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BRASIL

Codinome Clemente

João Paulo de Oliveira Moreira, de Niterói, RJ

Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, codinome Clemente, morreu no dia 29/06, em Ribeirão Preto (SP), aos 68 anos, em decorrência de um câncer.

“Eu estava completamente fechado com aquela coisa da ALN, do Marighella. Eu só me esqueci de uma coisa, na época nós dizíamos pátria ou morte, venceremos! Porém, nos esquecemos da terceira hipótese: nós poderíamos sobreviver e ser derrotados. Para essa eu não me preparei. E foi a pior das hipóteses para mim. Eu sofri muito. Foi um processo muito duro, até para falar isso e se recuperar enquanto pessoa.”
(Depoimento de Carlos Eugênio Paz no documentário “No olho do furacão”, dir: Toni Venturi e Renato Tapajós, 2003, 52 min)

No dia 02 de dezembro de 2009, eu tive a honra de conhecer pessoalmente o histórico militante revolucionário da Aliança Libertadora Nacional (ALN) Carlos Eugênio Paz, codinome Clemente. À época eu estava no Centro Acadêmico de História da UERJ/FFP e nós resolvemos organizar uma mesa em homenagem a Carlos Marighella. A partir da mediação do meu grande amigo e camarada Roberto Mansilla (Che) entramos em contato com Carlos Eugênio e ele topou prontamente participar desta atividade. Eu me recordo vivamente de sua fala. Logo de cara, Carlos Eugênio ressaltou a importância de não transformarmos uma mesa em homenagem a Marighella em uma efeméride, pois a maior homenagem que poderia ser feita ao revolucionário baiano era manter viva a sua memória de luta antiimperialista e por uma Revolução Brasileira.

Revolução que, segundo Carlos Eugênio, só seria possível se fôssemos nas raízes dos nossos maiores problemas históricos. Lúcido, cheio de memórias, ironias cortantes e muito bom humor, a mesa se desenrolou de maneira brilhante. Após a atividade, fomos eu, Carlos Eugênio, a sua então companheira e o camarada Che, a uma pizzaria chamada Mel na Boca (que infelizmente não existe mais) bem próxima a FFP. O assunto predominante à mesa foi música. Entre polêmicas sobre Mercedes Sosa, Rock and Roll, Led Zepellin, Beatles, samba e algumas pitadas de futebol (o Fluminense jogaria e perderia novamente para a LDU no mesmo dia), sai com a convicção de que a geração a qual Carlos Eugênio fez parte merecia todo o respeito e admiração.

Foi uma geração que viveu intensamente o espírito de uma época, com o peito aberto para entregar aquilo que eles tinham de mais valioso se necessário fosse, a própria vida. Alguns lutaram por uma revolução socialista. Outros por democracia. Em comum, todos tombaram, sofreram, passaram por momentos de abnegação e amputação de seus sonhos. Para falar de um ser social, seja ela/ele quem for, é fundamental incorporarmos em nossas análises o contexto histórico em que ele viveu, as contradições as quais ele enfrentou, a sua dimensão humana e a sua condição ou posição de classe. A tática da luta armada adotada por Clemente na sua organização (ALN) (não creio que possamos falar em “opção” numa ditadura empresarial-militar) não pode ser compreendida através de ajuizamentos de valores ou anacronismos que corroboram com o mais canhestro revisionismo historiográfico e com a própria manutenção do status quo.

Não aderir a tática da luta armada por entender que este caminho é inviável do ponto de vista militar-organizativo é uma coisa a ser debatida, porém tal interpretação revisionista mencionada acima, além de pobre, anacrônica e desrespeitosa com aqueles que tombaram na luta contra a ditadura empresarial-militar, despreza que não existe um momento sequer na luta de classes em que as coisas se dão pacificamente, sobretudo num Estado autocrático conformado sócio-historicamente por classes dominantes remanescentes da escravidão. A violência no Brasil expressa condições objetivas que ideologicamente são naturalizadas e invertidas: a escravidão vira “paz nas senzalas”; a miscigenação é romantizada; a violência policial, as chacinas, torturas etc. são parte constitutiva de um Estado que com a colaboração da mídia proprietária torna tais ações aceitáveis, porém criminaliza quem pega em armas contra uma ditadura, ocupa terras e imóveis ou atinge vidraças, lixeiras e ônibus, até porque executar sumariamente jovens negros nas favelas é algo que faz parte do “combate as classes perigosas”, mas quebrar a vidraça de um banco é inadmissível, né!

Retomando o objetivo desse breve texto, gostaria de contar aquilo que conheço de sua trajetória pessoal para que outras pessoas possam descobrir o ser humano fantástico que foi e o peso de sua luta para uma dada tradição da esquerda socialista brasileira. Afinal de contas, as nossas tradições de lutas se constroem através de experiências partilhadas e herdadas historicamente.

A clandestinidade

“Quero explodir a vida
Para que a vida continue.
Quero explodi-la em mortes
Para que a morte não perdure.”
(Mauro Iasi, “Dialética da revolução”, em Meta Amor Fases
(São Paulo, Expressão Popular, 2008).

Desde o seu falecimento no último sábado (29), circularam alguns textos e homenagens, por isso irei me deter a sua trajetória militante na luta armada, relatada por ele mesmo no documentário “No olho do furacão”. Neste documentário, matriz do material que inspirou o filme Cabra Cega, Carlos Eugênio aparece num primeiro momento com a sua face mais humana possível: fazendo a barba, preparando um café e dedilhando um violão (Doralice, de Stan Getz e João Gilberto). Os seus depoimentos focavam na dimensão afetiva da militância do período, marcada por fraternidade, companheirismo, alegrias, tristezas, festas, piadas, brincadeiras, botequins, amor, um pouco de ódio, relações bem e mal resolvidas, além de muita disciplina revolucionária nas tarefas a serem cumpridas.

Aos 21 anos tornou-se dirigente militar da ALN, após os assassinatos de Marighella e Toledo, dois militantes históricos. Seu mundo caiu quando soube da morte de Marighella. Ele nunca entendeu o porquê de não haver uma bandeira a meio-mastro em sua homenagem e como as pessoas podiam andar normalmente com a execução: “Eu demorei muitos anos para parar de chorar a morte de Marighella. Naquela época, chorávamos os nossos mortos. Andei por Copacabana e vi que estava tudo exatamente igual”.

Ao mergulhar na luta armada, Carlos Eugênio estava preparado para morrer ou vencer. Clemente viveu na clandestinidade entre 1970 e 1973 e no exílio, entre 1973 e 1984. Foi o único dirigente militar a não cair nas mãos da Ditadura Empresarial-Militar, que o condenou sumariamente a morte. Nunca se furtou em relatar a sua experiência, sem moralismos ou ressentimentos, tanto de seu cotidiano na clandestinidade quanto de suas ações militares e traumas a posteriori. O seu mergulho na guerrilha contra a ditadura implicou em entrar num labirinto aonde nunca mais pôde viver como antes.

Cortou laços com a família, amigos, amigas e teve o grande amor da sua vida, a jovem Ana, assassinada pelo regime. Este último evento o acompanhou em pesadelos e lembranças até o final de sua vida. Ele nunca deixou de reconhecer Ana como seu grande amor (ver seu depoimento em “No olho do furacão”) e reafirmou em diversos momentos que esta perda prejudicou a sua vida afetiva para sempre.

Seu primeiro aparelho no qual ficou enclausurado foi em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Ele relatou que morava com dois companheiros que saiam para trabalhar na parte da manhã e só voltavam à noite. Enquanto isso, ele não podia fazer nenhum barulho e aguardava-os voltar com um sanduíche e uma coca-cola quente. Aqui fica evidente que o cotidiano da clandestinidade era muito diferente do de uma pessoa comum, longe do romantismo de quem acha “bonito” a abnegação de viver nessas condições, enclausurado e desprovido de um contato efetivo com “o mundo exterior”.

Logo depois foi para São Paulo desenvolver os trabalhos militares da ALN. Descreveu a sensação contraditória da tomada de consciência na primeira vez que tirou a vida de alguém, num tiroteio com a polícia na Vila Prudente, encarando o desafio das contradições entre ser humanista e mergulhar a fundo numa tática que implicava em ferir, naquela conjuntura, o seu humanismo. Tal qual Mersault, personagem de Albert Camus em “O Estrangeiro” que ao disparar o seu revólver no “árabe” profere: “Percebi que havia destruído a harmonia do dia”. Clemente nunca negou que matar é uma contradição. Nunca romantizou ou se vangloriou com isso, dado que sempre teve a dimensão de que a causa maior do socialismo era o bem estar do ser humano, todavia, ele sempre soube que contradições estão colocadas para serem encaradas sem valorações morais, mas sim com a firmeza de quem defende outra ordem social radicalmente distinta da que está colocada.

Ainda em São Paulo alugou um quarto num apartamento de uma senhora, a Dona Maria, por quem desenvolveu uma relação afetiva de extremo carinho e amor platônico. Clemente relatou que se fosse numa outra conjuntura e em condições distintas, poderia ter se desdobrado um romance entre ambos. Em um momento de descontração e “fuga” da brutalidade que era a vida na clandestinidade, Clemente a levou para um baile chamado Baile da Saudade, muito famoso na rádio e nos clubes da capital paulista. Ambos dançaram a noite toda e ainda receberam um diplominha ao final da noite, o que deixou Dona Maria efusiva de felicidade. Este evento marcou o estreitamento dos laços afetivos entre Dona Maria e Clemente.

Após a polícia bater no apartamento de Dona Maria a sua procura, Clemente teve de partir para o exílio. Dona Maria o salvou, dizendo aos policiais que o rapaz que ali morava era seu sobrinho. A despedida de ambos foi extremamente dolorosa, com Carlos Eugênio reafirmando que não era terrorista e que estava lutando contra uma ditadura assassina a serviço do imperialismo: “Eu peguei em armas, no meu país, para derrubar uma ditadura. Derrubar a ditadura e lutar contra o imperialismo”. Dona Maria entendeu, eles se abraçaram, ele disse que não voltaria mais, pegou suas metralhadoras e granadas, guardou numa bolsa e foi embora. Nunca mais se viram.

No exílio em Paris, teve de lidar com traumas e fantasmas das perdas de companheiras, companheiros e da derrota político-militar. Mergulhou na heroína como rota de fuga para lidar com seu sofrimento e nunca escondeu isso, muito pelo contrário, sempre que abordou este assunto, lidou como um tema de saúde mental e pública, sem moralismos ou recriminações, demonstrando grandeza, sensibilidade e coragem ao enfrentar dilemas individuais que estão inseridos num escopo muito maior. Fez 10 anos de psicoterapia e conseguiu voltar à música, uma de suas grandes paixões, em um movimento natural de quem sabia muito bem que as mesmas motivações que o levaram à arte também o fizeram pegar em armas para defender uma revolução. A arte, entendida por Carlos Eugênio, era a transgressão da ordem vigente e a possibilidade da expressão humana da emancipação do ser social.

Após o seu retorno do exílio trabalhou na Ouvidoria do Rio de Janeiro, escreveu suas memórias em dois importantes livros “Viagem à luta armada” (1996) e “Nas trilhas da ALN” (1997), além de ter dado aulas particulares de música até o final de sua vida. Continuou na militância e travou o bom combate como palestrante em diversos eventos em que era convidado para relatar suas memórias e filiou-se ao PSB.

Ao término do documentário No olho do furacão, os militantes entrevistados, entre eles Carlos Eugênio, aparecem tocando as suas vidas pessoais ao som de “Cajuína”, de Caetano Veloso. Ora, não poderia ter melhor trilha musical para se lembrar de Clemente. “Apenas a matéria vida era tão fina” de um revolucionário que se fez e faz luz, memória e luta. Como diria João Guimarães Rosa, as pessoas não morrem, elas ficam encantadas.

Que Clemente tenha a sua memória viva, lembrada, respeitada, pois ele foi um sobrevivente com dignidade. A sua memória será chama para que a nossa luta seja continua, até que esse modo de produção de tristezas chamado capitalismo, que nos tritura e mortifica cotidianamente seja derrotado. Clemente está encantado. Companheiro Clemente, presente! Hoje e sempre!