “Escola sem Partido”. Daí, surpreendendo a todos, em final de novembro, Jair Bolsonaro convidou o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, professor aposentado de Filosofia e Ciências da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora e de instituições privadas no Paraná.
Inicialmente no cargo, Vélez Rodríguez procurou encarnar fielmente a imagem e semelhança de seu chefe imediato. Nos três meses em que durou no cargo, colecionou polêmicas, como o envio de um comunicado para as direções de escolas públicas e privadas para que, no primeiro dia de volta às aulas, os estudantes fossem perfilados para a execução do hino nacional e leitura de uma carta com slogan da campanha eleitoral de Bolsonaro “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e gravado em vídeo para envio ao MEC, ou ainda, a criação de uma comissão para inspecionar temas da prova do ENEM que façam abordagens “ideológicas” e consideradas controversas a segmentos e grupos sociais, símbolos, tradições e costumes nacionais.
A montagem da estrutura do ministério sob o comando de Vélez Rodríguez trouxe algumas medidas que se alinhavam à plataforma política que elegeu Bolsonaro como presidente. Por exemplo, a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) se engajou no discurso bolsonarista de combate à “ideologia de gênero” e à representatividade de grupos identitários que se amparam no discurso coitadista para obter “privilégios”. Também não é possível ignorar a criação da Subsecretaria de fomento às Escolas Cívico-Militares, justificadas pelo argumento de unir disciplina e bom desempenho nas avaliações de larga escala.
Contudo, apesar do aparente alinhamento de ideias, a acomodação de todos os setores apoiadores de primeira ordem da vitória bolsonarista resultou em uma verdadeira Torre de Babel. Levando em consideração os sujeitos nomeados, é possível afirmar que existiam quatro grupos (que, em alguns casos, tinham interseções com mais de um grupo) que compunham o organograma das indicações para os cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões do MEC: 1) militares de carreira ou civis formados em suas instituições, como o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); 2) ex-alunos e orientandos do próprio Vélez Rodríguez na UFJF; 3) funcionários públicos de carreira ou técnicos do setor privado com experiência em gestão corporativa; 4) e o inusitado segmento daqueles que foram indicados pelo “polivalente profissional” Olavo de Carvalho (incluindo o próprio ministro), conhecidos como “Olavistas”.
Desde o início da nova gestão, a disputa por espaços de poder e o curto-circuito causado por aqueles mais alinhados por pressupostos neoliberais e “técnicos” (tecnocratas e militares) e os “conservadores” (olavistas e ex-alunos de Vélez) minou a previsibilidade, a segurança e a coesão construída pela hegemonia empresarial no MEC, consolidada tanto nos governos do PT (a despeito de alguma resistência interna de setores ligados à pauta da educação pública) quanto no usurpador Temer (muito mais coeso para implementação das “reformas educacionais”). Após muitas cortinas de fumaça, polêmicas inócuas e confrontações ao então ministro, como a que foi viralizada pela intervenção da deputada Tábata Amaral ao questioná-lo pela falta de diretividade nas ações do Ministério (“em razão de discussões ideológicas”, segundo ela), em 5 de abril, o presidente proferiu a emblemática declaração de que “[Vélez] É uma pessoa honrada, mas está faltando gestão. Na segunda-feira, vamos tirar a aliança da mão direita, ou vai para a esquerda ou vai para a gaveta”. Ao repousar a cabeça sobre o travesseiro, aparentemente o presidente optou pelo fim das DRs e demitiu Vélez Rodríguez. Em levantamento realizado em consulta ao Diário Oficial da União, pudemos constatar que entre a posse do novo governo e a queda de Vélez Rodríguez, ocorreu quase 20 exonerações de nomeados para os cargos dirigentes (quantitativo acrescido pela depuração de outros nomes ocorrida posteriormente à nomeação do novo ministro).
Para seu lugar, foi nomeado Abraham Weintraub, professor de microeconomia na Universidade Federal de São Paulo e consultor no mercado financeiro com ênfase em previdência. Weintraub já ocupava um cargo no governo Bolsonaro como Secretário-Executivo da Casa Civil. Com sua nomeação, quase todos os ex-orientandos de Vélez Rodriguez que ainda restavam, foram exonerados de seus cargos e também os olavistas perderam espaço em favor de nomes com perfil mais “técnico” e que pudessem direcionar a ação do MEC na resolução das questões ainda pendentes da agenda do governo anterior, como a implementação da BNCC, a reforma do ensino médio, a reformulação da formação de professores (justamente o que clamavam os colunistas da grande imprensa, o empresariado que tem interesses na educação e os representantes parlamentares, tais como a jovem deputada citada no parágrafo anterior).
E assim, mais ou menos assentada a questão da estrutura e organização do MEC, poderemos abordar nos próximos textos, com maior especificidade, o diálogo do governo Bolsonaro com o empresariado na educação, as ações “originais” e de continuidade e a nossa (necessária) capacidade de resistência e proposição para lidar com as adversidades da atual conjuntura.
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