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BRASIL

Bolsonaro, respeite os mortos da ditadura militar

Presidente precisa ser responsabilizado por declarações sobre Fernando Santa Cruz e ser obrigado a revelar como a ditadura assassinou o estudante da UFF

Gustavo Sixel, da redação
Reprodução

Depois de ter negado a existência da fome, do desmatamento na Amazônia e o assassinato do cacique Emyra Waiãpi, no Amapá, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu surpreender novamente o país, nesta segunda-feira, 29. Agindo como se fosse um capitão durante a ditadura, o presidente afirmou que sabe o que aconteceu com Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974, e que “um dia” contaria ao seu filho, Felipe Santa Cruz, presidente da OAB Nacional. Bolsonaro ainda debochou e afirmou que o advogado “não vai querer saber a verdade” sobre o que aconteceu com seu pai.

“Um dia se o presidente da OAB [Felipe Santa Cruz] quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, disse Bolsonaro.

O episódio é revoltante e não pode ser menosprezado. Bolsonaro assume publicamente que tem conhecimento sobre um crime da ditadura, sobre o qual nunca se pronunciou. Como se não bastasse, ainda tenta manchar a honra de Fernando Santa Cruz, como se houvesse algo a envergonhar sua família. O ataque precisa ser respondido à altura. Caso contrário, veremos torturadores desfilando nas ruas e rindo na cara de suas vítimas.

Bolsonaro precisa ser intimado a declarar o que sabe sobre o que a ditadura militar fez com Fernando Santa Cruz, preso em fevereiro de 1974, há 45 anos, em um sábado de carnaval, junto com Eduardo Coullier Filho, também da Ação Popular Marxista Leninista (APML). Natural de Recife (PE) e aluno de Direito na UFF, Fernando havia se mudado para São Paulo há menos de um ano, após ser aprovado em um concurso público. Naquele momento, a AP sofria uma ofensiva dos órgãos de repressão. Fernando buscou o encontro com um amigo e militante para retomar contato com a organização.

O ataque de Bolsonaro acontece um mês depois do falecimento da mãe de Fernando Santa Cruz e avó de Felipe, D. Elzita Santa Cruz, que faleceu no dia 25 de junho, aos 105 anos, após 45 anos procurando pelo filho. Com seus cabelos brancos, ostentando a poesia como arma, tornou-se um símbolo da luta contra os crimes da ditadura e das famílias dos desaparecidos.

Dona Elzita descansou sem conseguir respostas concretas sobre o que aconteceu com seu filho. Peregrinou em presídios, em prédios do Exército, e mesmo com a repercussão internacional, teve o silêncio como resposta. A informação mais relevante que teve sobre Fernando veio em 2012, através de um delegado aposentado do DOPS, que afirmou em um livro que Fernando Santa Cruz e mais outros nove presos políticos teriam tido seus corpos incinerados no forno da Usina de Açúcar “Cambayba”, no município de Campos dos Goytacazes (RJ).

 

“VIVÊNCIA”

Bolsonaro fala que sabe do que aconteceu apenas por sua “vivência” posterior. De fato, dificilmente, ele teria participado da prisão do filho de Dona Elza. Quando Fernando foi preso, em fevereiro de 1974, o atual presidente havia acabado de completar 19 anos e tinha sido aprovado há alguns meses na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), depois de uma passagem pela Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx). Isso não quer dizer que fosse um jovem ingênuo. Ao contrário, sua ideologia anticomunista já se mostrava aos 15 anos, quando ajudou militares com pistas sobre guerrilheiros em São Paulo.

Somente após se formar, em 1977, é que inicia sua carreira polêmica, na qual se alia aos setores mais duros das Forças Armadas e chega a planejar um atentado e uma explosão de uma bomba no Rio de Janeiro.

Mesmo que se comprove que não tenha participação no caso, ele deve explicações. E ele e o governo deveriam sofrer punições. Como disse em nota a Anistia Internacional, é um absurdo que um filho de um desaparecido político tenha que ouvir isso do principal representante do Estado brasileiro, que deveria ser o defensor de seus direitos.

Bolsonaro mostra que não é nada disso. Age como um capitão, que defende a tortura e afirma que os militares deveriam ter matado mais. Desafia as instituições, as entidades da classe trabalhadora e da sociedade civil, como a OAB, que cumpriu no passado um papel decisivo na defesa das liberdades e que vem se pronunciando contra os desmandos deste governo. É justamente por isso, e não por ter garantido o sigilo de um advogado de Adélio, que a OAB e seu presidente tornam-se alvo de Bolsonaro.

Ao afrontar novamente todos os limites da humanidade, testa a capacidade de reação e de indignação do povo brasileiro, e assenta terreno para mudanças no regime político brasileiro, para o aumento do autoritarismo e da violência aprofundados com o assassinato de Marielle Franco, para uma ofensiva contra os jornalistas do The Intercept, contra indígenas e ativistas.

Em respeito à memória de D. Elzita, de Fernando Santa Cruz e de todos os mortos e desaparecidos na ditadura militar, não deixaremos que isso aconteça.