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Depois do crime: a morte da aposentadoria no Brasil

Fábio Rodrigues / Ag. Brasil

Onyx Lorenzoni e Rogério Marinho comemoram a aprovação do texto-base da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Então erguerão suas mãos
Dizendo atendemos todas suas exigências
Mas gritaremos de bombordo
Que seus dias estão contados
E como a tribo do Faraó
Eles se afogarão numa onda
E como Golias, eles serão conquistados

(Bob Dylan em “When the ship comes in”)

 

Hoje é um dia triste. E muitos outros assim o serão desde a noite de ontem. O futuro não é mais como era antigamente. A aposentadoria nas terras brasileiras foi, na prática, extinta. A solidariedade foi derrotada, e o foi, quase sem luta, quase sem resistência, quase sem solidariedade. Hoje, amanhã e depois, trabalhadores e trabalhadoras estarão de luto, e o farão não apenas por si, mas também por seus antepassados, cuja conquista lhes foi sordidamente subtraída, assim como por seus filhos, netos e bisnetos, condenados a um dos piores castigos bíblicos: labutar até a morte. Sem descanso, sem dignidade, sem nada.

Depois de um suborno de proporções oceânicas, eufemisticamente chamado nos canais abertos e fechados de televisão pelo nome de “liberação de emendas parlamentares”, a Câmara dos Deputados aprovou, na noite de ontem, a contrarreforma da Previdência. Às turras nos últimos meses, governo e burguesia certamente tiveram uma longa noite de amor, depois, claro, do estupro coletivo praticado mais cedo contra aqueles que vivem ou tentam viver da venda de sua força de trabalho em um país que segue celeremente caminhando para o caos. Na noite de ontem, a noite do crime, a noite dos culpados sem culpa, o crime não só ficou livre do castigo, como certamente foi motivo de orgulho. Nessa idílica noite de 10 de julho de 2019, a burguesia ilustrada e a tosca, os empresários de dinheiro “limpo” e os empreendedores de dinheiro sujo, os homens de grande fortuna e os homens de bem, as famílias endinheiradas e os defensores da família, os nobres militares e os plebeus milicianos, os inocentes do Leblon e os culpados da Muzema, os moradores do Jardim Pernambuco e os das Vivendas da Barra, os habitantes de Angoulême e os de Houmeau, os de berço e os parvenus, os tradicionais e os togados, a Folha e o Antagonista, a Globo e a Record, os Bonners e os Bolsonaros, os Mervais e os Olavos, os Camarottis e os reis dos camarote, os boiardos e os bobos da corte, os defensores da mão invisível e os crentes na Terra plana, os amantes do mercado e os do macarthismo, enfim, a alta e a lumpemburguesia, todos eufóricos, se congraçaram, se embebedaram, se refestelaram e, em uníssono, gritaram: conseguimos! 

Por mais que, em meio às libações nas redações, a imprensa do capital e seus ideólogos se esmerem em edulcorar o fato, em apresentar a lama como se fosse água límpida, em transformar retoricamente a praga em benção – para lembrarmos Goethe –, nada poderá esconder o que foi feito ontem à noite, a saber, a extinção sumária, por trezentos e setenta e nove sujeitos vis e venais, da aposentadoria no Brasil. Ela não existe mais. Ela se foi, ou melhor, foi morta. Covardemente. Hoje, os homens do Parlamento estão em festa, e os da praça, desanimados. Hoje o presidente está exultante, e o povo, resignado. Hoje eles riem, e nós, choramos. Hoje só dá deles, como se diz no jargão popular.

No entanto, por mais que aos olhos da Casa Grande, tudo agora pareça, tal como à balzaquiana Sra. de Bargeot, sublime, extraordinário, divino e maravilhoso, amanhã, mesmo que esse amanhã demore um pouco, será outro dia, já cantou, faz tempo, o poeta. A desfaçatez foi de tal monta que não há como não produzir revolta na Senzala, mesmo que demore, mesmo que demore um pouco. As consequências virão, e nós temos que, pacientemente, saber fazê-las vir. Os gritos dos chicoteados podem estar contidos, mas serão soltos, e serão altos. O silêncio de hoje precede o trovão de amanhã. A tempestade virá, e sobre eles cairá. Rodrigo Maia e consortes podem elucubrar se o congresso deve ou não deve ouvir o povo; politólogos de plantão podem, sorridentes, comentar que, com a aprovação da contrarreforma previdenciária, congresso e sociedade finalmente se irmanaram, tendo o primeiro, corajosamente, expressado a voz da segunda, fortalecendo, assim, a nossa bela democracia. A verdade, porém, é que, ao exterminar a aposentadoria dos trabalhadores, a Câmara dos Deputados apenas confirmou cabalmente o fato de que, desde o Golpe de 2016 e das farsescas eleições de 2018, ela se transformou, de um “corpo de parlamentares livremente eleitos pelo povo, em parlamento usurpador de uma classe”, reconhecendo, mais uma vez, “que cortara”, ela mesmo, e de uma vez por todas, “os músculos que ligavam a cabeça parlamentar ao corpo da nação”. (1) Depois do crime, depois da noite criminosa de ontem, o congresso brasileiro e o presidente da República se sentem fortes, gigantes e invencíveis. Com seu orgulho filisteu, eles se veem como Golias, e nos olham soberbamente como este olhou Davi. No entanto, o que essas instituições blindadas fizeram ontem à noite não foi senão exibir orgulhosamente seu total apartamento do povo, sua separação por completo da vontade popular, expondo, assim, sua fragilidade estrutural. Com o crime de ontem, selaram seu destino, assinando, sem sequer saber, sua sentença de morte histórica, a qual, pelos mesmos que hoje choram, será, em breve, executada. Sem piedade.

 

NOTAS

1 MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 106.