Verdades e mentiras da série ‘Chernobyl’

Henrique Canary
Reprodução HBO

Foi com grande curiosidade, mas também – confesso – com algum ceticismo que me sentei para maratonar a minissérie Chernobyl, da HBO. O que se apresentaria? Uma denúncia vigorosa dos perigos relacionados ao uso da energia nuclear ou mais uma peça de propaganda anticomunista? Ou algo intermediário? Ou nem um, nem outro e apenas um trabalho artístico autoral? Apresento aqui algumas conclusões parciais sobre o que vi.

Que se diga, em primeiro lugar, que a série vale muito a pena. A ambientação em meados da década de 1980 é quase perfeita (falarei desse “quase” mais adiante). Ainda mais porque os produtores não optaram pela saída mais fácil, que seria a criação de ambientes “cleans”, com menor possibilidade de erro de cenografia. Ao invés disso, encheram cada cena com uma enorme riqueza de detalhes que realmente nos levam à União Soviética tardia. A representação da “síndrome aguda da radiação”, é perfeita segundo vários especialistas e testemunhas oculares dos fatos. Além disso, a trilha sonora angustiante e a fotografia melancólica certamente contribuíram para os pesadelos que tive nas duas noites em que assisti à série. Ou seja, excelente.

Mas Chernobyl não está livre de erros históricos, nem deve ser vista acriticamente do ponto de vista de sua mensagem. Tentarei explicar por quê.

Russos são bárbaros bêbados?

O cinema e a TV norte-americanos têm uma profunda necessidade de representar os russos como beberrões incontroláveis, que não fazem nada sem uma garrafa de vodca na mão. Chernobyl explora isso à exausatão, de maneira exagerada e caricatural. Na série, as pessoas não largam o copo de vodca nem mesmo enquanto estão engajados no trabalho de liquidação dos efeitos da tragédia ou em reuniões de trabalho. Isso não é assim. A Rússia não é sequer a nação que mais bebe no mundo. Na verdade, ela ocupa a 8º posição neste ranking, sendo superada por Lituânia, Estônia, França, República Tcheca, Irlanda, Luxemburgo e Alemanha. Para piorar, a série retrata exatamente o período em que vigorou em toda a URSS a Lei Seca, que limitava drasticamente o comércio e o consumo de bebidas alcoólicas.

Gerontocracia?

A série retrata a URSS com um país dirigido por uma gerontocracia decrépita e fanática. Isso podia ser assim na época de Brejnev, mas não era assim durante o governo de Gorbatchev. Na verdade, desde que assumiu o posto de secretário-geral do PCUS, em 1985, Gorbatchev promoveu uma intensa renovação das estruturas de poder, colocando no comando do país uma nova geração de dirigentes, muito mais jovem e dinâmica que a anterior. É exatamente isso que explica a aceitação, por parte da burocracia dirigente, das reformas liberalizantes de Gorbatchev, impensáveis na década de 1970 ou antes. É claro que em uma província distante, como a cidade de Pripiat, retratada na série, poderia haver um velho dirigente ainda no comando. Mas essa não era a regra. Exatamente por isso, a cena em que o velho secretário do PC local (Donald Sumpter) bate com sua bengala no chão e ordena a todos que se calem não é representativa do que eram as cadeias de comando na URSS em meados dos anos 1980.

Socialismo é igual a mentira?

Aqui entramos em um terreno delicado e é preciso que se esclareçam bem as posições. É claro que houve mentira e ocultação de informação da população por parte das estruturas de poder. Mas as mentiras contadas pelo governo da URSS logo depois do acidente duraram muito pouco. Por exemplo, o informe que Valeri Legasov, cientista responsável pela liquidação das consequência do desastre, fez em Viena em 1986, na reunião da Agência Internacional de Energia Atômica, já expunha uma boa quantidade de verdades a respeito do acidente, pelo menos uma boa parte do que se sabia até então. Ao contrário do que a série mostra, o depoimento de Legasov em Viena não foi um “teatro”, mas contribuiu enormemente para as investigações da verdade do acidente. Para piorar, na série, a mentira governamental é resultado direto do caráter socialista do país. Isso é uma mensagem evidentemente ideológica. Não esqueçamos que estamos aí nos inícios da glasnost, a abertura política que acompanhou a liberalização econômica, a perestroika. Nesse contexto, não havia nenhuma chance do governo esconder a verdade da tragédia por muito tempo. E foi exatamente isso que aconteceu: ela veio à tona muito mais rapidamente do que era de se esperar, graças à coragem de Legasov e de muitos outros cientistas que lutaram pela verdade, representados na série pela personagem Ulana Khomyuk (Emily Watson).

Mineiros nus?

Num determinado momento da série, os mineiros que estão trabalhando na liquidação das consequências do desastre começam a trabalhar completamente nus, porque não podem usar ventiladores dentro do túnel que estão cavando. Isso não passa de uma bobagem sem sentido, que tem como único objetivo, novamente, mostrar os russos como bárbaros que sequer usam roupas. Isso não aconteceu. Os mineiros usavam roupas leves porque trabalhavam sob uma temperatura de 50º Celsius e porque estavam protegidos no subterrâneo, mas jamais trabalharam nus.

Ministro playboy?

Em uma outra cena, também relacionada com a subtrama mineira, o ministro da Indústria do Carvão vai a uma mina recrutar trabalhadores para cavar um túnel na área do acidente. A série retrata o ministro como um playboy incapaz de estabelecer um diálogo normal com os mineiros e que ainda por cima chega na mina escoltado por dois soldados armados. Em primeiro lugar, nem o secretário-geral do PCUS e muito menos os ministros de Estado andavam escoltados por soldados armados. Isso é mais uma caricatura. Em segundo lugar, o ministro da Indústria do Carvão da época era Mikhail Schadov, que trabalhara 15 anos em uma mina antes de se tornar ministro. A cena com os mineiros limpando suas mãos no terno de Schadov é maldosa e não corresponde à relação que ele tinha com os trabalhadores do setor.

Ivan, o Terrível, no Kremlin?

Em uma uma das cenas, Valeri Legasov (Jared Harris) e Boris Scherbina (Stellan Skarsgard), o responsável partidário pela operação de liquidação das consequências do desastre, conversam no Kremlin tendo ao fundo um retrato de Ivan, o Terrível. Essa foi uma escolha infeliz dos produtores e distoa do cuidado que tiveram em geral com a ambientação da série. Tal quadro existe, mas ele não está no Kremlin, e sim na Galeria Tretiakov, em Moscou. Trata-se de uma tela famosa do pintor Ilia Repin, que retrata Ivan, o Terrível, no momento em que este espanca seu filho até a morte e então, percebendo o que tinha feito, abraça seu corpo sem vida com olhos de pavor. É inevitável pensar que a escolha deste quadro para a cena foi proposital: seria uma metáfora para a burocracia dirigente? Estariam os produtores da série dizendo à burocracia soviética: “Vejam o que vocês fizeram com vossos filhos?”

Burocratas onipotentes?

Em uma outra cena, Scherbina e Legasov estão sobrevoando a usina e o primeiro ameaça jogar o segundo do helicóptero se este não responder a uma pergunta sua. É ridículo. Burocratas soviéticos tinham privilégios e muito poder, mas não o poder de vida e morte sobre as pessoas, sem processo legal, sem julgamento. Mais uma vez, quer-se retratar os russos como bárbaros e a União Soviética como uma terra sem lei e sem civilização. A série confunde o período diretamente stalinista (as grandes repressões da década de 1930) com os anos 1980, quando já havia abertura política e uma relativa suavização do regime.

Exército Branco, Exército Vermelho, Hitler: todos iguais?

A certa altura, uma velhinha tipicamente soviética conversa com um soldado que tenta evacuá-la da região. Ela diz algo como “Você não é primeiro a vir até aqui armado. Primeiro vieram os brancos, depois os vermelhos e depois Hitler”. Aqui a mensagem ideológica é bastante evidente: são todos iguais – brancos, vermelhos, nazistas. Apenas homens armados e nada mais. Prevalece nesta cena a ideia tão comumente disseminada de que tudo não passa de “totalitarismo”. Mas será mesmo razoável comparar as ações do Exército Vermelho com as ações de Hitler na Segunda Guerra Mundial? Na cabeça dos produtores de Chernobyl, sim.

De um modo geral, como disse no início, a minissérie da HBO é fiel aos fatos do acidente. Não há distorções importantes no centro da história. O diabo mora nos detalhes. É em tudo que cerca a história principal que a emissora cria sua narrativa não somente sobre o que foi o acidente, mas principalmente sobre o que era a sociedade soviética. E essa narrativa se torna ainda mais forte exatamente pelo fato de que toda a série é muito bem produzida justamente do ponto de vista de seus detalhes estéticos e formais.

Mas a sociedade soviética não era só isso. Mesmo nos créditos finais, quando o destino das personagens reais é apresentado, em nenhum momento é dito que milhares de crianças foram tratadas dos efeitos da radiação em Cuba, porque é aí que se revelaria a superioridade do sistema socialista em relação ao capitalismo.

Correm boatos de que o Ministério da Cultura da Rússia estaria produzindo uma série própria sobre o acidente, em resposta à série da HBO. Na suposta série russa, o enredo giraria em torno de uma espião ocidental que seria o responsável pelo acidente. É ridículo também. Se a Rússia quer fazer uma série própria, que o faça, mas sem teorias da conspiração. Que retrate o heroísmo verdadeiro dos bombeiros, dos técnicos da usina, dos voluntários, do pessoal médico, da população soviética.

De um modo geral, a mensagem da série da HBO é de que a URSS não estava pronta nem técnica nem moralmente para lidar com a energia nuclear. De minha parte, creio que os desastres de Chenobyl na URSS, o de Fukushima no Japão e o de Three Mile Island no Estados Unidos (1979) demonstram que a energia atômica é demasiado perigosa para ser utilizada como fonte de energia por qualquer sociedade do presente. Usinas nucleares lidam com a instabilidade da matéria e simplesmente não há formas seguras de fazê-lo. Em compensação, há muitas fontes alternativas de energia barata e segura que poderiam e deveriam perfeitamente substituir a energia nuclear.

No futuro, quando a sociedade se libertar da ganância e da mentira, talvez possamos voltar a utilizar o átomo como fonte de energia. Por enquanto, ainda é cedo.