Pular para o conteúdo
BRASIL

O assalto a um fundo público dos trabalhadores: o caso do Rioprevidência

Adhemar S. Mineiro [1], Danilo George [2] e Helena Marroig [3]

Nos últimos anos, o Rio de Janeiro tem passado por uma das maiores crises de sua história. Os serviços públicos como saúde e educação entraram em estado de calamidade, funcionários públicos ficaram meses sem receber e o desemprego e a pobreza no estado explodiram. Os últimos ex-governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão (2007-2018) foram presos, assim como vários dos gestores públicos que passaram pelo governo neste período, acusados por atos que dilapidaram o orçamento estadual.

Neste quadro trágico, o debate sobre a crise fiscal veio tomando forma. As contas do estado não fechavam, com déficits gigantescos e falta de dinheiro em caixa para as obrigações mais básicas. O diagnóstico da direita logo se volta para o elemento de sempre, o excesso do gasto público e os salários do funcionalismo. No centro desta discussão, os funcionários públicos, e sua previdência. A previdência do estado, o Rioprevidência, tem sido alvo de ataques, como um fundo insustentável, em que as benesses dos servidores levaram à falência do estado. É essencial desmistificar essa discussão e entender mais a fundo a previdência dos servidores do Rio de Janeiro.

O Rioprevidência é uma autarquia criada ao final dos anos 1990, no quadro da crise do Plano Real. Com a forte desvalorização do real no final da década, o governo federal fecha acordos com o Fundo Monetário Internacional em 1998/1999, em meio a enorme crise cambial e fiscal. A negociação envolvia a instalação de uma política econômica conservadora, o chamado “tripé macroeconômico”. Com essa nova política vem um quadro de enormes restrições fiscais, a renegociação das dívidas dos níveis subnacionais (Estados e Municípios) com a União, e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Os estados foram estimulados a criar regimes próprios de previdência, separados do orçamento corrente em fundos, o que retiraria os inativos da despesa de pessoal e daria maior flexibilidade para os gastos.

É nesse quadro que é criado o Rioprevidência, em 1999. O então governador, Anthony Garotinho cria um fundo de previdência, repassando todos os gastos dos funcionários então aposentados e dos que em seguida se aposentariam. Entretanto, a criação do Rioprevidência não repassa os recursos com que os servidores já haviam contribuído, receitas que poderiam dar conta do pagamento dos funcionários inativos que agora seriam responsabilidade do Rioprevidência. Passaram-se as despesas, mas as receitas ficaram com o estado, criando um desequilíbrio de origem. Assim, o fundo já nasce desequilibrado para dar conta de suas obrigações presentes e futuras.

Diante disso, o governo se compromete a colocar receitas no Rioprevidência, para sanar esse descompasso. Uma das mais importantes receitas transferidas para o Rioprevidência foram os royalties de petróleo, em 2006. O Governo Garotinho havia conseguido negociar um acordo com o governo FHC, destinando os royalties e participações especiais, uma das principais receitas do estado, de modo a permitir o pagamento corrente dos funcionários aposentados (inativos).

Hoje, constituem receitas do Rioprevidência as contribuições de servidores e do Estado, royalties e participações especiais do petróleo, Certificados Financeiros do Tesouro Nacional (CFTs) e imóveis colocados para capitalizar o fundo, assim como créditos da dívida ativa, créditos de parcelamento do ICMS, créditos do Fundes (Fundo de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio de Janeiro), créditos do FREMF (Fundo de Recuperação Econômica dos Municípios Fluminenses), e outros, como saques de depósitos judiciais e extrajudiciais.

Diante desse suposto “arsenal” de recursos, o governo sempre utilizou o Rioprevidência para alargar sua capacidade de gastos. Assim, toda vez que sobravam recursos para a previdência, o governo retirava dinheiro dela, através de decretos ou simplesmente deixando de repassar o que lhe era devido. Entre 2005 e 2015, foram 14,3 bilhões que não entraram nos cofres do Rioprevidência, sem o ajuste de juros, segundo relatório do TCE. Esse dinheiro paga mais que um ano da folha do Rioprevidência. Sem esses desvios, a enorme crise que atingiu os aposentados do estado poderia ter sido refreada.

Essa estratégia de onerar o Rioprevidência para obter mais recursos para o Tesouro estadual impediu que o fundo dos servidores pudesse formar um colchão de segurança, uma reserva, que poderia proteger os aposentados num momento de crise. E induziu um crescente desequilíbrio na previdência, um déficit.

Esse déficit iminente servia para ancorar um discurso de contra-reforma na previdência. Assim, a partir de 2012, o governo realizou mudanças estruturais no fundo, mudanças que iniciaram uma transição para um regime financeirizado de previdência. Foi estabelecido um teto previdenciário, e uma previdência complementar, o RJ Prev. Foi feita uma segregação de massas, em que os novos servidores passaram a entrar em um regime capitalizado. Com isso, as aposentadorias dos servidores, passaram a depender cada vez mais de aplicações em mercados financeiros.

Os servidores que ingressaram antes da reforma seguiam dependendo das receitas correntes e ameaçados pelo desequilíbrio estrutural criado pelo governo do estado. Ao invés de colocar recursos para esses servidores, o estado buscou alternativas.

Devemos lembrar que os avanços na produção de petróleo, especialmente com a descoberta do pré-sal, ampliavam o potencial financeiro do Rioprevidência. Com projeções de receitas esperadas astronômicas, não é surpreendente pensar que os gestores fluminenses ficassem atraídos pelas imensas reservas atreladas ao fundo. Assim, ao invés de transferir receitas para o Rioprevidência, o estado começou a elaborar operações de antecipação de royalties, em que levou a autarquia a buscar sua sustentabilidade também no mercado financeiro. 

Nessas operações de antecipação, o Rioprevidência receberia um valor que espera receber no futuro em royalties e participações especiais, entregando esses recursos futuros em troca, e mais uma taxa, um custo para a previdência. Em 2013, foram feitas operações de antecipação no mercado interno, com o Banco do Brasil e Caixa Econômica. Mas em 2014, o governo opta por aumentar a aposta, e antecipar bilhões no mercado financeiro externo, emitindo títulos em Delaware.

Para se ter uma dimensão do tamanho dessas operações, foram captados ao todo 8,4 bilhões para o Rioprevidência, o correspondente a 97% do que o Estado do Rio recebeu de Royalties em 2014. Uma operação deste porte, em dólar, certamente representou um risco significativo.

Acima de tudo, foi uma operação obscura, com um contrato de milhares de página assinado sem tradução, e nenhum debate público. Para a segurança dos investidores, todos os royalties do Rioprevidência foram transferidos para uma “empresa” (na verdade, um “veículo financeiro”) no exterior, a Rio Oil Finance Trust, sediada em Delaware. Os aposentados só receberiam os royalties depois que os investidores fossem pagos. As prestações de contas para o estado não são previstas. Até agora, o TCE e o Ministério Público, em investigações deste processo, não conseguiram acesso a um balanço financeiro ou qualquer prestação contábil desta empresa. Delaware, um famoso paraíso fiscal, impede a transparência da operação, e na definição do Prof. Ladislau Dowbor, definindo paraísos fiscais, um desses:

“Não se trata de “ilhas” no sentido econômico, mas de uma rede sistêmica de territórios que escapam das jurisdições nacionais, permitindo que o conjunto dos grandes fluxos financeiros mundiais fuja das suas obrigações fiscais, escondendo as origens dos recursos ou mascarando o seu destino.[4]

Esse processo sombrio logo cobrou seu resultado. Em 2015, quando começa a cair o preço do barril de petróleo, fica claro que o contrato possuía cláusulas lesivas para o estado, como, por exemplo, a que aumentava permanentemente a taxa de juros da operação, a tornando muito mais cara. O governo do estado negociou com os investidores, mas conseguiu chegar a um acordo ainda pior. Aceitou pagar ainda mais na operação, com o único benefício de poder continuar emitindo títulos, ou seja, fazer novas operações de antecipação no futuro.

Ao final, pelos cerca de 8 bilhões antecipados, o Rioprevidência ficou devendo quase 19 bilhões aos investidores, uma dívida que vai até 2028. Como resultado, os royalties para a previdência despencaram – em 2016, praticamente nada foi para o Rioprevidência – o que resultou em atrasos de até 4 meses nos pagamentos dos aposentados.

E apesar do fracasso da operação Delaware, o governo do Rio seguiu apostando nas antecipações em 2018, com uma nova antecipação, desta vez em Luxemburgo, país europeu e outro paraíso fiscal. A lógica de colocar o dinheiro dos aposentados do estado dependente de investimentos de risco segue forte.

No discurso, a culpa pelos problemas fiscais do estado e pelo desequilíbrio do Rioprevidência ainda é dos servidores. Em 2017, Pezão aumentou a cobrança previdenciária dos servidores, de 11% para 14%. Servidores, aposentados e pensionistas pagando mais para financiar uma lógica de financeirização da previdência, de entrega de recursos para especuladores, numa falência calculada da previdência do estado. O atual governador do estado, Witzel, não esconde suas intenções de realizar uma nova contra-reforma da previdência, que retira direitos dos servidores, e aprofunda essa lógica de financeirização e capitalização.

Para tentar barrar este processo e desvendar a complexa operação Delaware, o mandato coletivo Flávio Serafini vem presidindo uma Comissão Parlamentar de Inquérito na ALERJ. Já existem evidências de uma série de irregularidades nas operações e na gestão do Rioprevidência, e seguimos apurando eventuais ilicitudes, junto com investigações do TCE e do Ministério Público. Buscamos a responsabilização dos gestores, a rediscussão dos contratos, bem como reaver o processo de desmonte da previdência do estado. Não acreditamos no discurso do déficit que tanto ataca os servidores.

É fundamental repensar o Rioprevidência, em especial em um momento em que se debate uma reforma nacional da previdência, com espaço para privatizações e um regime capitalizado. Sistemas de Previdência não baseados em regimes solidários abrem enorme espaço para a financeirização da futura aposentadoria dos trabalhadores e sua transformação em mais um elemento a anabolizar a musculatura do capital financeiro nacional e internacional, e a jogar os recursos que deveriam garantir as aposentadorias e pensões dos trabalhadores nesse turbilhão de incerteza e volatilidade – ou seja, risco! – que são as finanças internacionais, permitindo um assalto a esses recursos por parte do setor financeiro internacional. Já vimos no Rio de Janeiro o desastre que é esta política. Vamos defender a previdência social e solidária, para os trabalhadores!

[1] Economista, Doutorando pela UFRRJ e integra a equipe da CPI do Rioprevidência pelo mandato coletivo Flavio Serafini.

[2] Historiador, mestre em Ciências Sociais e integra a equipe da CPI do Rioprevidência pelo mandato coletivo Flavio Serafini.

[3] Mestre em Ciências Econômicas e integra a equipe da CPI do Rioprevidência pelo mandato coletivo Flavio Serafini.

[4] Ladislao Dowbor, A Era do Capital Improdutivo, S. Paulo, 2017, Outras Palavras e Autonomia Literária, Cap. 6.