Para começo de conversa, a eleição de Bolsonaro não foi obra do acaso, fruto circunstancial da vontade de um grupo político ou consequência pontual da ignorância dos eleitores: não se pode compreender a chegada da extrema-direita ao poder senão como resultado da própria decadência do capitalismo. No marco da grave crise econômica aberta em 2008, novas cartas foram colocadas à mesa: não só não era mais possível garantir as mínimas conquistas sociais aos trabalhadores, mas também era preciso suprimi-las, para que os grandes grupos do capital financeiro-industrial continuassem a ganhar seus lucros exorbitantes. Nesse contexto bem desfavorável, evidentemente não haveria mais espaço para governos de conciliação de classes: o golpe parlamentar-judiciário deixou isso bem claro, varrendo do cenário o reformismo petista. A prisão da maior liderança popular, que encabeçava as pesquisas eleitorais, bem como o cerceamento à sua liberdade de expressão, proibido de dar entrevistas para não interferir no resultado do pleito, indicavam que a burguesia precisava de um governo de “puro-sangue”: para aprofundar a exploração, aprovando o imoral “pacote de maldades”, era urgente neutralizar as vozes contrárias.
Assim, logo após o impeachment de Dilma Rousseff, o usurpador Michel Temer (que, não se esqueça, foi seu vice-presidente nos dois mandatos), mesmo com baixíssimo índice de aprovação, conseguiu aprovar a famigerada contrarreforma trabalhista. Isso, contudo, levou os tradicionais partidos de direita a uma estrondosa derrota nas urnas: os candidatos do PMDB e do PSDB, Henrique Meirelles e Geraldo Alckmin, não alcançaram juntos nem 3% no primeiro turno. Apesar da surpreendente recuperação do PT, com a transferência de uma parcela significativa dos votos de Lula para Fernando Haddad, o candidato reformista foi derrotado: a propaganda massiva da “Lava-Jato” contra a esquerda, demonizada pela grande mídia golpista e pelas “fake news” como “corrupta”, além de associada à “ditadura venezuelana”, permitiu a desastrosa vitória da extrema-direita. Em síntese, eis o resumo da ópera política: a rejeição tanto dos partidos de direita tradicionais quanto do Partido dos Trabalhadores fez surgir como alternativa aos olhos fatigados do povo a figura grotesca do Messias “Salvador da Pátria”.
Em outros termos, isso significa que não dá para compreender a ascensão e o triunfo de Bolsonaro sem considerar o contexto histórico da profunda crise econômica, que tornou miseráveis os pobres, empobreceu a classe média baixa e destruiu os sonhos de escalada social da classe média alta. Na verdade, não é possível explicar o fenômeno reacionário que deu corpo ao “Mito” sem voltar no tempo: há três décadas, quando ruiu a “Cortina de Ferro”, a derrocada do “Império Vermelho” deu novo fôlego ao capitalismo, uma vez que a destruição dos Estados operários burocratizados implicou a abertura de novos mercados para as grandes corporações contornarem a crise. Nesse quadro de ofensiva neoliberal, por exemplo, é que se localizam os dois governos de FHC: diante da decadência desse projeto, então, como bem analisou o historiador Henrique Canary, é que “ascenderam no poder, principalmente na América Latina, vários governos de Frente Popular e nacionalistas burgueses, que representaram uma vitória distorcida das massas contra os governos burgueses tradicionais” (CANARY, Henrique, “Alguns elementos para uma visão sobre a IV etapa”. In Marxismo Vivo: Nova Época, n⁰ 8, 2016, Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional – LIT-QI, 2016, p. 40).
Entretanto, se tal contexto abriu caminho para os dois primeiros governos reformistas de Lula, o primeiro governo de Dilma já se inscrevia num quadro mais delicado. Nas palavras de Canary, “com a eclosão da nova crise econômica em 2007-2008”, verificou-se “o aprofundamento da crise social e econômica dos Estados Unidos (…), a entrada da China na crise econômica (…), a crise dos governos de colaboração de classes e nacionalistas burgueses na América Latina” (idem, ibidem).
Sobre isso, aliás, vale recordar também o que escreveu Valério Arcary, sublinhando o início de “uma época em que reformas são mais difíceis”, em que as crises “confirmam que os limites históricos do capitalismo estão mais estreitos”, em que “todos os Estados, mesmo aqueles que têm uma posição dominante no mercado mundial, estão condicionados pela pressão do capital financeiro”, em que “os mágicos keynesianos” que “substituíram os artistas neoliberais à frente de vários governos (…) enfrentam muitas dificuldades para ‘salvar’ o capitalismo dos capitalistas” (ARCARY, Valério, “O martelo da história”. São Paulo: Sundermann, 2016, p. 16).
Quando os governos petistas de “frente popular” sucederam os governos burgueses conservadores, o que estava em jogo era exatamente essa tentativa de “salvar o capitalismo dos capitalistas”. A habilidade de estadista com verniz “socialista” de Lula, numa situação econômica ainda favorável, não só deu fôlego às grandes corporações, confirmando a sua clássica e indecorosa frase de que “os banqueiros nunca ganharam tanto quanto nos governos do PT”, mas também anestesiou os trabalhadores com a ilusão de “aburguesamento”, através da ampliação de crédito bancário, da relativa melhora de poder aquisitivo e do consequente aumento de consumo. Não fosse por isso, aliás, o ex-operário não teria agradado a gregos e troianos: sem essa conciliação farsesca (ilusória) entre os de cima e os de baixo, há de se convir, Lula não teria conseguido eleger Dilma. Eis o balanço de Valerio:
“Uma análise sóbria ou pelo menos equilibrada do governo Lula deve concluir que ele foi uma experiência reformista quase sem reformas que se beneficiou de uma conjuntura internacional favorável, todavia efêmera (…). O governo Lula foi o reformismo da governabilidade do regime democrático-liberal. O reformismo mantém audiência política porque se apoia na ilusão de que mudanças são possíveis sem lutas políticas que, para serem vitoriosas, devem ir além dos limites do capitalismo” (ARCARY, Valerio, “Um reformismo quase sem reformas – uma crítica marxista do governo Lula, em defesa da revolução brasileira”. São Paulo: Sundermann, 2014, p. 18).
Enfim, relendo essas análises de Canary e Arcary, e refletindo sobre o fatídico golpe que inaugurou a “Era dos Bolsonauros”, é inevitável lembrar também o preciso (precioso) diagnóstico de Leon Trotsky: apesar da distância de tempo e espaço, de ter sido redigido na França oito décadas antes, soa tão contemporâneo que até parece ter sido publicado aqui e agora. Vejamos a sua caracterização àquela época, para ler melhor o presente:
“Atualmente, em todos os países vigoram as mesmas leis: as da decadência capitalista. Se os meios de produção continuam em mãos de um pequeno número de capitalistas, não há salvação para a sociedade. Ela está condenada a seguir de crise em crise, de miséria em miséria, de mal a pior. De acordo com cada país, as consequências da decrepitude do capitalismo se expressam sob formas diversas e com ritmos desiguais. Porém, o fundo do processo é o mesmo em todos os lados. A burguesia conduziu a sociedade à bancarrota. Não é capaz de assegurar ao povo nem o pão nem a paz. E precisamente por isso que não pode suportar a ordem democrática por muito mais tempo, é compelida a esmagar os operários com a ajuda da violência física (…). A função histórica do fascismo é esmagar a classe operária, destruir as suas organizações, sufocar a liberdade política, quando os capitalistas se sentem incapazes de dirigir e dominar com a ajuda da maquinaria democrática” (TROTSKI, Leon. “Aonde vai a França?”. Brasília: Editora Kiron, 2012, p.76).
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