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BRASIL

OPINIÃO | Os de cima não esquecem: o Trabalho é o centro da luta social

Alexandre Haubrich, de Porto Alegre, RS
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Rodrigo Maia comemora a aprovação do texto-base da reforma da Previdência.

Há uma parcela da esquerda, acadêmica ou militante, que insiste, nos últimos anos (décadas) em negar a centralidade do Trabalho na luta social. Há, por essa parte, uma afirmação de outras categorias como centro das lutas, de forma que a categoria “trabalhador” é muitas vezes caracterizada como ultrapassada, considerando-se a complexidade do que seria a classe trabalhadora e a emergência de outros tipos de opressão como temáticas sociais – essas opressões já existiam, mas são crescentemente questionadas. O enfraquecimento dos instrumentos de luta dos trabalhadores – fundamentalmente os sindicatos e centrais sindicais – é causa e consequência dessas leituras. E cobra seu preço: reforma trabalhista, liberação das terceirizações, reforma da Previdência. Se os de baixo esquecem, os de cima lembram todos os dias que é a disputa entre capital e trabalho o que move as sociedades para a frente ou para trás.

Bolsonaro, mesmo um representante um tanto trapalhão do capital, também não esquece – e, se esquece, os operadores da marionete logo o recordam. Não é por acaso sua defesa do trabalho infantil e é mais do que coincidência que essa defesa esteja colada à aprovação da reforma da Previdência. São perspectivas ou propostas que partem do mesmo princípio e querem levar ao mesmo desfecho: trabalhador tem que viver para trabalhar. Há, é claro, intervalos para consumir produtos de baixa qualidade, muitos dos quais ajudam a matar o trabalhador – não há problema, há cada vez menos postos de trabalho e, portanto, cada vez mais força de trabalho reserva. Para os mais ricos, na verdade, o consumo interno interessa pouco – boa parte de seus rendimentos vem de especulação financeira ou de exportações –, o que faz com que se importem cada vez menos com a capacidade de consumo dos trabalhadores.

O projeto dos de cima

A reforma trabalhista aprovada no governo de Michel Temer (MDB) visava – e conseguiu – precarizar o trabalho, retirar direitos e maximizar lucros do grande empresariado. A reforma da Previdência de Bolsonaro, embora também carregue e aprofunde essas mesmas consequências, tem uma outra razão de ser: criar maiores sobras de caixa para alimentar o mercado financeiro. Para os mais ricos, um jogo de ganha-ganha. Para os mais pobres, perde-perde.

O avanço abismal do desemprego e da informalidade, resultante dos “ajustes” que começaram com Dilma e perderam quaisquer freios institucionais após o golpe, pode permitir a realização do sonho dos donos da economia: que os trabalhadores trabalhem da infância à morte. Esse é o projeto de país que vem sendo aplicado desde Temer e ganhou aparência de legitimidade com a eleição (de legitimidade duvidosa) de Bolsonaro. A reforma trabalhista e a terceirização irrestrita retiram direitos cotidianos e jogam os trabalhadores na informalidade; a reforma da Previdência os obriga a manter-se nessa condição até morrer e ainda abastece o mercado financeiro com os juros de uma dívida pública nunca auditada. Para completar, os sindicatos, espaços de conformação de identidade de classe e de resistência, são estrangulados econômica e politicamente.

A disputa cultural também é colocada na mesa: o bolsonarismo tem como um de seus centros orbitais a negação dos direitos dos negros, dos indígenas, dos LGBTs e, especialmente, das mulheres. A afirmação da dominação masculina branca e heteronormativa, ameaçada pelos movimentos identitários, é parte fundamental da cultura do medo da perda de privilégios que alimenta o bolsonarismo. Mas o centro do projeto de país é econômico: essa linha de embate cultural carrega, além de seus próprios caminhos e necessidades internas, a tentativa de agrupar setores sociais que perdem com as “reformas” mas que aprendem a defende-las como parte de uma defesa mais ampla de um governo que promete recuperar a dominância masculina, branca e heteronormativa ameaçada. Criam-se inimigos imaginários – mulheres, negros, LGBTs – também como forma de identificação de manada que permite certo nível de aprovação social a medidas que prejudicam a quase totalidade da população.

Construir um projeto amplo dos de baixo

O posicionamento do bolsonarismo dá conta dos tempos recentes – a emergência das lutas das mulheres, dos negros, dos LGBTs, que o bolsonarismo combate – sem perder de vista a centralidade do Trabalho. Assim obtém sucesso para seus fins. Eles não esquecem.

Do lado de cá, o desafio é dar conta da mesma realidade, mas, é claro, com a chave virada. A afirmação dos direitos do que se convencionou chamar de “minorias” precisa estar conectada às disputas do mundo do trabalho. É mais do que dizer que uma perspectiva não pode perder de vista a outra: essas lutas precisam estar contidas no mesmo projeto. Se o que defendemos, enquanto campo popular, é um país democrático, temos que fazer a discussão – e ela se dá nos verbos e nas ruas – sobre que democracia queremos, sobre a necessidade de garantir e ampliar continuamente e de forma estrutural direitos econômicos, políticos e sociais.

Não por acaso, nenhum grupo social será mais afetado pela reforma da Previdência do que as mulheres negras LGBT – a dificuldade para conseguir emprego, o preconceito que reduz a estabilidade empregatícia, a dupla ou tripla jornada, todas essas são características que ampliam a exploração e reduzem, por exemplo, os salários e o tempo de contribuição ao INSS. É essa conexão inseparável que precisa guiar a construção de um país democrático.

A retomada dos instrumentos de luta é, também, parte desse processo necessário. Fortalecer os sindicatos e os movimentos populares é papel das direções e das bases, mas esses instrumentos só podem ser efetivos e fortes se forem profundamente democráticos e se levarem em conta a totalidade das disputas que estão na mesa, que passam pelas lutas feministas, antirracismo e anti-homofobia e que têm no embate capital x trabalho seu centro estrutural e capaz de totalizar – na diversidade – a formação da classe trabalhadora como classe para si.