O lançamento do documentário Democracia em Vertigem, produzido pela Netflix, vem causando expressivo impacto, provavelmente potencializado pela simultaneidade com a divulgação de relações impróprias estabelecidas entre juiz e procuradores da Lava Jato. As reações ao documentário variam da grosseira desqualificação por parte dos veículos golpistas e da ultradireita até a recepção apaixonada e emocionada de diversos militantes identificados com os governos petistas (e mesmo de muitos que foram críticos a estes governos). Não há como deixar de reconhecer inúmeros méritos ao documentário, ainda que uma perspectiva crítica permita identificar alguns limites importantes.
O documentário é bem construído. O tom de narrativa pessoal, articulando percepções da diretora, vivência familiar e o processo político nacional, causa estranheza nos primeiros minutos, mas ao longo do documentário imprime força à narrativa. De forma geral, as imagens são bem escolhidas e representativas do processo abordado e a montagem é competente, convertendo-se efetivamente em um documento relevante – ainda que inevitavelmente parcial.
O trailer sugeria uma visão entusiástica dos governos petistas, mas o que se verifica no documentário é uma narrativa menos maniqueísta, com espaço para o registro de algumas debilidades, equívocos e contradições que marcaram aqueles governos. Ainda que parte dos espectadores identificados com os governos petistas veja apenas a reafirmação dos acertos daqueles governos, o documentário não omite o envolvimento de dirigentes petistas com corrupção nem os acordos com grupos políticos e econômicos dominantes como elemento central da estratégia seguida. É verdade que, de forma simplificadora, o documentário identifique esta dinâmica de colaboração de classes apenas a partir da eleição de 2002, contrapondo aos três processos anteriores, que supostamente marcados por um discurso classista e de confronto (o que nos parece muito discutível, sobretudo em relação às eleições de 1994 e 1998.
Como já registrou Milton Temer, um momento marcante do documentário é quando traz a avaliação autocrítica do dirigente petista Gilberto Carvalho, que afirmou que “achamos que podíamos ser amigos dos grandes”, acrescentando: “Esquecemos do que nos propúnhamos na luta política com o que chamávamos ‘pé-dentro, pé-fora’. Ou seja, um pé na luta institucional; o outro na mobilização social. Ficamos concentrados no pé-dentro”. Temos aqui uma avaliação bastante distinta das habituais autocríticas protocolares feitas por lideranças petistas, geralmente marcadas pelo pressuposto de que sua estratégia estava correta mas foram surpreendidos por uma direita traiçoeira, omitindo assim as distintas formas como grupos conservadores puderam se fortalecer ocupando posições institucionais no interior dos governos petistas.
Uma lacuna importante do filme é justamente o fato de registrar o aparecimento de um grande sujeito social mobilizado pela direita sem ensaiar qualquer tentativa de explicação. Aqui, faz falta a explicitação das posições de poder ocupadas pelos grupos reacionários que integravam a grande aliança de sustentação dos governos petistas. Chama atenção, por exemplo, a forma como a diretora relata a festa de comemoração do Golpe, que se seguiu à posse do ilegítimo Michel Temer: “Essa noite, as regras do Palácio são suspensas. É uma festa. A fauna do Planalto muda radicalmente em poucas horas. A chegada de Temer enche os corredores de representantes da direita do Congresso, das bancadas do boi, da bala, da Bíblia. Esses homens entram ávidos pelos salões, depois de anos tendo que pedir permissão para entrar”. O discurso aqui proferido está em contradição com a autocrítica de Carvalho, pois se até então os dirigentes petistas tentavam “ser amigos dos grandes”, naturalmente deixavam-lhes abertas as postas aos espaços de poder. É ilustrativo que no momento em que a voz narrativa da diretora conclui seu lamento, a imagem fecha o foco em Henrique Meirelles – o banqueiro que Lula buscou nas fileiras do PSDB para comandar o Banco Central. Em certa medida, Petra Costa contorna a contradição dando voz a parlamentares que acusavam Dilma de ser menos receptiva às políticas de acordos imposta pelos parlamentares reacionários. Algo que pode ser verdadeiro no trato pessoal, mas que não se expressou na composição de seu segundo governo, já que em seu ministério, além dos representantes das distintas frações do capital (Joaquim Levy, Afif Domingos, Alexandre Tombini), estavam também diretamente presentes lideranças das citadas bancada do boi (Kátia Abreu) e da Bíblia (George Hilton, da Igreja Universal).
Para compreender a emergência da direita virulenta que o documentário explicita, seria necessário discutir como se deu ao longo dos governos petistas a disseminação de visões de mundo economicamente ultraliberais, socialmente conservadora, politicamente autoritárias e culturalmente moralistas, através de inúmeros aparelhos privados de hegemonia controlados diretamente pela classe dominante brasileira e por grupos a ela associados. Organizações como o Instituto Millenium, Mises Brasil, fundações empresariais, institutos liberais e muitos outros são elementos imprescindíveis para que se compreenda de onde surgiu o assustador quadro que emerge nas manifestações reacionárias bem documentadas por Petra Costa. Mas, para além disto, faz falta também observar que estes aparelhos tiveram campo aberto para atuar sem que nada semelhante fosse construído no campo oposto, já que a esquerda majoritária assumia um projeto de conciliação de classes que implicava em renúncia ao embate ideológico e à disputa pela hegemonia. Neste ponto, o documentário escorrega ao sugerir (ainda que sem afirmar explicitamente) que a ascensão da direita tem como marco inicial junho de 2013, com as grandes mobilizações populares. As cenas escolhidas favorecem uma percepção de continuidade entre 2013 e 2015, o que pode ser assimilado a uma explicação simplória e conformista que pressupõe que tudo corria bem até então e que foram os “inconsequentes” que saíram as ruas em junho de 2013 que abriram as portas à direita. Compreender como se deu o avanço da direita ao longo do ciclo dos governos de conciliação de classe comandados pelo PT, bem como produzir um balanço crítico sobre Junho de 2013, é imprescindível para que se possa ter uma perspectiva de totalidade deste processo.
Esta insuficiência faz com que o documentário seja tendencialmente paralisante. Ao assisti-lo, muitos relatam forte emoção, outros, intensa raiva, mas em ambos os casos isto parece pressupor o congelamento da situação em seu atual estágio – polarização intensa, com predomínio da direita fascistizante e sob o comando de Jair Bolsonaro. Processos de resistência de enorme importância, como as ocupações estudantis e a greve geral de 2017 não tiveram espaço na edição de Democracia em Vertigem. Com isto, o grande risco é que o documentário seja recebido como o lamento de uma derrota que incorporando a reconfortante sensação de que estávamos do lado certo, ainda que tenhamos perdido. Um comportamento análogo aos habituais “eu avisei” e “faz arminha”, que responsabilizam a base social que apoia a direita mas não contribuem para reversão da situação. É inegável que a democracia brasileira está sob ataque ao menos desde 2016 (embora seja possível argumentar que as medidas repressivas de 2014 e a Lei Antiterrorismo já incidam neste sentido). Mas não há um desfecho já consolidado, ao contrário, o processo está em aberto e a denúncia que o documentário expressa deve alimentar as lutas e resistências, único caminho que pode impedir a liquidação das liberdades democrática.
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