O recente show realizado por Milton Nascimento em Tel Aviv, no dia 30 de junho, e a correspondência com Roger Waters, na qual o último lhe pedia que desistisse de se apresentar em Israel, recolocam o tema da correção e utilidade do boicote à Israel como estado. Antes de tudo, vale a pena reproduzir a carta de Roger Waters à Milton Nascimento, porque nela está dito tudo ou quase tudo sobre o assunto:
27 de junho de 2019
Quando estive no Brasil no ano passado, fui apresentado ao lendário músico brasileiro Milton Nascimento, e bebemos algumas belas cachaças juntos. Quando li que ele estava planejando cruzar a linha de piquete do movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), para se apresentar em Tel Aviv, fiquei chocado. Eu escrevi para Milton pedindo uma oportunidade de falar com ele. Nem ele nem ninguém de sua equipe me respondeu.
Estou com peso no coração. Eu queria falar com Milton sobre amor, morte e música. Amor por todos os nossos irmãos e irmãs em todo o mundo, independentemente de sua religião, ou etnia, ou nacionalidade, mas particularmente pelos palestinos e palestinas que buscaram artistas em todo o mundo para pedir ajuda, através de sua recusa em lavar a imagem do Estado de apartheid israelense, não se apresentando por lá.
Eu queria falar com Milton sobre morte. Eu queria perguntar a ele se ele tem filhos, e como ele se sentiria enterrando um deles após um abate casual perpetrado por um exército de ocupação. Eu queria falar com ele sobre música, e sua profunda obrigação moral como eminente músico de evitar que sua música seja utilizada para lavar o apartheid com arte.
Milton escolheu caminhar pelo outro lado, ignorando o que Angela Davis chama de indivisibilidade da justiça. Que pena.
Com amor,
Roger Waters
Em resposta, Milton Nascimento disse que:
Minha música já me levou para muitos lugares, alguns dos quais eu jamais imaginei. E sou grato por isso. Pouquíssimas vezes declinei de um convite. Afinal de contas, todo artista deve ir onde o povo está, não é mesmo? Já estou em Tel Aviv desde ontem. Fui convidado a cantar aqui por uma empresa gerenciada inteiramente por um brasileiro. Somente com essa informação cai por terra qualquer tipo de argumento de que eu esteja contribuindo com o “apartheid israelense”. Este show NÃO tem qualquer incentivo do governo de Israel, muito menos do exército israelense. São meus fãs israelenses que me trouxeram até aqui, sendo que, grande parte destes fãs são brasileiros que vivem em Israel. Durante a ditadura militar brasileira eu jamais deixei de tocar no meu país. Então, por que eu deixaria de tocar agora? Por que deixaria de compartilhar experiências de amor e mudança enquanto acontece no Brasil um governo de extrema-direita? Mesmo divergindo das ideias de um governo, jamais abandonarei meu público. Afinal, são as pessoas que importam e que podem transformar. Minha questão, a qual deixo aqui para reflexão de todos: por que um povo deve sofrer retaliação pelos atos políticos de seus governantes? As minorias contrárias devem continuar sem voz? Para mim, repito, o artista deve ir onde o povo está e hoje eu estou aqui para celebrar a paz e tudo que nos une. Viva o amor, viva a música!
Vale a pena comentar brevemente a resposta de Milton. O fato de ter sido convidado por um grupo privado e não ter sido financiado pelo governo israelense não pode servir como desculpa para ignorar o contexto em que se deu o show. Tratava-se de um show de um renomado artista brasileiro na maior cidade israelense, no meio de uma ofensiva furiosa do estado israelense contra o povo palestino, com os massacres quase cotidianos em Gaza e o roubo de terras e a opressão na Cisjordânia.
Também é fundamental a mudança geopolítica com a ascensão de Trump ao governo norte-americano e seu apoio cada vez mais incondicional a Israel, em aliança direta com o que de mais retrógrado existe na política mundial. Para citar os mais evidentes, todos os regimes reacionários árabes e o atual governo brasileiro.
Milton compara a situação de Israel com a do Brasil sob a ditadura, dizendo que mesmo no caso do regime militar não deixou de cantar em seu país. O problema é que Israel não é simplesmente um país que possui um governo desprezível. É um estado que viola diretamente os direitos de outro povo, que eram os habitantes originais da Palestina e que sofre uma tripla opressão: os palestinos expulsos em 1947 que somavam 80% da população do estado atribuído pela ONU ao estado judaico e que somam atualmente cerca de 5 milhões espalhados fundamentalmente pelos países árabes vizinhos; os cerca de 4,5 milhões de palestinos da Cisjordânia e de Gaza que vivem sob a ocupação militar brutal de Israel desde 1967 e os cerca de 1,8 milhões que vivem como cidadãos de segunda categoria nas fronteiras de Israel de 1948 (não se trata de uma afirmação gratuita, basta examinar como exemplo, a lei de cidadania de Israel, que define Israel como um estado dos judeus).
Portanto, o tema transcende em muito saber quem está à frente do governo (por mais que nos enoje o longo reinado de Netanyahu). O que está em jogo desde 1947 é se os palestinos aceitam ser despojados de sua terra e seu estado. A resposta, apesar de todos os ataques que sofreram em mais de 70 anos é um rotundo NÃO! Mesmo em evidente desvantagem contra o poderio israelense, armado até os dentes pela maior potência imperial do mundo e reprimidos por regimes como os da Jordânia, Egito e Arábia Saudita, vivendo em condições sub-humanas como em Gaza e nos campos de refugiados, nunca aceitaram esta situação.
Há uma parte muito importante na carta de Roger Waters, quando ele fala de “cruzar a linha de piquete do BDS”. Isso quer dizer que em 2005, a esmagadora maioria das organizações palestinas decidiu lançar o movimento do BDS, como uma forma de se defender da crescente ofensiva do regime israelense. Seus três pontos são: o fim da ocupação israelense na Cisjordânia e em Gaza, o fim da discriminação dos palestinos dentro de Israel (um estado para todos os seus cidadãos) e o direito de retorno dos refugiados. Essas são as condições mínimas exigidas pelos palestinos para estabelecer as bases para a solução do conflito. E elas desmontam as bases fundamentais do funcionamento do estado racista que é Israel.
O debate sobre a solução estratégica para o que se conhece como a Palestina histórica transcende os objetivos deste post. Há muitos anos, me somei aos que defendem um único estado para ambas as nações que a habitam, satisfeitas as condições mínimas defendidas pelo BDS. Publiquei muitos artigos sobre o tema, o último deles em 2017.
Ressalvadas as diferenças, o paralelo que vem à mente é o boicote declarado pelo Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela ao regime do apartheid sul-africano e que recebeu ao longo dos anos grande apoio mundial. Quanto às diferenças, a opinião de dirigentes na luta contra o regime sul-africano é que o apartheid em Israel é bem pior do que aquele contra o que eles tiveram que lutar (confira-se a palestra de Ahmed Kathrada, que passou vinte anos na prisão em Robben Island, junto com Mandela)
A pergunta que não quer calar a Milton Nascimento: se fosse nos anos do regime racista daquele país, ele se atreveria a cruzar a linha do piquete montada pelo BDS?
O BDS já conseguiu apoios importantes, entre artistas, cientistas e sindicatos. Igrejas (a Igreja Presbiteriana, a Igreja Metodista Unida e os Quackers dos EUA), empresas (as francesa Veolia e Orange e a irlandesa CRH, por exemplo), fundos de pensão (o fundo holandês PGGM), grandes bancos europeus como Nordea e Danske Banke e os governos da Nova Zelândia, Noruega e Luxemburgo desinvestiram em companhias por seu papel na violação das leis internacionais por parte de Israel. Começa a incomodar o regime, mas sua luta ainda está em seu começo. Assim como demorou para o boicote ao apartheid sul-africano fornecer um apoio significativo à derrubada do regime. A pergunta que não quer calar a Milton Nascimento: se fosse nos anos do regime racista daquele país, ele se atreveria a cruzar a linha do piquete montada pelo BDS?
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