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BRASIL

Cento e cinquenta dias de (Des) governo de mediocridades e insanidades (Parte 2)

Marco Antônio Monteiro Coutinho, de Niterói (RJ)
Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Presidente Jair Bolsonaro deixa o Ministério da Defesa após almoço com ministros.

No primeiro artigo, argumentava sobre a importância dos partidos políticos e da impossibilidade de existir partido perfeito. Não é possível dar tudo certo em quatro ou oito anos de governo; faz parte da dinâmica da luta de classes, onde existem centenas de interesses em jogo, dezenas de variáveis em conflito. O que deve ser importante na hora de escolher um partido é sua posição dentro da luta de classes. A luta de Classes é uma luta política. É a expressão entre a disputa de interesses dentro de qualquer sociedade dividida em classes sociais; e a sociedade capitalista é uma sociedade de classes. Política tem lado e Partido tem Classe! É indispensável perceber que a luta de classes é a essência da luta política! O Congresso Nacional, Câmara e Senado, é a materialização e a síntese da luta de classes.

“As condições econômicas primeiro transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, essa massa já é uma classe em relação ao capital, mas não o é ainda para si mesma. Na luta, da qual assinalamos apenas algumas fases, essa massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesse de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política.” (Miséria da Filosofia. Karl Marx. Pag. 146. Boitempo Editorial, 2017).

Se o trabalhador não perceber e compreender isso, vai passar a vida toda acreditando que política não presta, que lá só tem corrupto, bandido e oportunista. Vai odiar a política e os políticos e dessa forma irá se afastar da política assim como o diabo foge da cruz. É exatamente este o objetivo, da grande mídia corporativa – quando todos os dias, em seus telejornais, desacredita e desmoraliza a classe política -, afastar as pessoas de bem, da política, para reinar sozinha. É a velha e eficiente tática de dividir para reinar. Se você se inclui na parcela da população que odeia Marx e a esquerda, leia apenas o capítulo oito do livro 1 de sua principal obra “O Capital”; e ficará chocado como se extraía lucro às custas da exploração de crianças menores de treze anos e outras barbaridades que Marx denunciava; ou leia o capítulo treze, para entender a dinâmica dialética da acumulação capitalista com todas as suas contradições e limitações. Provavelmente você irá compreender por que Karl Marx é tão odiado pela classe dos grandes capitalistas. Leia e tire suas próprias conclusões. Pare de deixar o destino de sua vida e de sua família nas mãos de mitos e da grande mídia corporativa, cujo interesse dentro da luta de classes é defender o capital, é garantir a reprodução e acumulação de capitais. Se você acredita que alguém de outra classe social vai defender seus interesses, ou você é muito inocente ou gosta de ser enganado. A luta de classes é luta de interesses. Interesses, estes, que só podem ser defendidos pela própria classe. Somente a classe trabalhadora pode emancipar a classe trabalhadora.

Para nós, da classe trabalhadora, o que interessa é se o partido vai se colocar a favor da luta em defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores. É preciso deixar de votar com idealismos. E isto não significa abrir mão de nossas utopias. O que estava em jogo nas eleições passadas, e que muita gente não pode perceber, não conseguiu enxergar ou foi impedida de constatar, é que existiam dois projetos de país em disputa. Numa visão macro, podemos afirmar que um, privilegiava os interesses do grande capital em relação à reprodução e acumulação de capitais em escala ampliada, visando resgatar as taxas de lucro das empresas, fortemente reduzidas com a crise estrutural do capital; e o outro, acenava em direção a um projeto de sociedade que valoriza a vida numa perspectiva mais justa de combate às nossas grandes desigualdades sociais e regionais, sem deixar de observar os impactos ambientais e suas consequências para o meio ambiente em que trabalhamos e convivemos. O pleito se tratava disso, decidir entre civilização ou barbárie! Uma considerável parcela do eleitorado, por conta da manipulação e usurpação da informação, promovida pela mídia capitalista, cujo interesse é também acumular grandes capitais, foi impedida de perceber o que realmente estava em jogo! Flertaram com o neofascismo, com o que tinha de pior na política, um candidato franco-atirador que nada tinha a perder. Agora terão que pagar um tributo alto por sua miopia política! O grande problema é que milhões que não compactuaram com este projeto, sofrerão as consequências também! É o preço da “democracia participativa” faz de conta!

No entanto, a influência sobre o eleitor também tem seus limites; parte da população mais simpatizante com as propostas da “esquerda” e uma parcela mais consciente e atenta aos noticiários, souberam fazer uma leitura não submissa aos interesses do capital e não foram tão influenciadas pelo discurso conservador e mecanicista da mídia corporativa. Prova disso é que, apesar de todo bombardeio midiático, a mídia alternativa de esquerda conseguiu neutralizar parte dos ataques e, com isto, teve um papel importante para reduzir o estrago causado pela chuva de notícias “fake news” disparada por grupos de interesse que apostavam na candidatura Bolsonaro. Mesmo com todo este cenário político negativo, ampliado pela mídia capitalista e com a conjuntura econômica desfavorável por conta da crise econômica que ainda mantinha mais de 40 milhões de desempregados ou fora do mercado de trabalho, a esquerda, além de ir para o segundo turno com o Partido dos Trabalhadores, garantiu ainda a maior bancada para a Câmara Federal; elegeu cinco governadores, sendo dois do PT e três de suas alianças políticas. O Psol, principal partido da esquerda, elegeu cinco deputadxs estaduais só no Rio de Janeiro e amentou em 67% sua bancada federal, agora com dez deputadxs.

O que ficou claro na eleição de 2018 é que a maioria da população não via em Bolsonaro alguém capaz de representar um projeto político para o Brasil. Com todo o ataque da mídia capitalista, o candidato do PT conseguiu conquistar 47,04 milhões de votos (45%). Votos nulos e brancos somaram 11,09 milhões. A alta abstenção – que se caracteriza pela sensação de descrédito na política e a convicção de que nada iria mudar com seu voto – chegou a 31,37 milhões de votos. Somados representam 89,51 milhões de votos, ou seja, 61% dos eleitores. Bolsonaro, com todo apoio da mídia corporativa, o episódio da facada e a chuva de “fake news”, conseguiu conquistar 57,80 milhões de votos, que representam 39% do total de eleitores aptos a votar. O que, convenhamos, é muito pouco para legitimar, de fato, um presidente que não dispõe de um mínimo de capacidade e interlocução para negociar com as demais forças políticas, os movimentos organizados da sociedade e que despreza inclusive os outros dois poderes, o legislativo e o judiciário, numa conjuntura econômica, social e política tão difícil como a que atravessamos no momento.

Enquanto não avançarmos na discussão e na regulamentação em relação à democratização dos meios de comunicação, vamos continuar reféns dos interesses da grande mídia corporativa e da ditadura do capital! Mas não poderia ser diferente, uma vez que a grande mídia corporativa é também grande capitalista e tem todo o interesse em preservar o “status quo”. Não por acaso é considerada o “Quarto Poder” do Estado. Isto representa um grande desafio e uma enorme dificuldade na luta ideológica para discutir com a classe trabalhadora sobre a alternativa socialista que defendemos ser a melhor forma de sociedade para a maioria da população. É preciso deixar bem claro que, ao participar de eleições burguesas controladas pela “democracia capitalista”, não está em jogo a possibilidade de implantação de um sistema socialista. Qualquer partido de esquerda que disputa eleição no Brasil sabe dessa impossibilidade prevista na legislação eleitoral e em nossa CF88. Para se alterar o regime político ou sistema de governo é preciso de aprovação através de plebiscito. Além dessa possibilidade, somente por meio de revolução popular com um mínimo de apoio de frações das forças armadas em conjunto com um exército popular revolucionário bem treinado.

Nada disso foi considerado. Os currículos traduzem a diferença abissal entre os dois candidatos. Bolsonaro era 1º tenente promovido a capitão da reserva e deputado federal durante 28 anos, onde se especializou em trocar de partido; foram nove ao todo, mas apenas dois projetos de lei apresentados. É pertinente lembrar que seu currículo conta com várias atrocidades defendidas ao longo desses anos, com destaque para seu pronunciamento ao votar a favor do impedimento da presidenta Dilma, quando homenageou um dos maiores torturadores da ditadura; o já falecido coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que materializa o que tem de pior no ser humano; o desprezo pela vida, à liberdade de expressão e o desrespeito às ideias que não sejam as suas.

Fernando Haddad, é ex-prefeito de São Paulo, a maior cidade do país, acadêmico com trabalhos reconhecidos em diversos países, advogado, professor de ciência política da USP, uma das melhores universidades do país, onde se graduou em direito, mestre em economia e doutor em filosofia. Foi ainda, Subsecretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de SP. No governo Lula, integrou o Ministério do Planejamento. Se destacou quando foi nomeado Ministro da Educação em 2005, onde permaneceria até início de 2012. Foi durante sua gestão que houve a criação do Sistema de Seleção Unificada (SISU), implementação da Universidade Aberta do Brasil, do Programa Universidade para Todos (ProUni) e ampliação do FIES e do Enem.

Porém, é importante registrar que o PT, apesar de reconhecido pela população como um partido de “esquerda”, se caracteriza já há muitos anos como um partido de centro-esquerda. Partidos de “esquerda” reivindicam o socialismo. E isto, o PT foi deixando de lado, pouco a pouco, logo após a eleição de 1989 e, de forma mais aberta, a partir da eleição de 1994. Isto é um fato. Lula afirmou abertamente essa posição em entrevista de página central no Jornal do Partido. Mas isto, não deve ser encarado pelos seus filiados e simpatizantes como um demérito. É uma linha político-ideológica e estratégica definida pelas resoluções de Encontros Nacionais e Congressos do Partido.

O Programa Democrático Popular (PDP), ainda que não se caracterize como um programa socialista, foi sendo sistematicamente rebaixado em suas principais pautas. O projeto político da Frente Brasil Popular (FBP) tem um caráter amplo e ambíguo sobre o socialismo. Podemos até caracterizar o PT como um partido de esquerda, mas não é um partido, dentro do cenário político, da esquerda socialista. A partir de 1994, o projeto político do PT e sua política de alianças esboçavam nítida prioridade em ampliar sua base eleitoral com claro objetivo de disputar eleições com capacidade de se consolidar como alternativa real de poder. Os fins passaram a dar a linha política e ideológica do Partido dos Trabalhadores. Nos seus dois governos, a busca sempre foi “democratizar o capital”; como se isto fosse possível. Nesse sentido, não é possível negar que após a eleição de Lula, em 2002, os principais interesses de diversas frações da burguesia brasileira ficaram preservados com o “capitalismo reformado” de seu governo.  Os governos petistas sempre se acomodaram aos limites da “democracia burguesa”, a mesma que colocou Lula na cadeia na primeira oportunidade, na primeira conjuntura política e econômica desfavoráveis e de fragilidade para o governo petista, com objetivo de retomar o poder central por meio de mais um Golpe de Estado.

“Mas foi no I Congresso, em 1º de dezembro de 1991, que o PT condensou esse conjunto de inflexões políticas que estavam dispersas e presentes desde a metade dos anos 1980. As resoluções aprovadas explicitam que o Partido dos Trabalhadores havia se tornado um partido reformista preocupado em “radicalizar a democracia” brasileira; e que essa radicalização seria de agora em diante o grande princípio do socialismo petista. “Para o PT, socialismo é sinônimo de radicalização da democracia”  (Resoluções de Encontros e Congressos – 1979/98. Pag. 436. São Paulo: Fundação Perseu Abramo).

Mas nada disso interessava; os currículos, a falta de um programa político, assim como a ausência de Bolsonaro aos debates não eram relevantes. O trabalho da mídia atingira seu objetivo. A única coisa importante era tirar o PT, que a partir de uma avaliação, totalmente distorcida e equivocada, afirmavam ter “quebrado” o Brasil; desprezando intencionalmente e por puro oportunismo político-eleitoral os efeitos da crise econômica de 2008 que abalou toda a economia mundial. Durante as campanhas o que mais se ouvia era que o PT, a esquerda, tinha quebrado o país. Não é isto que os números mostram. Só para se ter uma ideia do nível de manipulação midiática de nosso jornalismo tupiniquim, podemos citar três importantes indicadores econômicos para desmontar a farsa da comunicação e manipulação ideológica:

1 – Superávit Primário: durante os oito anos do governo Lula, o Brasil teve superávit primário em suas contas durante todos os anos. Nenhum outro governo tinha conseguido isto no Brasil. Mais nada disso foi reconhecido quando a crise se instalou no governo Dilma. Hoje, no governo Bolsonaro, a busca pelo superávit primário, tornou-se uma verdadeira obsessão e, para isto se concretizar, estão dispostos a entregar até mesmo a Previdência Social, o SUS, a CEF, o BB e a PETROBRAS.

 

2 – Dívida Pública Federal Interna: após atualizar o estoque das dívidas públicas, de todos os presidentes, para o final de seus mandatos, foi apurado o seguinte resultado para o crescimento da dívida em cada governo: FHC – Jan/1995 a Dez/2002: 190,4%; Lula – Jan/2003 a Dez/2010: 5,6%; Dilma: Jan/2011 a Jun/2016: 14,7%; Temer – Jul/2016 a Dez/2018: 55,9%.

Como pode ser observado nas planilhas acima, a dívida pública federal interna durante o governo FHC cresceu 190,4%, passou de R$ 153 bilhões em jan/95 (R$ 307 bilhões em valores de dez/2002) para R$ 892 bilhões em dez/2002. Já o governo Lula, herdou os R$ 892 bilhões (R$ 1,398 trilhões em valores de dez/2010) deixados pelo governo tucano e aumentou a dívida em apenas 5,6%; quando entregou para sua sucessora, Dilma Rousseff, uma dívida de R$ 1,476 trilhões. Diversas análises, que não atualizam a dívida e simplesmente verificam o crescimento do endividamento com os dados do final do mandato em 2002 em comparação com o início do governo em 1995 (com a dívida herdada do final do governo Itamar Franco), apontam crescimento de 483%! Não é necessário manipular dados ou torturar os números para eles falarem o que se deseja. Não é preciso isto para demonstrar que o governo FHC foi o responsável pelo maior endividamento do Estado brasileiro nos últimos trinta anos.

 

3 – Taxa de Desemprego Média e Geração de Empregoscomo pode ser verificado nos gráficos abaixo, o governo Lula reduziu o desemprego de 12,4% no primeiro ano de seu mandato para 6,7% no último ano. Apesar de sua taxa média ser maior que o governo Dilma, o governo Lula gerou mais de 15 milhões e 380 mil empregos nos seus oito anos de mandato. Um recorde de mais de 1 milhão e 900 mil empregos gerados, por ano, que levará muito tempo para ser superado. Já o governo Dilma, apesar de uma taxa média bem menor do que a verificada no governo Lula, ela iniciou o seu governo com uma taxa de desemprego de 6,0% em 2011, e elevou para uma taxa de 9,5% até maio de 2016, quando foi afastada pela Câmara Federal. O que demonstra claramente que a taxa média nem sempre é um bom indicador. No entanto, deve-se destacar que a taxa de desemprego continuou a cair nos primeiros quatro anos de seu governo, quando atingiu o menor patamar de desemprego, quando a taxa chegou a 4,8%.

 

A partir dos três indicadores acima, afirmar que os governos do PT, ou a esquerda, quebrou o país é no mínimo má-fé, desprezo pela verdade. Não tem nada de ideologia ou preferência política. Era sabido que o enredo já estava definido. A maioria da população fez a leitura do processo eleitoral como tinha que ser feita; em linha com as ideias difundidas e repetidas pela grande mídia, dia e noite nos telejornais nos últimos quatro anos antes das eleições, ou seja, a partir do segundo mandato da presidenta Dilma, que teve duração curta devido ao processo de impeachment aberto por uma Câmara totalmente submissa aos interesses do grande capital. É pertinente lembrar que o próprio Vice-presidente Michel Temer admitiu, ao vivo em rede nacional de TV, em entrevista na Band, que a presidenta Dilma Rousseff sofreu processo de impeachment porque não cedeu à chantagem de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, que corria risco de ter aprovado contra ele, abertura de processo de investigação na Comissão de ética da Câmara Federal, caso não tivesse apoio do PT. A encenação foi tão hipócrita que os próprios senadores não tiveram moral e coragem de votar a favor da inelegibilidade da presidenta em futuras eleições. Não podemos desprezar também o “efeito facada”. Antes do episódio do atentado, até hoje cheio de dúvidas e interrogações, seu desempenho nas pesquisas de opinião pública não conseguia romper a barreira de 25% dos votos em disputa. Após o “efeito facada” somado ao “efeito cumplicidade” de seus eleitores e milhões de eleitores ainda indecisos, e ao “efeito solidariedade” de uma parcela do povo brasileiro, sua aceitação passou a subir dia após dia. Com a facada que levou, fruto de armação ou não, ganhou também diversos bônus na corrida eleitoral: não precisou mais, discutir o “Programa de governo” que não tinha, não precisou mais comparecer aos debates, que tanto tinha medo de se expor, pois tinha se transformado em vítima; passou a surfar grandes ondas sem sair do leito do hospital; e o mais importante, não precisou mais abrir a boca, o que se tratando de Bolsonaro era um superbônus que o elevaria ao nível mais alto da disputa eleitoral. A facada se transformou no maior trunfo de seu currículo, com poder de desbancar mestrados e doutorados.

Também é indispensável considerar em nossa crítica que a eleição de Bolsonaro e esta onda com jeito de ressaca de extrema direita com forte viés neofacista, não pode ser creditada somente ao papel da mídia capitalista corporativa; é preciso levar em conta que não foi só o ódio de classe que motivou a classe média e média-alta, formadora de opinião, votar em Bolsonaro. Deve-se considerar também que uma parcela significativa dessas classes, mesmo antes da crise e da viabilidade eleitoral do capitão-deputado, viu seus privilégios “ameaçados”, quando percebeu que seus filhos teriam que disputar com pessoas mais pobres uma vaga na Universidade. Quando se sentiu incomodada com os milhares de brasileiros, normalmente usuários de ônibus, que passaram a frequentar os aeroportos do país. Sentiu-se igualmente “ameaçada” em seu projeto social de classe média a ostentar o status de classe média-alta, quando olharam em seu retrovisor e viram que milhares de famílias da classe “D” ascenderam à classe média e puderam adquirir seu carro próprio e disputar um espaço nas rodovias e, em sua visão elitista, “tumultuar” o trânsito das “suas” cidades. Não suportaram dividir os melhores restaurantes e as poltronas vermelhas dos teatros com aqueles que sempre imaginaram existir apenas para servi-los do outro lado, seja na cozinha do restaurante ou na coxia dos teatros, sempre fora de cena. Não suportaram ver a Senzala adentrar à Casa Grande.

Esta onda de “bem-estar social” trazida principalmente nos oito anos da “Era Lula”, ainda que bem distante de um projeto socialista, mas com crescimento econômico do produto interno numa média de 4,5% ao ano e de grande melhora no poder aquisitivo das classes “C” e “D”, devido ao crescimento real dos salários, gerou também um tsunami de ódio de classe e preconceitos sociais enraizados nas classes média e média-alta do país, que sempre viu nos mais pobres apenas uma condição social que sempre existiu e sempre deverá existir, ou seja, é preciso manter a plebe em seu lugar, uma vez que no trem-bala do capitalismo não tem lugar para todos.

Somado a tudo isso, tinha também diversos fatores e elementos conjunturais que favoreciam o surgimento da figura mais perigosa em uma disputa eleitoral, o “Salvador da Pátria”, aquele que afirma possuir poderes para resolver, em um ou dois anos, nossos principais problemas estruturais, frutos da omissão do Estado provedor de políticas públicas e da redução sistemática de investimentos em saúde, educação e segurança pública durante décadas.

Bolsonaro dispunha de praticamente todas as características necessárias para desempenhar o papel deste “Deus ex machina” que aparece no imaginário de milhões de brasileiros como aquele capaz de resolver os problemas que a conjuntura política impunha no momento. Apesar de não ter os atributos mínimos necessários para disputar um pleito da envergadura do cargo de presidente do Brasil, isto não era, naquele momento, o mais importante. Apesar de não ter um programa definido, um projeto para o Brasil e não ter o interesse de debater durante o processo eleitoral, o mínimo que a população poderia exigir para quem pretende governar o país; temos que admitir que a candidatura Bolsonaro se encaixava perfeitamente neste “Deus ex machina” ou neste “Salvador da pátria” que pudesse personificar esse projeto de Brasil arcaico, racista, patriarcal, autoritário, flertando com o neofascismo e que acenava e prometia resgatar a moral, o “Brasil acima de todos”, “Deus acima de tudo”, o velho e eficiente discurso de varrer a corrupção; num projeto político totalmente fora da realidade e incompatível com o século XXI e que certamente nos levará a um grande retrocesso político, econômico e principalmente social.

Todo o enredo produzido, pela grande mídia corporativa, o “Quarto Poder”, com apoio de fração expressiva dos três poderes constituídos e uma parcela conservadora da população, caminhava para reeditar o macabro filme “Casa da Dinda”, produzido em 1989 e protagonizado também por um ator até então desconhecido do grande público.

Mas para que este cenário político caótico pudesse se concretizar, além dos fatores econômicos e sociais, principalmente o fator financeiro, no bolso do povo, tinha que se manifestar. Por mais que o governo tente amenizar e esconder da população nos telejornais diários, o problema em nosso Orçamento Federal, para garantir o pagamento de juros da dívida pública federal – em média, mais de R$ 300 bilhões anuais -, através de aumentos sucessivos de ‘superávit primário’ (Receitas do governo (-) Despesas do governo sem computar as despesas com pagamento de juros e encargos da dívida pública), esta estratégia tem vida útil decretada, uma vez que as crises econômicas são cíclicas e portanto de tempos em tempos não é possível sustentar esses superávits primários pelos motivos óbvios de queda de diversas receitas que compõem nosso orçamento, como arrecadação de tributos e contribuições previdenciárias, que despencam toda vez que uma crise chega impondo grande crescimento do desemprego e aumento da pobreza. Com o desemprego em alta e o consumo das famílias sendo reduzido a cada trimestre, a desaceleração e posterior queda de nosso produto interno com consequente agravamento da redução na arrecadação de impostos foi questão de tempo.

Foi essencialmente isto que ocorreu depois de 2014, como resultado, ainda que tardio, da crise do “subprime” – hipotecas de alto risco -, que estourou em 2008 nos EUA, mas, que começou a impactar nossa economia de forma mais acentuada somente a partir de 2014, com crescimento de nosso PIB de apenas 0,5%; para finalmente despencar em 2015 com resultado negativo de -3,8% e -3,6% em 2016, em consequência da forte desaceleração econômica da China, igualmente abalada com a crise americana, que impôs uma brutal queda também de seu produto, a partir de 2008, quando a taxa de crescimento do PIB chinês caiu de 11,9% em 2007 para 6,7% em 2016. Já são quase dez anos de queda praticamente contínua em seu produto interno, observado no gráfico abaixo.

 

É indispensável observar que a economia chinesa é muito dependente das exportações para o mercado americano, sendo não por menos o principal parceiro comercial da China. O superávit comercial com os EUA chegou a US$ 323 bilhões em 2018! Ou seja, qualquer crise econômica em solo americano impacta imediatamente a economia chinesa. Por isso, a pisada no freio a partir de 2010. Com a crise americana, a China perdeu grande parte de seu principal mercado exportador. No comércio bilateral entre China-Brasil, acontece a mesma relação de dependência; somos diretamente atingidos pela desaceleração do crescimento econômico chinês.

Naturalmente que esta nova conjuntura desfavorável impactou de forma determinante suas decisões de investimentos e desenvolvimento de novos empreendimentos ao redor do mundo, assim como sua capacidade e interesse em manter o ritmo de suas pesadas importações de produtos do Brasil; causando graves consequências e reflexos destrutivos em nossa economia altamente dependente de exportações, para este país, de diversas “commodities”, como soja, minério, petróleo, açúcar, carne e café.

Para se ter uma ideia de nossa dependência do mercado consumidor chinês, com mais de um bilhão e trezentos milhões de consumidores, basta observar que dos US$ 22 bilhões exportados de soja em grão, em 2018, US$ 17,5 bilhões destinavam-se a China, ou seja, 80% do total exportado. A China é responsável por 48% do superávit da Balança Comercial brasileira.

Se existe algum elemento “positivo” que esta crise pode ter trazido para a economia americana, com certeza o declínio momentâneo e conjuntural do Dragão Chinês está entre eles. Mas o governo americano sabe que esta crise, que impactou a economia asiática, não será suficiente para mudar seu destino nos próximos trinta anos. Embora não tenha o menor consenso e por mais polêmico que seja, grandes estrategistas políticos de diversos países do mundo afirmam que os EUA terão o mesmo destino de grandes potências mundiais do passado, como Egito, Grécia, Roma, Portugal, Espanha e Inglaterra. Deixará de ser a principal potência econômica e política do mundo e, em consequência, deixará de exercer também a hegemonia geopolítica no planeta. Não se sabe ainda quando será, mais sabe-se que, num futuro não muito distante, Águia americana dará passagem ao “velho” e potente Dragão Chinês. No futuro, o Dragão Chinês será hegemônico; até ser suplantado por outra potência em ascensão. Mais esta história, talvez ainda não tenha começado a ser escrita.

No entanto, todos esses fatores econômicos e políticos, assim como os fenômenos conjunturais foram desprezados no intuito de derrubar um governo legitimamente eleito e usurpar o poder para benefício de grandes grupos transnacionais sedentos em encontrar um porto seguro para abrir novos mercados consumidores e propiciar a retomada do crescimento de seus lucros, que tinham cessados em outros mercados mais atingidos pela grande crise estrutural do capital que paralisou a maior economia do mundo.