O gueto é o seu próprio príncipe: Igor Kannário e a favela atual

Juan Michel Montezuma*, de Salvador, BA
Divulgação

Igor Kannário

Nas últimas eleições, a política do ódio e fetichismo para com a realidade social violenta do Brasil não produziu bizarrices históricas apenas na  escala presidencial, tal como a eleição do acéfalo, apoiador de milicianos, juízes corruptos e outros criminosos, Jair Messias Bolsonaro demonstra tragicamente. Em conjunturas políticas estaduais, mas não por isso de menor complexidade em relação ao cenário político nacional, o cotidiano de insegurança pública, intensificado nos últimos cinco anos com a crise social enfrentada pelo povo brasileiro, ajudou a fortalecer diversas figuras públicas, fossem esses sujeitos: cantores, pastores cantores ou  pastores sargentos. Esses campeões da favelado, seja esse último um pagodeiro, evangélico, ou os dois ao mesmo tempo como é o mais comum, foram os verdadeiros catalisadores dos símbolos políticos que, durante décadas, constituem a identidade cultural da “Favela”. De fato, este é o caso do deputado federal, cantor, dançarino e compositor, Anderson Machado De Jesus, baiano popularmente conhecido no seu estado pelo nome artístico de “Igor Kannário” e autoproclamado “Príncipe do Gueto”.

Certamente, para aqueles que conhecem o carnaval de Bahia e também a cultura popular soteropolitana, não irão duvidar da legitimidade do nobre título de Igor Kannário. Sem dúvidas, Anderson Machado De Jesus é um artista talentoso e os milhares de baianos que consegue reunir para dançar na avenida tornam quase que secundárias as suas pitorescas controvérsias com as autoridades policiais, declarações polêmicas sobre o poder público e filiações políticas, no mínimo, contraditórias para um parlamentar que tantas vezes, ao som do pagodão e sob os holofotes, jurou lealdade a uma multidão de favelados. Todavia, são justamente essas características, quase que eclipsadas pela verdadeiramente espetacular trajetória do “Príncipe Do Gueto”,  que plantam na mente de muitos favelados sensatos, aqueles que sabem quem são e onde estão, um questionamento incômodo: De que Gueto Kannário é o príncipe?

Nessa última semana, em 10/07/19, o deputado Anderson Machado de Jesus votou a favor da Reforma da Previdência, conjunto de modificações na legislação da aposentadoria que lança todos os trabalhadores do país, principalmente os favelados, em um futuro sombrio de superexploração. Em resposta às reações negativas nas redes sociais que lhe colocaram a pecha de “Traidor da Favela”, Kannário defendeu-se publicando nas suas redes sociais uma nota de esclarecimento com as seguintes declarações:

“…População brasileira está envelhecendo e a previdência  não tem como manter as aposentadorias se não fizer a reforma (…) haverá a aprovação dos destaques que estão sendo analisados para ser acrescido na lei. Dentre os temas a serem votados estão: regras mais brandas para policiais, nova regra de cálculo para mulheres, mudanças para professores e pensões por morte, ou seja, muitas melhorias ainda estão por vir. Em momentos como esse, é importante olhar para o futuro do Brasil (…) que o Brasil não passe pela mesma situação econômica que a Venezuela…”.

Para além do óbvio fisiologismo da democracia burguesa que tende rapidamente a converter  representantes “populares” em burocratas a serviço dos ricos interesses das elites, o que as declarações de Igor Kannário têm a nos dizer? Quem é o Gueto que ele de fato representa? Apenas massas populares desesperadas que, tal como nas letras do Kannário, clamam aos céus para que a violência acabe? Seguir essa resposta seria atribuir as classes faveladas um atavismo político, uma alienação sociocultural e uma completa falta de autonomia sociopolítica que o seu papel fundamental na eleição de Jair Messias Bolsonaro lança por terra com facilidade. Ademais, é preciso ter em mente o que o próprio Kannário nos diz; ele é o Príncipe do Gueto! E esse último simplesmente significa, em sua essência mais real e histórica, pobreza.

Com toda certeza, a pobreza foi o elemento social que mais sofreu transformações na mentalidade do brasileiro favelado das últimas duas décadas, principalmente quando a questão era o seu próprio status quo como indivíduo pobre. Muito embora, as desigualdades sócio históricas estruturais tenham continuado a fazer parte da sociedade brasileira contemporânea, o sujeito do gueto, durante os estados de exceção experimentados pela classe popular durante os governos petistas, tornou-se um ator social mais dinâmico e até mesmo “ascendente” quando se considera a grande assimilação dos últimos anos promovida por diferentes  mercados em relação cultura material periférica. Tendo o crédito ampliado na praça, a Favela comprou mais, reconfigurou suas relações sociais a partir desses, cada vez mais novos, bens de consumo e ostentou uma cultura que demandava maior inserção do indivíduo periférico “empoderado” nas tendências do mundo atual. Esse processo exponencial não foi controlado por políticas públicas que promovessem reformas de base na educação ou que, por exemplo, repensassem as instituições que compõem o sistema público de segurança ou o de saúde. Tudo isso, e outros extensos fatores, fez com que a primavera econômica experimentada pelo povo favelado fôsse esfacelada rapidamente nos primeiros choques da crise atual que tornou inviável a continuidade do modelo conciliatório petista e levando ao ataque sistemático  às suas políticas assistencialistas. Nesse cenário, a elite e parte da classe média reiniciaram uma velha cantilena, na qual passavam a exigir a cabeça do futuro dos mais pobres em nome da pátria, dos seus ricos interesses, assim como toda sorte de absurdos que foram reproduzidos para Favela nos últimos anos, através de pastores, apresentadores, cantores, sargentos, pastores sargentos, apresentadores e cantores, ou até mesmo príncipes como é o caso de Anderson Machado De Jesus, vulgo Igor Kannário, deputado federal eleito com 54.858 votos.

Diante desse cenário, quem é o Gueto de Igor Kannário? É o povo que não se mobilizou em grande escala contra a Reforma Trabalhista, são aqueles que não se colocaram contra  Bolsonaro e sim, iludidos, raivosos lhe deram o poder, são os que não se levantam contra a Reforma Da Previdência e com um sorriso verde-amarelo esperam as lutas do futuro com cansaço. Igor Kannário é  de fato o Príncipe do Gueto resiliente, fragilizado, acuado por capitães, juízes e outros patifes enganadores, disposto a pagar qualquer preço para ver-se livre da crise e do precioso poder de consumo que ela ameaça enfraquecer. O Príncipe do Gueto é o primeiro cidadão de um povo que deseja conservadoramente o bem-estar social, mas infelizmente ainda não compreende que terá de lutar por seus direitos aqui e agora. Escolhendo outros caminhos mais democráticos e deixando de depositar sua força em qualquer figura messiânica autoproclamada. Afinal,o Gueto precisa entender que é o seu próprio príncipe.

 

*Juan Michel Montezuma é graduando em História na Universidade Federal Da Bahia, coordenador do Projeto Social Cidadão Pensante

Marcado como:
pagode