Claude Frollo, vilão de Notre Dame: capacitismo, ciganofobia, machismo, obscurantismo

Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online, e Eduarda Johanna Alfena, de Campinas, SP
reprodução

A história clássica de Victor Hugo deve ganhar mais duas adaptações ao cinema em breve. Uma será um filme da Netflix com Idris Elba como produtor e protagonista – será interessante ver, para variar, uma versão cujo protagonista é negro. Outra será um novo remake em live-action da Disney – ou seja, uma versão filmada da animação de 1996. Acreditamos ser uma boa oportunidade para um texto sobre o antagonista mais sinistro e profundo em uma animação de Hollywood.

Frollo e a poderosa música Hellfire (Fogo Infernal)

Como vilão da história, o Ministro da Justiça Claude Frollo (que, na história original, era o arquidiácono da Catedral) é muito mais sinistro que vilões de outras animações hollywoodianas. É ele quem, a contragosto, cuida do protagonista Quasímodo após ter assassinado sua mãe por ser cigana. O nome dado a ele significa “quase homem” e foi escolhido por Frollo devido à sua aparência. O capacitismo de Frollo, ou seja, seu preconceito contra Quasímodo por ele ter deficiência física, fica cada vez mais óbvio e gritante ao longo do filme.

A música tema do Frollo (é costume em filmes da Disney que o vilão tenha uma música própria) expressa, de maneira muito potente, sua perversidade e hipocrisia. No início, um grupo de monges canta uma música tradicional católica Mea Culpa, uma admissão de culpa e um pedido de perdão a Deus pelos pecados. Frollo, entretanto, canta sua parte afirmando o oposto: “Beata Maria, sabe que eu sou justo e bom, de minhas virtudes posso me orgulhar”. Adiante, ele confessa ter desejos lascivos por Esmeralda.

Podemos nos questionar: por que isso seria um problema para um homem laico? Aqui entra a mudança feita pelo estúdio, já que, na história original, Frollo era um arquidiácono e deveria viver em castidade até o fim da vida. Na animação, isso perde um pouco o sentido, embora possamos interpretar que a culpa é por ela ser uma cigana. Ou, nas palavras que o vilão canta na música, por ela ser parte da “comum, vulgar, fraca, licenciosa plebe”.

Entretanto, ao admitir o pecado da luxúria, Frollo não assume a culpa, atribuindo-a a Esmeralda, por tê-lo enfeitiçado. Afinal, Esmeralda, além de ser atraente e dançar de maneira provocante, também era cigana, o que, na visão de um homem religioso da Idade Média, era uma bruxa. Uma vez mais, a ciganofobia do ministro é evidente.

Na cena, vários monges com vestes vermelhas e seus rostos ocultos, com estatura imensa, aparecem e cantam em coro: “Mea culpa, mea maxima culpa” (Minha culpa, minha máxima culpa). É o ápice da música iniciada pelos monges na Catedral. O recurso visual dos rostos muito acima de Claude, lembrando um tribunal, cria a sensação de que estão vendo e sabendo tudo. De um rosto no alto, é difícil se ocultar. Toda a cena, inclusive, se passa no Palácio da Justiça. A expressão de Frollo é de terror, desespero, sentimentos vividos por suas vítimas. Entretanto, ele continua negando. Diz que não tem culpa por Deus ter feito o Diabo mais forte que o Homem.

Em seguida, ele pede a Maria mais uma vez que o proteja desta “sereia”: que a destrua “E deixe que prove os fogos infernais” ou, então, que a faça ser dele e somente dele. Por outro lado, Maria, na tradição católica romana, é uma intercessora piedosa que “roga pelos pecadores na hora da morte” para que não sofram a danação eterna. Além disso, na mesma tradição, também é “sempre virgem”, sinal da castidade e da pureza. Que grande ironia: Frollo pede, à mulher mais piedosa que já existiu no mundo, que Esmeralda seja condenada ao inferno, e, a ela que também representa a pureza e a castidade, que seu sentimento de luxúria seja satisfeito.

Assim, na visão machista de Frollo, Esmeralda não é uma mulher, mas um pedaço de carne, uma propriedade privada que lhe pertence e com a qual tem o direito de fazer o que bem entende. Ou talvez pior do que isso: uma bruxa endemoniada que deveria, com justiça, ser condenada à fogueira ou a se tornar sua escrava sexual para o resto da vida.

Ao cantar “Ou permita que ela seja minha, somente minha”, ele tenta abraçar a Esmeralda feita de fumaça, mas ela se esvai. Um homem bate à porta para lhe avisar que a moça escapou. A vida, portanto, já estava lhe dando uma resposta: Esmeralda não seria dele, não pertencia a ele. Pelo contrário, ela tinha vida, vontade, existência própria. “Como?”, pergunta ele. “Não importa. […] Eu vou encontrá-la mesmo que tenha que queimar toda Paris!”

Para simbolizar a monstruosidade do ministro (ou arquidiácono), ele atira no fogo da lareira um pedaço de pano que pertencia a Esmeralda, afirmando: “Seja minha ou você queimará”. Frollo se aproxima da parede e coloca as mãos nelas, com a cabeça abaixada, em sinal de penitência. As sombras dos monges vermelhos projetadas pela fogueira surgem e crescem nas paredes, segurando cruzes altas, como era comum na Idade Média quando alguém era condenado à fogueira.

“Kyrie Eleison” (Senhor tenha piedade), cantam os monges. Frollo, teimoso, retruca: “Deus tenha piedade dela”. Ao final, outra ironia, pede perdão ao mesmo tempo que reafirma sua iniquidade: “Deus tenha piedade de mim, mas ela será minha ou queimará!”

Um símbolo do preconceito, do fundamentalismo e do obscurantismo

A personagem antagonista dessa animação é muito bem desenvolvida. Claude Frollo não é o típico vilão que não se importa com o certo e o errado ou que, mesmo compreendendo estar errado, pensa que suas ações se justificam. Não: o ministro/arquidiácono nega estar fazendo algo de errado e persegue o povo cigano impiedosamente, carregado de ódio sem qualquer razão à vista.

Nem mesmo um bebê, como Quasímodo, estava livre de seu ódio. Ao tomá-lo de sua mãe e matá-la, ele olhou a criança e exclamou: “Monstro!”. Avistou um poço, aproximou-se dele e iria ali atirá-lo, mas o diácono gritou, interrompendo-o e impedindo que fizesse essa crueldade. Frollo exclama: “É um demônio, vou devolvê-lo ao Inferno”.

A Disney distorceu a figura de Frollo ao transformá-lo em um homem laico, reduzindo a conexão entre a crueldade de Frollo e o seu fanatismo religioso. Isso mostra um lado católico do estúdio, criando a imagem de que a maldade provém da falta de religiosidade ou de uma falsa fé.

Apesar disso, Claude Frollo continua sendo um símbolo de como o fundamentalismo faz com que uma pessoa justifique as mais vis atitudes. Mesmo afirmando fervorosamente sua fé em Deus e sua devoção à Virgem Maria, ele não está isento de ser preconceituoso, ciganofóbico, capacitista, machista e nem mesmo um genocida. Muito pelo contrário: é justamente ao afirmar sua religiosidade que ele demonstra toda sua monstruosidade.

 

Abaixo, a letra original e sua tradução.

Hellfire (Fogo Infernal)

Confiteor Deo, Omnipotenti
Beatae Mariae semper virgini,
Beato Michaeli Archangelo
Sanctis Apostolis
Omnibus Sanctis

Beata Maria
You know I am a righteous man
Of my virtue I am justly proud

(Et tibi, Pater)

Beata Maria
You know I’m so much purer than
The common, vulgar, weak, licentious crowd
(Quia peccavi nimis)

Then tell me, Maria
Why I see her dancing there
Why her smold’ring eyes to scorch my soul
(Cogitatione)

I fell her, I see her
The sun caught in her raven hair
Is blazing in me out of all control
(Verbo et opere)

Like fire
Hellfire
This fire in my skin
This burning
Desire
Is turning me to sin

It’s not my fault
(Mea culpa)
I’m not to blame
(Mea culpa)
It’s the gypsy girl
The witch who sent this flame
(Mea maxima culpa)

It’s not my fault
(mea culpa)
If in God’s Plan
(mea culpa)
He made the Devil so much stronger than a Man

Protect me, Maria
Don’t let this siren cast her spell
Don’t let her fire sear my flesh and bone
Destroy Esmeralda
And let her taste the fires of Hell
Or else let her be mine and mine alone

(Dialogue:
Man: “Minister Frollo, the gipsy has escaped.”
Frollo: “What?”
Man: “She is nowhere in the Catedral. She’s gone.”
Frollo: “But, how? And… Nevermind. Get out, you idiot! I’ll find her. I’ll find her even if I have to burn down all of Paris!”)

Hellfire
Dark fire
Now gypsy it’s your turn
Choose me or
Your pyre
Be mine or you will burn!

(Kyrie Eleison)
God Have Mercy on her
(Kyrie Eleison)
God have mercy on me
(Kyrie Eleison)
But she will be mine
Or she will burn!

 


 

Confesso a Deus, Onipotente
À Santa Maria, sempre virgem
A São Miguel Arcanjo
Aos Santos Apóstolos
E a todos os Santos
Beata Maria
Sabe que sou justo e bom
De minhas virtudes posso me orgulhar
(E a Ti, Pai)

Beata Maria
Sabe que sou muito mais puro que
A comum, vulgar, fraca, licenciosa plebe
(Que hei de pecar)

Então diga-me, Maria
Por que eu a vejo dançar
Por que seus olhos fumegantes queimam minh’alma
(Eu cogitei)

Eu a sinto, eu a vejo
O sol brilhando em seus cabelos negros
Está ardendo em mim sem nenhum controle
(Em palavras e ações)

Como Fogo
Fogo Infernal
Esse fogo em minha pele
Este ardente
Desejo
Está me conduzindo ao pecado

Não é minha culpa
(Minha culpa)
Eu não tenho culpa
(Minha culpa)
Foi a cigana
A Bruxa que me enfeitiçou
(Minha máxima culpa)

Não é minha culpa
(minha culpa)
Se, no plano de Deus
(minha culpa)
Ele fez o Diabo muito mais forte que o Homem

Proteja-me Maria
Não deixe esta sereia me enfeitiçar
Não a deixe queimar minha pele e osso
Destrua Esmeralda
E deixe que prove os fogos infernais
Ou permita que ela seja minha, somente minha

(Diálogo:
Homem: “Ministro Frollo, a cigana escapou.”
Frollo: “O quê?”
Man: “Ela não está em lugar algum na Catedral. Ela se foi.”
Frollo: “Mas como? E… Não importa. Saia, seu idiota! Eu vou encontrá-la. Eu vou encontrá-la mesmo que tenha que queimar toda Paris!”)

Fogo Infernal
Fogo sombrio
Agora, cigana, é sua vez
Escolha a mim ou
A sua pira
Seja minha ou queimará!

(Senhor tende piedade)
Deus tenha piedade dela
(Senhor tende piedade)
Deus tenha piedade de mim
(Senhor tende piedade)
Mas ela será minha
Ou queimará!