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Um adeus trotskista ao velho Chico

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

O sociólogo Francisco (Chico) de Oliveira foi um dos não poucos importantes intelectuais brasileiros que se utilizou abertamente da noção de desenvolvimento desigual e combinado, De León Trotsky, para criticar de forma contundente o que chamou de “lógica dualista” na apreensão da formação socioeconômica brasileira. Compartilhando a ideia de “dependência”, Chico de Oliveira se dedicou a demonstrar, mais detalhadamente do que fizera Florestan Fernandes, a funcionalidade possibilitada pelo “arcaico” ao desenvolvimento do “moderno” no capitalismo brasileiro. As estruturas “arcaicas” do campo, longe de significarem um empecilho ao desenvolvimento das alas “dinâmicas” da economia, como acreditavam os “dualistas”, representariam – em função tanto do enorme êxodo rural que criava um “exército de reserva” proletário nas grandes cidades, quanto do baixo custo da força de trabalho rural que diminuía o preço dos gêneros alimentícios – um estímulo à produção industrial e à acumulação do capital. (1) Em um interessante exemplo da combinação funcional do “arcaico” com o “moderno”, o sociólogo uspiano fez referência à perspectiva teórica que subjaz à sua mais importante obra:

Uma não-insignificativa porcentagem das residências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o “mutirão”. Ora, a habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não pago, isto é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu resultado – a casa – reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante – e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de “economia natural” dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho.

O processo descrito, em seus vários níveis e formas, constitui o modo de acumulação global próprio da expansão do capitalismo no Brasil no pós-anos 1930. A evidente desigualdade de que se reveste que, para usar a expressão famosa de Trotsky, é não somente desigual mas combinada, é produto antes de uma base capitalística de acumulação razoavelmente pobre para sustentar a expansão industrial e a conversão da economia pós-1930, que da existência de setores “atrasado” e “moderno”. (2)

Na concepção de Francisco de Oliveira, o “arcaico” e o “moderno” não produziriam, em absoluto, “duas realidades”; diferentemente, proporcionam uma natureza única, dialética e peculiar à estrutura societal dos países que chegaram com atraso na corrida industrial capitalista. Tal como na Rússia analisada por Trotsky – que, às vésperas da Revolução de Outubro, possuía uma tecnologia fabril equiparada (e às vezes superior) aos países avançados, combinada com uma estrutura agrária similar, em grande parte, à sua configuração no século XVII – o crescimento capitalista industrial brasileiro, como expôs Oliveira, operou-se sob (e a partir de) uma base econômica portadora de vários elementos bastante rudimentares. A tese de Trotsky de que a possibilidade do veloz progresso ocorrido na indústria russa foi “precisamente determinada pelo estado atrasado do país” (3) está, sem dúvida, presente na crítica à razão dualista de Oliveira. 

***

Buscando um futuro melhor, seguiremos aqui lutando, teórica e praticamente, contra o nosso trágico presente, que não para de alimentar e ser alimentado pelo pior do nosso passado, o qual, renitente, insiste em não passar. Vá em paz, Chico de Oliveira.

NOTAS

1 –  OLIVEIRA, Francisco de.Crítica à razão dualista / o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 44-45. É importante destacar que em uma atualização recente da discussão (____. O ornitorrinco. Op. cit.), Chico de Oliveira apresentou, para além das diferenças já conhecidas, os elementos de continuidade entre sua perspectiva crítica e o pensamento de Celso Furtado.

2 – Idem, p. 59-60. Grifos do autor.

3 –  TROTSKY, L. A História da revolução russa. Rio de Janeiro/Guanabara: Saga, 1967, 3 volumes, p. 28.

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Chico de Oliveira